CARTA 16
AO PADRE INÁCIO DE LOYOLA (ROMA)
Goa, 20 de Setembro 1542
Duma cópia em castelhano, feita em Roma em 1543
A graça e a paz de Nosso Senhor
Jesus Cristo esteja sempre connosco. Amen.
Fundação
do colégio de Goa, sua importância e nome. Sua igreja em construção. Rendas
1. Nesta
cidade de Goa moveu Deus Nosso Senhor algumas pessoas para que o servissem em
fazer um colégio1, o qual era mais necessário nestas partes que outra coisa, e
cada dia se vai fazendo mais. É coisa para dar muitas graças ao Senhor, que
tais edifícios materiais, para edificação de muitos templos espirituais,
doutrina e conversão de muitos infiéis, manda aos seus servos fazer. Dois, que
têm o encargo de edificar o colégio, são homens muito honrados e principais. O
senhor Governador dá todo o favor para que este colégio se faça. Parece a Sua
Senhoria ser tanto serviço de Deus Nosso Senhor edificar esta casa nestas
partes tão necessária que, por sua causa, se há-de acrescentar e, em breve
tempo, acabar2. A igreja que estão a fazer dentro do colégio é muito formosa3.
Os alicerces já estão acabados e as paredes já erguidas; agora estão a
cobri-la. Neste Verão [já] dirão Missa nela. É maior, a igreja, quase duas
vezes que a igreja do colégio da Sorbona4. Tem já renda: com ela pode já manter
mais de cem estudantes. De dia para dia irá ser muito dotada, pois todos a
acham muito bem.
Os de cá
confiamos em Deus Nosso Senhor que, deste colégio, antes de muitos anos, hão-de
sair homens que hão-de acrescentar, nestas partes, muito, a fé de Jesus Cristo
e cumprir as fronteiras da santa mãe Igreja.
Esperanças que tem no colégio para a conversão da Índia. Apoio do
Governador
2.
Creio que, dentro de seis anos, há-de ter passados de trezentos estudantes,
entre os quais os há-de haver de várias línguas, nações e gentes. Espero em
Deus Nosso Senhor que, desta casa, hão-de sair homens, dentro de poucos anos,
que hão-de multiplicar o número dos cristãos.
O
senhor Governador dando-lhe Deus Nosso Senhor paz com estes infiéis, pois cá
vivemos quase sempre em guerra há de fazer os edifícios materiais deste colégio
em breve tempo, por lhe parecer a coisa mais pia e santa de toda a Índia: pois
tais edifícios como estes, fundados em Cristo, são causadores de muitas
vitórias contra os infiéis, contra os quais Sua Senhoria alcançou muitas e
grandes
(1)
- Sobre a fundação do colégio de Goa (S. Paulo-o-Velho), por volta de 1540;
SCHURHAMMER, Quellen. O colégio estava situado na parte oriental da cidade, na
Rua da Carreira dos Cavalos; Pouco antes, fundara Frei Vicente de Lagos, em
Cranganor, outro colégio semelhante (cf. SCHURHAMMER, Francisco Javier, su
vida y su tiempo).
(2)
- No dia 2 de Agosto de 1542, assinou o Governador o decreto a favor da Irmandade
da Santa Fé e da construção do seu colégio (SCHURHAMMER, Quellen 982; Francisco
Javier, su vida y su tiempo).
3
Na festa da conversão de S. Paulo, 25 de Janeiro de 1543, foi consagrada a
igreja e nela celebrada a primeira Missa (CORREA, Lendas da Índia IV 289). Nos
anos 1560-1572, foi substituída por novo edifício (S. Paulo dos Arcos), cujas
ruínas ainda existem (SOUSA, Oriente conquistado).
4
A capela do colégio da Sorbona é de 1322. Não sabemos as suas dimensões. Em
1635 foi substituída por outra construção
vitórias no passado5 e, agora
para o futuro, espera em Deus Nosso Senhor que lhe há-de dar muitas maiores.
