Na Itália (1537 a 1540)

PEREGRINAÇÃO DE PARIS A VENEZA – PRIMEIRA MISSÃO

Primeiros passos em missão - Tinha-se, combinado, como já fica dito, que os discípulos de Inácio se reuniriam em Veneza, nos primeiros dias do ano de 1537. Nessa data era já o seu número mais crescido.
Arrastados pelo poder do exemplo, três jovens, igualmente distintos nas Ciências, e notáveis pelos seus merecimentos pessoais, haviam-se incorporado aos nossos ferventes religiosos com a resolução firme de partilharem da mesma vida de pobreza, humildade, obediência e devoção. Eram dois padres, Cláudio Lejay e Estevão Brouet, e um secular, João Codure. Todos três haviam feito iguais votos em dia da festa da Assunção de Maria, e Xavier e seus irmãos renovaram os seus na mesma ocasião.
Partiram, pois, com destino a Veneza, em número de nove: Francisco Xavier, Pedro Fabro, Diogo Laynez, Afonso Salmeron, Simão Rodrigues, Nicolau Bobadilha, Cláudio Lejay, Estevão Brouet e João Codure. Puseram-se a caminho a 15 de Novembro de 1536, vestidos de longas batinas, levando cada um o seu bastão na mão, o breviário debaixo do braço e o rosário pendente exteriormente sobre o peito, com o fim mostrarem, nos países protestantes que tinham de atravessar, a sua dedicação à religião católica; levavam às costas pequenos malotes com alguns livros e manuscritos.
Empreenderam a jornada a pé, esmolando pelo caminho, e porque a guerra com Carlos V tornava impraticável uma grande parte da fronteira, viram-se na necessidade de alongarem muito mais o seu itinerário, passando pela Lorena, seguindo pela Alemanha e atravessando pela Suíça para alcançarem a Itália.

Peregrinação e fracasso físico de Francisco - Xavier, que se considerava feliz por ver realizado aquilo que o seu zelo e fervor religioso tanto desejara, seguia corajosamente seus irmãos, havia já muitos dias, quando repentinamente lhes declarou, com a mais pungente tristeza, que não os podia acompanhar por que se não sentia com forças de prosseguir mais para diante:
- Porque motoro? perguntaram-lhe os outros imediatamente. Estais doente, não é assim?
- Sim... é verdade...
- E não há que duvidar, disse Fabro, que o conhecia mais de perto; o vosso semblante denuncia grandes sofrimentos. Que tendes?
- Tenho alguma febre... e conheço que não posso, andar mais... Continuai, meus amigos, a jornada sem mim... eu vos alcançarei em breve.
- Que vos deixemos aqui! que vos abandonemos! Por certo que não. Deve haver nesta aldeia, ou nas suas proximidades, um médico; recorreremos a ele para vos tratar e não vos deixaremos.
- À palavra médico, Francisco empalideceu e dirigindo ao seu amigo um olhar suplicante, disse-lhe:
- Oh! não, imploro-vos que me deixeis aqui e partais.
Fabro, porém, insistiu, e Xavier viu-se forçado a confessar toda a verdade àquele que possuía, há muito, toda a sua confiança. Eis o que ele veio a saber.
Que um dos maiores prazeres de Xavier, nos seus passados tempos de infância, eram as corridas e outros exercícios do corpo, nos quais se tornava notável e causava admiração, pela grande agilidade e graça dos seus movimentos. Era tão destro em todos os exercícios ginásticos, e executava-os com tal destreza e perfeição, e isto junto à sua natural elegância e notável beleza, produzia um tal entusiasmo nos espectadores, que o levaram a comprazer-se com aquele gênero de divertimento, orgulhando-se dos aplausos que recebia.
Esta vaidade foi amargamente lamentada por Francisco, desde que compreendera a ilusão dela, e no desejo de a expiar imaginou ligar fortemente as pernas, até acima dos joelhos, com rijos cordéis e por tal modo, que depois de alguns dias de jornada, lhe produziram tão grande inchação que encobria completamente as ligaduras já enterradas na carne. O jovem Santo sofrera até ali com a maior resignação aquela tão dolorosa tortura, sem que nenhum dos seus irmãos e companheiros suspeitassem o suplício que sé impunha.
Fabro comunicou imediatamente aos seus companheiros esta triste descoberta; transportaram o querido doente até à aldeia mais próxima e chamaram um cirurgião que declarou desde logo ser a operação impraticável.
- Só Deus, disse ele, pode evitar os funestos resultados que devem sobrevir, tendo em atenção a causa porque o sacrifício foi feito. Tentar retirar as ligaduras, é expor o doente a morrer durante a operação.
Xavier, cheio de confiança na bondade infinita, e certo de que ela não permitiria que ele servisse de obstáculo à pronta partida dos seus irmãos, rogou-lhes que suplicassem a Deus esta prova da sua proteção à empresa encetada.
- O cirurgião tem razão, disse ele, é necessário pedir a Deus que me livre; Ele o fará, tenho nisso toda a confiança.
No mesmo instante todos se entregaram à oração; era quase noite. O doente dormiu e teve um sono tranqüilo; na manhã seguinte viu-se que as ligaduras tinham caído por si em pequenos fragmentos, a inchação. havia desaparecido de todo, extinguira-se a inflamação, os cordéis não tinham deixado o menor vestígio sobre a pele, e Xavier sentia-se cheio de saúde.
Depois de fervorosas orações em ação de graças, puseram-se de novo a caminho. A passagem dos nossos peregrinos pela Alemanha não foi isenta de perigos.

