NA ILHA
DE SANCIÃO - ABANDONO E SOFRIMENTO - O FIM DO EXÍLIO
A ilha de Sancião, inculta, estéril, desabitada do lado do porto, não
oferecia recurso algum em si.
Os portugueses, como já dissemos, não podiam estabelecer ali
senão pequenas cabanas em que habitavam o tempo necessário para o seu tráfico
com os mercadores chineses que ali vinham reunir-se-lhes, e depois da sua
partida, aquela parte da ilha era um deserto inabitável, especialmente durante
os grandes frios, e D. Álvaro de Ataíde não ignorava isso. Certo de que Xavier
encontraria obstáculos quase invencíveis ao seu projeto de penetrar no império
chinês, ordenara ao capitão do Santa-Cruz que não deixasse o porto de Sancião
senão depois da partida de todos os navios portugueses, que não recebesse, sob
pretexto algum, o Padre Francisco a bordo e que lhe não
fosse útil em coisa alguma em qualquer serviço de que ele carecesse; sobretudo
devia-se economizar os víveres da equipagem e não consentir que deles se
dispusesse a favor do Padre Francisco.
D. Álvaro esperava sem dúvida que o santo apóstolo do Oriente morresse
de frio, de fome e de pesar em terra inóspita onde os seus companheiros o
abandonariam.
O nosso Santo fizera voltar a Malaca, pelo último navio português que
levantara ferro com aquele destino, Tomás Scandelho e Francisco de Vilas, que
Diogo Pereira encarregara de o acompanhar, o primeiro até Sancião, o segundo
até Singapura somente; mas Francisco Xavier resolvera, como já vimos, conservar
Francisco de Vilas, que muito desejava não o deixar, e escrevia ao seu amigo
"Francisco presta-nos todos os serviços que está a seu alcance
prestar-nos; eu vo-lo mandarei com Manuel Chaves, e vós lhe perdoareis por ter
vindo até aqui, porque se existe culpa, ela é inteiramente minha".
O mercador chinês não tinha voltado, os dias decorriam, o frio fazia-se
sentir cada dia mais, não era já possível sair para o mar, e o capitão que não
pudera determinar-se a abandonar o nosso Santo na ilha de Sancião, calculava,
inquieto, todos os embaraços da situação, quando, a 20 de Novembro, Xavier,
sustido por Antônio de Santa-Fé e conduzido por Francisco de Aguiar que guiava
a embarcação, veio pedir asilo na enfermaria da nau Santa Cruz.
As forças físicas do ardoroso missionário chegaram então ao termo. Uma altíssima febre o obrigou a recolher- se em sua improvisada cabana, onde, desamparado dos homens e padecendo frio, fome e toda classe de privações, deveria passar os últimos dias de sua heróica existência nesta terra de exílio.
O capitão olha para o grande apóstolo... seu coração não pode resistir aquela vista. Se está perdido na sua volta a Malaca, se o governador lhe vai fazer sofrer os efeitos das suas ameaças, ele os sofrerá: mas não abandonará aquele que só tem feito sempre bem a todos e que salvou a equipagem de uma morte infalível na calmaria por que passou na viagem; não repelirá de si aquele que é objeto de amor e veneração para todo o Oriente. Recebe portanto o nosso Santo, que vai ocupar um lugar entre os soldados e marinheiros da enfermaria, e de quem Francisco de Aguiar vai tratar com ternura filial:
- Francisco, disse-lhe o Santo doente, isto não será para longo tempo;
eu terei a felicidade de deixar esta vida a 2 de Dezembro.
E tomando o seu crucifixo, beija-o com efusão, aperta-o ao coração e
parece absorvido no seu amor.
Ele sofria duna dor no lado, acompanhada de forte opressão e de violenta
dor na cabeça; experimentava todos os sintomas duma congestão pulmonar.