Portanto vos manda pedir que, por amor e serviço de Deus Nosso Senhor, nas
vossas orações e de toda a Companhia, tenhais especial memória de Martim Afonso
de Sousa, encomendando-o a Deus Nosso Senhor para que lhe dê graça de bem
governar esta Índia grande, e que de tal maneira passe por estas coisas
temporais que não perca as eternas6.
Gratidão que merece
3. E se, da
minha parte, pensasse haver necessidade de rogar-vos que não vos esquecêsseis
dele em vossos devotos sacrifícios, recomendar-vo-lo-ia como à minha própria
alma, por estar-lhe eu tão obrigado. Obrigou-me a ser tão seu, a sua virtude, e
também o ele ser tão meu. Todas estas obrigações, tanto suas como minhas, pela
graça de Deus são por causa de Cristo. E se dele nalgum tempo me esquecesse, o
que nunca Nosso Senhor permita, parece-me que, só por este descuido, Deus Nosso
Senhor me havia de castigar, por ofendê-lo com tão grave pecado de ingratidão.
O senhor
Governador escreve sobre este colégio ao Rei, para que Sua Alteza escreva para
Roma a Sua Santidade, rogando-lhe que tenha por bem mandar a esta terra alguns
da nossa Companhia, para que sejam edifícios espirituais deste tão santo
colégio. Aqui, alguns chamam-lhe [colégio da] Conversão de S. Paulo7 e outros
[da] Santa Fé8. Este último nome parece-me mais conforme, segundo há-de ser
pregada e implantada.
Natureza e finalidade do colégio, jesuítas que o Governador vai pedir
por intermédio do Rei e privilégios que pretende obter da S. Sé para a sua
igreja
4. Disse-me o
senhor Governador que vos escrevesse muito longamente [acerca] deste colégio e
da sua fundação. Foi fundado para que aí fossem ensinados na fé os naturais destas
terras, e que estes fossem de diversas nações de gentes para, depois de terem
sido bem instruídos na fé, os mandar às suas naturalidades a frutificarem no
que estavam instruídos. Está o senhor Governador tão bem com a nossa Companhia
e nosso modo de proceder, que não o poderia acabar de escrever. Parece-lhe –
pois Deus nosso Senhor por vós nos chamou a todos os que somos de uma Companhia
– que cumpre com Deus e com a sua consciência em apresentar-vos [a vós] a necessidade
que há, para ensinar os deste colégio, que venham alguns da nossa Companhia:
que a vós, toca esta empresa de prover de fundamentos espirituais este colégio
e, a Sua Senhoria, a de acabar e acrescentar os edifícios materiais dele.
Diz
o senhor Governador que, os que hão-de vir, seria coisa santa e de muita estima
e causa de muito grande devoção, nestas partes, se para o altar-mor do colégio
trouxessem de Sua Santidade uma graça e privilégio: que todos aqueles que, no
dito altar, celebrassem Missa por um defunto, tirassem uma alma do purgatório,
tal como se, nos altares privilegiados de Roma, celebrassem9. Deseja muito o
senhor Governador, para que, em coisa tão santa, não intervenha avareza dos que
ali vierem a celebrar, que a concessão fosse desta maneira: que, todos os que
dissessem Missa nesse altar, fosse gratis e por amor de Deus, sem nenhuma
esperança de prémio temporal, e que doutra forma não gozassem do privilégio; e
que, o que a manda dizer, se confesse e comungue naquela Missa, porque é muito
razoável que, quem é causa de que tirem uma alma do purgatório, tire a sua primeiro
do inferno. Porém, aos que disserem Missa no dito altar, grátis etc., que Sua
Santidade lhes concedesse algum prémio espiritual, ou indulgência plenária, ou
outra, qual Sua Santidade mandasse; e isto, para que os sacerdotes, por amor do
prémio espiritual, gostassem de dizer Missa grátis e por amor de Deus, sem
nenhuma esperança de prémio temporal. Desta maneira diz Sua Senhoria que deseja
muito esta graça neste colégio, porque desta maneira seria causa de muita
devoção, e estimar-se-ia, como é muita razão. Por esta e outras graças
espirituais que manda pedir, podeis julgar o ânimo e zelo que tem, pois tão bem
sente de coisas tão santas e pias e assim as procura.