Providencia - Os heréticos, reconhecendo a sua ortodoxia pelo rosário que ostensivamente levavam, apupavam-nos com ultrajes e ameaças. A Providência, porém, que por eles velava, mimava-os a suportar todas estas provas sem se lastimarem, e ate agradecendo do fundo do coração e pedindo a Deus a conversão destes pobres desgarrados; graças a esta proteção divina, chegaram salvos a Veneza a 8 de janeiro de 1537.
O seu santo mestre recebeu-os com lágrimas de ternura e bondade paternal. Desejava que os seus amados discípulos fossem apresentados ao Sumo Pontífice antes de partirem para a Palestina;

Auxílio no hospital em Veneza na Itália - Porém a viagem para Roma não podia também ser desde logo efetuada, e nesta contrariedade distribuiu-os pelos diversos hospitais de Veneza, cabendo o dos incuráveis (leprosos) a Xavier.
Para se poder avaliar os progressos que o nosso Santo havia já feito, sob a direção de Santo Inácio, recordemo-nos do que ele era no colégio de Santa Bárbara, quatro anos antes, e vejamo-lo agora no hospital dos incuráveis, quando lhe disseram que existia, numa sala vizinha, um doente com uma úlcera tão repugnante, que era necessário uma coragem sobre-humana para se poder aproximar dele.
Nunca, até então, o elegante Francisco pudera ver uma úlcera; tinha por esta espécie de doença um tal horror instintivo, que o fazia fugir imediatamente; porém era já, outro, tornara-se um homem novo; via-se por tal modo transformado que ouvindo falar do doente, que todos evitavam, o seu semblante irradiou-se de alegria.
Reconhece que era esta a ocasião de vencer uma repugnância que lhe parecia invencível, mas da qual esperava triunfar com o auxílio de Deus.
O seu presado mestre, Inácio, muitas vezes lhe dissera: "Francisco, lembrai-vos que se não adianta no caminho da virtude, senão quando se tenha triunfado de si próprio! É tão rara a ocasião para um grande sacrifício, que não se deve deixar escapar!"
Era esta, pois, para Xavier uma daquelas ocasiões que ele não devia deixar passar. Pediu para ver o doente; aproximou-se imediatamente dele, cheio de força e de coragem... Porém o cheiro que exalava e ele sentia, fez-lhe tal repugnância que lhe pausou uma grande comoção e vacilou nauseado!... Era chegado o momento de triunfar de si mesmo para dar um passo mais na renda da virtude, segundo a máxima do seu santo amigo.
Firme neste pensamento, vai desenvolver toda a generosidade do seu caráter: por maior que seja o sacrifício ele o fará.
Xavier cai de joelhos ao lado do doente, abraça-o carinhosamente, fala-lhe de Deus, consola-o e anima-o, em mau italiano, é verdade, mas com tão caridosa expressão que se tornou muito mais eloqüente do que o poderia ser na mais apurada linguagem. Descobre imediatamente o membro ulcerado... A repugnância cresceu!... Porém o jovem Santo quer triunfar a todo o preço, porque sabe que o combate se dá sob as vistas de Deus!
Aproxima o seu belo rosto do membro purulento e empalidece... a natureza revolta-se... Xavier sente-se desfalecer... Apressa-se, por isso, a levar os seus lábios para a hedionda chaga! Beija-a! e para ir mais longe... chupa-a!!!
Deus esperava esta última vitória.
Xavier considera-se então mais feliz por ter triunfado de si, do que havia sido até ali pelos seus brilhantes feitos do mundo.