Luís de Almeida estava resolvido a invernar no porto de Sancião; quanto
aos marinheiros, eles não se inquietavam de modo algum com a cólera do
governador de Malaca. Jorge Álvares, que ficara como passageiro na Santa Crus,
prodigalizava os seus cuidados ao nosso Santo, de quem era amigo, e prometia
não o deixar; Francisco de Aguiar, Cristóvão e Antônio de Santa-Fé partilhavam
da sua dedicação.
O balançar do navio fazia recobrar todos os sofrimentos de Xavier, e ele
pediu que o tornassem a levar para terra; levaram-no para a praia e como
soprava com violência o vento norte, Jorge Álvares fê-lo transportar para a sua
cabana. Ali estenderam-no sobre uma esteira, abrigaram-no contra um frio
glacial, com algumas pranchas mal unidas e uma cobertura de ramos secos!...
O seu amor pela santa pobreza não podia fazer-lhe desejar mais completa
miséria. A sua ardente sede de privações, de sofrimentos, de sacrifícios de
todo o gênero, vai ser enfim satisfeita!
Ele sabe que vai morrer ali â vista daquele império chinês pelo qual tão
ardentemente, suspirara, e no próprio momento em que esperava transpor o braço
do mar que o separava daquela terra de promissão!... Sabe que vai morrer a seis
mil léguas das suas afeições mais queridas... que vai morrer em um solo pagão,
em absoluta privação de todas as consolações de que a Igreja é tão rica para
com os seus filhos que deixam a terral...
O apóstolo incomparável que dera milhões de almas à Igreja de Jesus
Cristo, o ilustre conquistador que fez avançar de três mil léguas os limites do
seu império, Francisco Xavier nada tem a esperar dos seus tesouros!... sabe que
ela não virá, naquela hora suprema, trazer-lhe a palavra santa que absolve, a
unção sagrada que purifica, o alimento diurno que consola, e fortifica!... Sabe
que ela não fará ouvir a oração em torno do seu ataúde, e que a sua bênção não
cairá nem mesmo sobre o pedaço de terra que vai receber os seus restos
mortais!...
Tudo devia ser dor, sacrifício, amargura de coração na ultima hora
daquela vida magnífica! ou antes a morte do grande Xavier devia ser admirável,
heróica, sublime como a sua vida...
Deus acabava a imolação da vítima!
Jorge Álvares quis fazer sangrar o santo doente.
- Eu consinto, disse-lhe Xavier, mas é inútil: devo morrer na
sexta-feira próxima.
O cirurgião sangra-o e ofende-lhe um nervo; o doente desfalece, e
voltando a si, experimentou violentas convulsões que contudo não puderam
alterar a serenidade do seu angélico rosto. Não deixava escapar o menor lamento
e só se ocupava do Deus que se dignava amá-lo muito para querer ser a sua única
força, sua única consolação, no momento em que ele ia ter a suprema recompensa,
a sua eterna felicidade.
O mal agravava-se com grande rapidez, a sangria foi renovada, as
vertigens e convulsões repetiram-se também.
A 28 de Novembro, o nosso Santo doente caiu em delírio; então foi
revelado a todos que o cercavam, toda a grandeza do sacrifício que Deus exigia
do seu zelo: ele não cessava de falar da China, do seu desejo de aí levar a fé,
da felicidade de dar a Deus todos aqueles milhões de almas, ou de morrer pelo
Evangelho que lhes ia anunciar.
Pelo fim do dia, perdeu a fala, que recobrou a 30; mas a sua debilidade
era extrema; só falava para orar. Ouvia-se-lhe repetir amiudadas vezes:
O sanctissima Trinitas! Jesu, fili
David, miserere mei! Monstra te esse Matrem!
A 1 de Dezembro, mandou conduzir para o navio a sua capela e os seus
livros, dizendo a Jorge Álvares:
- Morrerei amanhã às duas horas.
E dirigindo a vista para Cristóvão, disse-lhe com o acento de uma
profunda piedade: "Ah! desgraçado!" Acabava de ser esclarecido sobre
a reincidência espiritual deste índio que, de volta a Malaca, recaiu nos seus
hábitos criminosos e morreu miseravelmente.