5
Sousa, que era capitão-mor do mar, tinha alcançado grandes vitórias: contra o
rei de Cambaia que, depois da batalha, teve de ceder aos portugueses Baçaim e
Diu; contra os reis da região de Calicut e Repelim; contra os maometanos, perto
da povoação de Vêdâlai, em 1538; e contra uma armada do Malabar, perto da
fortaleza de Cananor. Pode ver-se a sua autobiografia em Archivo Bibliographico
(Coimbra 1877).
6
Breviário, oração do terceiro domingo de Pentecostes.
7
A Irmandade da Santa Fé foi fundada em 1541, na igreja de Nossa Senhora da Luz.
A sua sede, naquela altura, era aí, na capela da Conversão de S. Paulo, seu padroeiro,
e a ele foi dedicada também a futura igreja do colégio.
8
O nome da confraria era: «Irmandade da conversão à Fé». Daí o chamarem também ao colégio «da Santa
Fé» .
9
O altar privilegiado, com indulgência plenária em favor dos defuntos, foi
concedido em 1549.
Qualidades dos da Companhia que tenham de vir para Índia: selectos, de
boa saúde e de idade não avançada; variedade de ministérios que os esperam
5. Certo estou
de que, os que hão-de vir da nossa Companhia, hão-de ser pessoa ou pessoas em
quem vós muito confieis, pois hão de ter cargo de um tal colégio como este. Hão
de passar muitos trabalhos, pois os desta terra são grandes, tanto ela debilita
os que não são criados nela. Pensai numa coisa: que tanto o mar como a terra os
hão-de provar para quanto são. Não é esta terra senão para homens de grande
compleição e não de muita idade. Mais é para mancebos que para velhos, embora
para velhos saudáveis seja boa. Com muita caridade e amor da gente desta terra
serão recebidos os que da nossa Companhia vierem. Hão-de ser muito importunados
para muitas confissões, Exercícios Espirituais e pregações. Pensai que
encontrarão muita messe10. Há já mais de sessenta rapazes, naturais da terra,
dos quais está encarregado um Padre Reverendo11. Estes, neste Verão, irão
habitar no colégio. Entre eles, há muitos, e quase todos, que sabem ler e rezar
o ofício e, muitos deles, escrever. Estão já capazes de estudar gramática. Esta
informação vos dou, para que daí provejais quem aqui se ocupe só em ensinar
gramática, que terá muita ocupação.
Acima de tudo há necessidade de um pregador para os fiéis, missionários
para os infiéis e professores para o colégio. Privilégios e indulgências a
pedir à Santa Sé, devidamente confirmadas por Bulas
6. Dos que
hão-de vir, deseja o senhor Governador que, entre eles, viesse algum pregador,
o qual se ocupasse com os clérigos em Exercícios Espirituais, ou em ler-lhes
alguma coisa da Sagrada Escritura ou de matéria de sacramentos, porque os
clérigos que vêm para a Índia não são todos letrados12; e [que] juntamente com
isto, pondo por obra o que lhes lesse e ensinasse, os movesse e inflamasse no
amor de Deus e salvação dos próximos, ao verem-no pôr em execução o que lhes
lesse, pois as obras é que movem mais que as palavras. E os outros se ocupassem
em confissões, em ministrar sacramentos e conversar com os gentios desta ilha,
porque haveriam de converter muitos, e fazer infinito fruto nas almas dadas à
idolatria: que muitas delas, por não saberem quem as ajude a sair de tanta
ignorância, chegam a tanta infidelidade por não conhecer o seu Criador e
Senhor. Espera o senhor Governador que de Roma hão-de vir três clérigos e um
mestre de gramática, porque assim me parece que escreve ao Rei: para que Sua
Alteza escreva a Sua Santidade pedindo-lhe quatro da nossa Companhia, e também
acerca das nossas indulgências, de que na outra carta vos escrevo13, para que o
Rei proveja em Roma para que se despachem. Se as trouxerem os que da nossa
Companhia vierem, tende a certeza que terão ganho as vontades de todos os
portugueses que há na Índia, além de muita autoridade e crédito com todos eles,
o que é grande parte para imprimir nas suas almas todas as coisas espirituais.