Enfermeiro de Deus a serviço dos pobres doentes - Por este único traço da sua vida, se pode julgar do emprego que ele deu ao seu zelo, à sua caridade, e á sua mortificação durante as seis semanas que viveu neste lugar de sofrimentos. Enfermeiro e servente dos doentes pobres, preferia desempenhar os serviços mais vis, julgando-se feliz por expiar com aqueles exercícios de caridade, sem glória aos olhos dos homens, a vaidade que de contínuo lhe remordia a consciência.
Não era sem luta que ele.dominava as suas repulsões naturais. Julgava-se nobremente vencedor pelos bons resultados que obtivera; porém ficava-lhe ainda uma repugnância a subjugar: a vista dum cadáver fazia-lhe mal, e deles procurou fugir sempre... mas conseguiu ainda mais este sacrifício, aproximando-se e amortalhando todos os cadáveres dos pobres que morreram naquele hospital, durante a sua residência ali.
Queria triunfar completamente de si; procurava aproveitar todas as ocasiões de se sacrificar, a fim de avançar dia a dia pelo caminho da virtude.
Os doentes afeiçoaram-se desde logo aos desvelos e cuidados de Francisco Xavier; até então nunca haviam experimentado cuidados tão cheios de doçura e de afeto.
Ele dispunha de lenitivos para todos os sofrimentos, ânimo para todos os pesares, palavras meigas e consoladoras para todas as dores, e, finalmente, duma caridade evangélica. para todos, fazendo-os amar com o mais notável desinteresse.
"Que virá a ser de nós, diziam os doentes, se tivermos a desgraça de o ver deixar o hospital?!...".
Infelizes e pobres doentes

02 - DE VENEZA A ROMA - TRABALHOS E FADIGAS - AUDIÊNCIA DO PAPA

Mortificação dos viajantes - Pelos fins da Quaresma daquele ano partiram de Veneza os discípulos de Inácio de Loiola com destino a Roma.
Tiveram uma jornada longa e bem penosa; andaram sempre a pé e pedindo esmola, que muitas vezes lhes era negada.
"Caminharam durante três dias ao longo da borda do mar, para se dirigirem a Ravena, sem poderem obter um bocado de pão, sequer. Depois dos sofrimentos e fadigas passadas em Veneza, era isto demasiado para os não extenuar completamente; alguns de entre eles caíam por não poderem dar um passo mais, e isto causava o maior desgosto aos companheiros."
"A umidade da estação, que era excessivamente chuvosa, expunha-os também a contínuas incomodidades: depois de se molharem durante todo o dia, passavam muitas vezes as noites em pleno ar, e consideravam-se felizes quando encontravam uma pouca de palha para lhes servir de cama e se cobrirem!"
"Como não tinham dinheiro para pagarem a passagem dos rios, viam-se na necessidade de deixarem aos barqueiros, umas vezes uma velha faca, outras um tinteiro ou qualquer coisinha do seu uso, e muitas vezes até parte dos seus pobres vestuários."
"Numa destas ocasiões em que se viram embaraçados por não poderem satisfazer um barqueiro descontente e impertinente, um deles, que não era ainda sacerdote, viu-se forçado a deixar o seu breviário em hipoteca, além de ficarem os seus companheiros em reféns."
"De volta, com o preço exigido, os desembarcou e percorreu a cidade de Âncona esmolando para desempenhar o seu breviário."
"...Muitas vezes tiveram de percorrer grandes distâncias com água até à cintura e mesmo até ao peito. Um dos viajantes recebeu a graça duma imediata recompensa às suas fadigas, porque achando-se doente duma perna, em conseqüência de aquecimento do sangue, permitiu Deus que saísse completamente curado deste banho inoportuno."
"Em Ravena tiveram os peregrinos viajantes um momento de repouso, porque foram recebidos no hospital, mas não lhes deram senão um só leito. Três de entre eles, mais fatigados. do que os outros, deviam ser preferidos; e quando notaram a repugnante indecência das roupas da cama, decidiram utilizar-se dela mais por penitência do que por necessidade."
"Simão Rodrigues, que era um dos três, renunciou a ela e estendeu-se no chão, achando este leito mais duro, é verdade, porém mais decente do que aquele que se lhe oferecia. Logo, porém, sentiu remorsos por haver fugido àquela mortificação e prometeu castigar-se na primeira ocasião que se lhe deparasse..."