Soprava com persistência o frio vento do norte e as ondas do oceano rompiam cada vez mais violentas naquela praia que parecia deserta. O céu, coberto de plúmbeas nuvens, escurecia rapidamente, prenunciando longa e tormentosa noite.
Não muito longe da beira do mar, elevava-se uma mísera cabana, feita com algumas pranchas de madeira carcomida, cuja cobertura de palha seca era agitada pelo vento glacial. Dentro dela, estendido sobre uma esteira, um homem agonizava. Seu corpo exangue ardia consumido pela febre, mas seu olhar profundo e vivo espelhava um espírito de fogo, refletia a eternidade... Morria o Apóstolo do Oriente, Francisco Xavier.
Àquele varão que não conhecera o cansaço, àquele apóstolo que com sua palavra arrastava multidões, àquele taumaturgo que havia ultrapassado grandes obstáculos operando milagres portentosos, o Senhor do Céu e da Terra reservava a mais heróica e gloriosa das mortes: a exemplo de seu Mestre Divino, Francisco Xavier morreria no auge do abandono e da aparente contradição.
Alguns dias antes de entregar seu espírito, entrou em delírio, revelando então a magnitude do holocausto que a Providência lhe pedia: falava continuamente da China, de seu veemente desejo de converter esse império e da glória que adviria para Deus se esse povo fosse atraído para a Santa Igreja Católica...
No dia seguinte,
sexta-feira, 2 de Dezembro de 1552, pelas duas horas da tarde, Francisco Xavier
apertou ao coração o crucifixo que nunca deixava; beijou-o com uma viva
expressão de amor e de felicidade, olhou para ele derramando lágrimas de
consolação e de esperança; e pronunciou distintamente e em alta voz: In te
Domine speravi, non confundar in aeternum!...
E inclinou-se para ele!... Somente o corpo do ilustre apóstolo do
Oriente existia sobre a terra... sua grande alma estava no Céu! ... para
sempre!
Na capela do castelo de Xavier, o crucifixo milagroso deixou de derramar
sangue desde sexta-feira, 2 de Dezembro de 1552, pelas duas horas da tarde...
NOTA: O Padre Aria Blandoni, escrevendo à Companhia de Jesus, em Roma, de
Goa, a 24 de Dezembro de 1554, afirma que os marinheiros não abandonaram o
Santo em Sancião, e que todos os portugueses da Santa Cruz lhe eram ternamente
afeiçoados.
Francisco Xavier expirou docemente no Senhor, sem uma queixa ou reclamação, divisando ao longe aquela China que não conseguira conquistar e que tanto havia desejado depositar aos pés de seu Rei, Nosso Senhor Jesus Cristo.
Suas derradeiras palavras foram estas frases de um cântico de glória: In te, Domine, speravi. Non confundar in aeternum. Em Vós espero, Senhor. Não me abandoneis para sempre!
A maior glória de Deus
À primeira vista, sobretudo para quem não tem seu olhar habituado a contemplar os horizontes infindos da Fé, a vida de São Francisco Xavier parece, em certo sentido, frustrada.
Quantas almas não se teriam salvo e quanta glória não haveria recebido a Santa Igreja se o imenso e super povoado império chinês houvesse sido evangelizado por este apóstolo de fogo! Entretanto, quando se encontrava ele, finalmente, às portas desta nação, depois de haver passado por dificuldades e combates de toda ordem, o chamado de Deus se fez ouvir: "Francisco, meu filho, cessa tua luta e vem a Mim!" Oh! mistério do Amor Infinito! De Francisco, Deus não queria a China... mas queria Francisco.
E o intrépido conquistador respondeu, sem hesitar, como Jesus no Horto das Oliveiras: "Senhor, faça-se a vossa vontade e não a minha. Sim, Redentor meu, cumpram-se, antes de mais nada e sobre todas as coisas, vossos perfeitíssimos desígnios e assim, e só assim, Vos será dada a eternidade!" maior glória nesta terra e por toda a eternidade.
(Revista Arautos do Evangelho, Nov/2005, n. 47, p. 20 a 23)
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