Entre todas as nações que tenho visto, creio que a portuguesa leva vantagem a
todas, em estimar as graças ou indulgências de Roma. A concessão destas graças
será causa de que muitos mais se acerquem dos sacramentos e, tanto por esta
razão como por serem os portugueses muito obedientes, virá a conceder-lhes as
indulgências que esperam. Todas as graças que daí trouxerem os da nossa Companhia,
hão-de trazê-las muito autorizadas por Bulas de Sua Santidade, para maior
autoridade e maior aumento de devoção.
Pede a Inácio que escreva ao Governador e lhe consiga algumas graças da
Santa Sé
7. O senhor
Governador, pelo que creio, também vos escreve. Embora não vos conheça de
vista, é muito vosso devoto e de todos os da Companhia. Não deixeis de
escrever-lhe e mandar-lhe um par de rosários de contas, um para sua mulher14 e
outro para ele, com todas as graças, indulgências, que de Sua Santidade
puderdes alcançar: há-de os muito estimar, tanto pelas graças, indulgências,
que Sua Santidade lhe há-de conceder, como por enviar-lhas vós. Mais vos pede o
senhor Governador e é que, pela muita confiança que em vós tem, lhe alcanceis
esta graça e privilégio de Sua Santidade: que todas as vezes que se confessar
ele e sua mulher, filhos e filhas15, lhes conceda Sua Santidade aquelas indulgências
que ganhariam, se todas as sete igrejas de Roma em pessoa visitassem. Nisto
receberia o senhor Governador grande caridade de vós; e pensaria, de mim, que
algum crédito tenho convosco, se, por escrever-vos eu da sua parte, alcançardes
de Sua Santidade estas graças e as outras. Assim acabo, rogando a Cristo Nosso
Senhor, pois por sua infinita misericórdia nos juntou nesta vida, que depois da
morte nos leve à sua santíssima glória.
De Goa, a 20
de Setembro, ano 1542
Vosso filho em
Cristo, FRANCISCO DE XABIER
10
Cf. Mt 9,37.
11
Mestre Diogo, nascido em Borba (Alentejo), saiu da Ordem franciscana e partiu
como pregador para Goa em 1538, onde foi um dos fundadores do colégio de S.
Paulo e seu primeiro reitor. Morreu em 1547. Não confundir com Frei Diogo de
Borba, OFM, eleito Provincial da província da Piedade em 1529; 1535; 1543
(SCHURHAMMER, Ceylon 146).
12 Cf. SCHURHAMMER, Quellen
408.
13 Xavier-doc. 17.
14
D. Ana Pimentel. Não acompanhou o Governador para a Índia.
15
«Do seu consórcio com D. Ana Pimentel, nasceram cinco filhos e três filhas, a
saber: Pero Lopes, Lopo Roiz (que morreu no mar, quando ia com seu pai para a
Índia em 1541-42), Pero Afonso, Rodrigo Afonso, Gonçalo, Inês, Brites, Catarina)»
(História da colonização portuguesa do Brazil III 112-114).
17
AO PADRE INÁCIO DE LOYOLA (ROMA)
Goa, 20 de Setembro 1542
Duma cópia em castelhano, feita em Coimbra em 1543
A graça e paz de Jesus Cristo
nosso Senhor esteja sempre connosco. Amen.