Xavier pedindo esmolas - "No prosseguimento da jornada, os que encontravam os nossos peregrinos, estrangeiros todos, igualmente vestidos e dirigindo-se para Roma, consideravam-nos como homens maus que vinham a Itália com o fim de solicitarem perdão de faltas cometidas, ou de serem absolvidos de crimes enormes."
"Caminhavam três a três, um Padre e dois minoristas, espanhóis e franceses, tão unidos pelo coração como se tivessem a mesma pátria ou nascessem da mesma mãe. Cada um deles sofria mais pelos seus companheiros do que pelos seus próprios males, c sem cuidar de si, se ocupavam em consolá-los e socorrê-los".
O P. Bártoli, a quem tomamos este trecho, reproduz também um notável fragmento da descrição desta viagem escrita por um daqueles heróicos peregrinos, e que não resistimos ao desejo de fazê-lo conhecido dos nossos leitores, persuadidos de que o trecho citado se refere ao nosso Santo.
"Quando eu percorria Ancona, diz aquele Padre, para recolher esmolas com que pudesse desempenhar o meu breviário, descobri na grande praça um dos nossos, que, molhado e de pés descalços, se dirigia às mulheres do mercado pedindo-lhes, ora uma fruta, ora alguns legumes. Parei a observá-lo, e recordando-me da nobreza do seu nascimento, das riquezas --que ele havia abandonado, dos seus grandes talentos naturais, da vastidão de seus conhecimentos adquiridos e das virtudes que tanta importância e consideração lhe teriam dado no mundo, senti-me por tal modo impressionado que me reconheci indigno de ser companheiro de tais homens".
Citemos ainda, seguindo o P. Bártoli, um patético ato de bondade da divina Providencia em favor desses heróis evangélicos que haviam deixado tudo para imitarem Jesus Cristo e fazer adorar a sua cruz.
"Depois de terem passado três dias em Loreto, aonde puderam gozar largamente das doces alegrias, da piedade e algum repouso, puseram-se a caminho para Roma, e chegaram a Tolentino de noite sem terem sequer um bocado de pão para reparar a fome e as fadigas do dia. Chovia copiosamente, e não encontraram pelo caminho uma alma a quem pudessem estender a mão à caridade."
"Três de entre eles iam na frente, outros seguiam ao longo dos muros, algum tanto abrigados da chuva, e um só caminhava pelo meio da rua, não temendo molhar-se nem enlamear-se mais do que o estava já, quando inesperadamente viu dirigir-se para ele, através da lama, um homem de bela aparência, de figura agradável, segundo ele pôde julgar. Este homem deteve-o e tomando-lhe a mão depositou nela algumas moedas, retirando-se em seguida sem dizer uma palavra."
"Logo depois chegaram a um albergue, onde encontraram pão, vinho e figos secos, magnífica refeição para eles e para alguns mendigos com os, quais repartiram”.

Recepção em Roma - O primeiro cuidado dos nossos viajantes, logo que chegaram a Roma, foi o de visitar as principais igrejas, e quando acabavam de cumprir aquela piedosa peregrinação, um personagem que nenhum deles havia notado, veio direto a Xavier, atravessando a rua, e apertando-lhe a mão, exclamou:
- Será verdade, caro Francisco? sois vós que eu encontro aqui neste estado desprezível e vestido dum tão estranho modo?
- Sim, senhor Pedro, sou eu mesmo; porém mais esclarecido por mestre Inácio, tocado da graça divina e disposto a não viver senão para a glória de Deus e para salvação das almas.
- E mestre Inácio também está em Roma?
- Não, senhor; ele espera-nos em Veneza onde o deixámos para vir aqui, por ordem sua, apresentarmo-nos ao Soberano Pontífice e pedir-lhe a sua bênção e autorização para irmos trabalhar pela conversão dos infiéis na Terra Santa.
- Pois bem! meu caro Francisco, vinde ao palácio da corte de Espanha, onde eu resido durante a minha permanência em Roma, na qualidade de enviado extraordinário do nosso soberano o imperador e rei, e eu me encarrego de solicitar prontamente uma audiência de Sua Santidade.
Francisco Xavier aceitou imediatamente, e com ele os seus irmãos, o meio que a Providência lhes proporcionava. Ficou, pois, combinado que ele iria na manhã seguinte, com Pedro Fabro, ao palácio da corte de Espanha para combinarem com Pedro Ortiz sobre o importante assunto que ali os levara.
Pedro Ortiz, enviado extraordinário de Carlos V junto da Santa Sé, conhecera e tratara intimamente com Francisco Xavier e Fabro em Paris; afeiçoara-se ao nosso jovem santo como se afeiçoavam todos que o conheciam, e por isso lhe fez as mais vivas instâncias para que aceitasse um quarto no palácio da embaixada, porém foi em vão. Francisco negou-se a deixar o asilo que obtivera no hospital espanhol, asilo que ele compartia com os seus irmãos e onde exercia a caridade nos momentos em que podia dispor de si.
Pedro Ortiz fora em Paris um dos mais implacáveis adversários de Inácio de Loiola; havia empregado todos os meios e todos os esforços possíveis para impedir que o jovem senhor de Xavier se deixasse arrastar para aquele caminho de pobreza e humilhações, que não podia compreender, e tornava a encontrar agora o amável e elegante Navarrês estendendo a mão, como um mendigo, pelas ruas da capital do mundo católico; achava-o pálido, desfigurado, magro e quase desconhecido.
Pedro Fabro procurou averiguar as causas desta transformação, e quando teve conhecimento das fadigas e privações de todo o gênero que aquela santa caravana havia suportado desde Veneza até Roma, quando soube que todos aqueles corações pulsavam de alegria no meio de tantos e tão acerbos sofrimentos, quando pessoalmente reconheceu quanto o nosso Santo se julgava feliz com o seu viver de abnegação e de penitência, Pedro só pôde admirar.