O Governador pede graças para a Índia
1. O senhor
Governador – a quem todos nós, assim os que estamos nas Índias, como os que
estais em Roma, muito devemos, por ser um senhor muito zeloso do serviço de
Deus, e por um amor e vontade muito íntegra que nos tem – rogou-me que vos
escrevesse a dar-vos parte de algumas necessidades espirituais que aqui há. E
por ser bem inclinado a todas as obras pias, e serem os seus pedidos muito
conformes a toda a piedade e virtude, obrigou-me a que vos escreva a dar-vos
parte de algumas coisas.
Indulgências para a festa de S. Tomé, patrono da Índia
2. A primeira
é que vos pede, por serviço de Nosso Senhor Jesus Cristo, que, uma vez que a
gente desta terra é muito devota do glorioso apóstolo São Tomé por ser patrono
de toda esta Índia, para acrescentamento da devoção dos seus devotos, Sua
Santidade conceda indulgência plenária, no seu dia (21/dezembro) com suas oitavas, a todos aqueles que se confessarem e
comungarem no seu dia e suas oitavas, e os que não se confessarem e comungarem
que não ganhem as indulgências. A isto se move o senhor Governador por amor de
que a gente se confesse e comungue. É para dar graças a Nosso Senhor, ver
quanto bem sente o fruto destes sacramentos. Também pede isto, porque na
Quaresma é Verão nesta terra, e toda a gente anda na armada por mar. É que aqui
os portugueses são senhores do mar e os infiéis da terra e, na Quaresma, toda a
gente anda na guerra e os mercadores a navegar, e não se confessam nem comungam
por não estarem em terra. Por esta causa, deseja o senhor Governador que Sua
Santidade conceda esta graça, para que a gente mais se chegue aos sacramentos.
Esta concessão será como outra Quaresma.
Para os doentes e para os que os tratam
3.
E também vos pede o senhor Governador, por amor e serviço de Deus Nosso Senhor,
que, para os hospitais desta terra, alcanceis de Sua Santidade esta graça: que
todos os enfermos e os que servem os enfermos nos hospitais, todas as vezes
que se confessarem e comungarem, ganhem indulgência plenária, e os que nos
hospitais morrerem, que sejam absolvidos de culpa e pena. Tudo isto procura o
Governador para atrair a gente aos sacramentos, e aos sãos para que sirvam com
amor os enfermos e se ocupem de obras pias, e todos sirvam e conheçam a Deus e
dêem bom exemplo aos infiéis, entre os quais habitamos e vivemos.
Para os que visitarem em determinados dias
os santuários de Nossa Senhora
4. por ser o
senhor Governador muito devoto de Nossa Senhora, e está a maior parte do tempo
em Goa com grande corte esta cidade está numa ilha que é de três léguas e há
nesta ilha algumas ermidas de Nossa Senhora muito devotas, ricas de edifícios
e ornamentos, de clérigos que as servem, e de tudo o necessário faltando-lhes
só graças espirituais, e a seus tempos cada ermida faz as suas festas com
muitos aparatos pede o senhor Governador, para acrescentamento da devoção
destas casas, e para ue nos seus festejos Nossa Senhora seja deveras honrada de
vivos templos espirituais, que em tais dias todos os que se confessarem e
comungarem, ganhem indulgência plenária visitando tais ermidas; e os que não se
confessarem e comungarem, que não as ganhem.Destas graças há mais necessidade
na Índia que em qualquer outra parte de cristãos, porque aqui há poucos
confessores e muitos cristãos, tanto portugueses como naturais da terra.
Muitos gentios se convertem cada dia, e não é possível confessarem-se todos na
Quaresma. O que nesta parte pretende o senhor Governador é fazer que toda a
gente se confesse e comungue. Para isto pede a Sua Santidade estas graças: para
atrair a gente aos sacramentos, e fazer que todos conheçam os verdadeiros
tesouros que Cristo Nosso Senhor nos deixou nesta vida para ir à outra.
Para a Irmandade da Misericórdia
5. haveis de
saber que nesta terra, na maior parte dos lugares de cristãos, há uma companhia
de homens muito honrados, que se encarregam de amparar a toda a gente
necessitada, tanto aos naturais cristãos como aos recém-convertidos. Esta
companhia de homens portugueses chama-se Misericórdia3. É coisa de admirar ver
o serviço que estes bons homens fazem a Deus Nosso Senhor, em favorecer a todos
os necessitados. Para que a devoção desta boa gente seja acrescentada, pede o
senhor Governador a Sua Santidade que conceda a todos os confrades desta santa
Misericórdia que, confessando-se e comungando cada ano, ganhem indulgência
plenária e, na morte, absolvição de culpa e pena. Isto por amor de que
exercitem com maior fervor as obras de misericórdia ao verem que Sua Santidade
assim os favorece. E, uma vez que a maioria deles são casados, que as suas
mulheres participem da mesma graça.
Faculdade para que os Vigários do Bispo possam administrar o
sacramento da Confirmação, pela distância que há duns lugares a outros
6. haveis de
saber que os portugueses, nestas partes da Índia, são senhores do mar4 e de
muitos lugares que estão pegados ao mar, nos quais o Rei de Portugal tem
fortalezas. Nestas fortalezas, há lugares de cristãos, habitados por
portugueses casados. A distância de uns a outros é muito grande, porque desta
cidade de Goa a Maluco, onde o Rei tem uma fortaleza5, há 1.000 léguas; e daqui
a Malaca, onde há muitos cristãos, há 500 léguas; e daqui a Ormuz6, que é uma
cidade muito grande, onde há muitos portugueses, há 400 léguas; e daqui a Diu7,
há 300 léguas; e daqui a Moçambique há 900 léguas; e daqui a Sofala8 há 1.200
léguas. Em todos estes lugares tem o Bispo postos vigários. Pela distância que
vai duns lugares a outros, não os pode o Bispo visitar. Vendo o senhor
Governador a necessidade que todos temos de participar do sacramento da Confirmação,
pela muita contratação, cativeiro e guerra que continuamente temos com
infiéis, pede a Sua Santidade que, para maior firmeza, perseverança e
acrescentamento da nossa santa fé, dispense com o Bispo, o único Bispo nestas
partes da Índia para que possa confiar aos seus vigários a administração do
sacramento da Confirmação nesses lugares longínquos ou quaisquer outros, sejam
quais forem, que ele não possa visitar, mesmo que queira, dada a distância tão
grande que há de uns a outros, e ser ele 9.
3
A primeira Confraria da Misericórdia foi fundada em 15 de Agosto de 1498 em
Lisboa pela rainha D. Leonor, viúva de D. João II, a conselho do seu confessor
Fr. Miguel de Contreiras, O. SS. Trin. A ela sucederam logo muitas outras por
todo o império português.
4
Cf. Lendas da Índia. Ao contrário dos domínios de território no Ocidente (ilhas
atlânticas e Brasil), os portugueses no Oriente interessavam-se sobretudo com
o domínio dos mares sem pretensões de ocupar os países circundantes, a não ser
portos de apoio em lugares estratégicos. Com esses países procuravam sobretudo
ter boas relações comerciais e diplomáticas (Xavier-doc. 19,4; 61,1; 55,3;
109,5; Francisco Javier – su vida y su tiempo: «Desde el Cabo hasta la China»).
5
Ternate. A palavra Maluco aplica-se umas vezes à fortaleza, outras à ilha de
Ternate, outras às Molucas em sentido restrito ou amplo.
6
Ormuz, no golfo Pérsico.
7
Diu, fortaleza na ilha do mesmo nome, junto ao extremo meridional da península
de Kathiawar (Gujarat).
8
Sofala, fortaleza entre os rios Zambeze e Save, perto da Beira (Moçambique).
9 O privilégio foi concedido pelo Breve «Cum sicut
carissimum» de 28. Out. 1546. Foram enviados exemplares aos vigários dos
seguintes lugares: Maluco, Malaca, Macassar, Choromandel, Cazatora (Socotorá)
Coilão (Quilon), Ormuz, Sofala, ilha de Moçambique, Ceilão. Na ilha de Socotorá
não havia então nenhum vigário.
Poder-se trasladar a Quaresma para os meses de Junho e Julho
7. Desta terra
vos faço saber que, quando aí é Verão, aqui é Inverno10, e quando aí é Inverno,
aqui é Verão: tudo ao contrário do daí. O Verão aqui é muitíssimo trabalhoso,
por causa dos grandes calores. São tão grandes que o pescado logo apodrece mal
o matam. Aqui, a gente, no Verão, anda no mar de um lado para o outro; no
Inverno o mar é tão desesperado e bravo, que ninguém navega. No tempo da
Quaresma a gente de guerra anda toda na armada pelos mares, e os mercadores
andam de um lado para o outro negociando com as suas fazendas, porque aqui
todos vivem de comércio, por não serem senhores da terra mas apenas do mar. De
maneira que, por causa dos grandes calores e por nesse tempo a gente andar a
navegar, não se guarda a Quaresma, nem jejuando nem deixando de comer carne.
Disse-me o senhor Governador que vos escrevesse dando-vos parte de tudo, rogando-vos
muito que, por amor e serviço de Deus Nosso Senhor, se fosse possível, que o
tempo da Quaresma se mudasse para outro tempo em que a gente não anda a
navegar nem os mercadores andam em negócios por mar, que é por Junho ou Julho,
porque nestes dois meses é a força do Inverno, durante o qual não há calor nem
a gente navega: nesse tempo muito temperado, jejuariam muitos e não comeriam
carne, a gente confessar-se-ia e comungaria, des [vós] a vontade a todos os de
aqui, e participardes do muito serviço de Deus com tanta ocasião de merecimento
que aos daqui e haveria mais memória da Quaresma do que a há. Uma vez que isto
é serviço de Deus Nosso Senhor e grande, roga-vos muito o senhor Governador
que, o que neste ponto se poderia fazer, não deixe de pôr-se em execução11 por
falta de não haver quem o procure. O prémio de todos estes trabalhos, diz Sua
Senhoria que será ganharhaveis de dar.
(Ps)Deseja notícias do colégio de Coimbra
8. Quando de
Lisboa parti, para vir para a Índia, escrevi-vos acerca de um colégio da nossa
Companhia que o Rei queria fazer na universidade de Coimbra. Mandou-me Sua
Alteza que vos escrevesse para que, de Roma, mandásseis algum da Companhia,
oferecendo-se Sua Alteza a dar toda a ajuda e favor para a edificação do dito
colégio. A necessidade que tem de homens, para prover, a tantas terras de
infiéis, de quem os ensine na fé de Jesus Cristo, mostra quanta causa tenha o
Rei para fazer este colégio da nossa Companhia. Por amor de Nosso Senhor vos
rogo que me façais saber o que nisto se fez.
De Goa, ano de
1542, a vinte de Setembro
Vosso filho em
Cristo, FRANCISCO DE XABIER.
10
O Inverno (monção) dura, na costa ocidental da Índia, desde Junho até Setembro.
11
Em 1548, o próprio Xavier desistiu, ao ver, pela experiência, que esta mudança
não era necessária (Xavier-doc. 60,3).
18
LICENÇA PARA REZAR O BREVIÁRIO NOVO
Goa, 21 de Setembro 1542
Cópia em português, feita em 1641
Eu, Mestre
Francisco, concedo1 a vós, Pe. Agostinho, que possais rezar o Ofício do
Breviário novo, porque para seis tenho licença de dar faculdade de rezar o
Ofício novo. E porque assim é verdade, pus aqui o meu próprio sinal.
Aos 21 de Setembro de 1542.
MESTRE FRANCISCO
1
Esta licença já Xavier a tinha pedido de Lisboa em 1540 (Xavier-doc. 9,4).
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