Encontro com o Papa - Apressou-se a falar ao Papa Paulo III, que ocupava então a Santa Sé, dos discípulos de Inácio, cujas virtudes se aliavam a uma grande sabedoria, dos seus desejos de obterem a mercê de serem admitidos a beijar os pés do pai comum dos fiéis, e a pedir-lhe a sua bênção apostólica e a necessária permissão para irem trabalhar na conversão dos infiéis da Palestina.
O Papa, em extremo satisfeito por saber daquele grande zelo da glória de Deus e pela salvação das almas, exprimiu o desejo de recebê-los na manhã seguinte e pediu a Pedro Ortiz que lhos apresentasse.
Foi dos mais benévolos o acolhimento do Soberano Pontífice aos nossos devotos peregrinos; Paulo III, desejando ouvir aqueles jovens doutores da Universidade de Paris, propôs-lhes algumas questões teológicas, que eles trataram com tanta proficiência, modéstia é humildade que o Sumo Pontífice ficou encantado de ouvi-los.
- Sou feliz, lhes disse ele, por ver em vós reunida tanta ciência a uma tal modéstia. Que poderemos fazer em vosso favor?
- Santo Padre, nós solicitamos a vossa permissão para irmos à Terra Santa pregar a doutrina de Jesus Cristo, nos mesmos lugares em que Ele deu todo o seu sangue pela salvação do mundo, e suplicamos a Vossa Santidade que se digne conceder-nos a sua bênção para que ela nos garanta a de Jesus Cristo em todos os trabalhos que desejamos empreender.
- Convencemo-nos que será quase impossível, atualmente, a viagem à Terra Santa, respondeu o Papa; por que achando-se declarada a guerra, serão interceptadas as passagens e estes obstáculos serão, sem dúvida, de longa duração; porém o vosso zelo pode ser empregado muito útilmente em outros lugares.
Abençoou-os em seguida com paternal afeição, deu-lhes uma considerável esmola e concedeu, aos que não eram ainda sacerdotes, permissão para receberem as sagradas ordens de qualquer bispo e em qualquer parte, na qualidade de pobres voluntários.]

carta 2
DECLARAÇÃO DOS PRIMEIROS JESUITAS
SOBRE O VOTO DE OBEDIÊNCIA QUE HAVIAM DE FAZER
Roma, 15 de Abril 1539
Duma cópia em latim, feita no sec.XVI

HISTÓRIA – Os companheiros de Inácio de Loyola deixaram Paris em 1536 para se dirigirem a Veneza e aí prepararem a peregrinação à Terra Santa a que se tinham obrigado por voto em Montmartre (Paris). Impedidos pela guerra com os turcos, diri­giram-se a Roma, para se oferecerem ao serviço do Papa. Mas, como o Papa quisesse co­meçar a mandar alguns para diversas partes, os companheiros, antes de se dispersarem, quiseram deliberar sobre o seu futuro como grupo. Por isso, «desde meados da Qua­resma» de 1539, fizeram essas deliberações que, terminadas em 24 de Julho, seriam o fundamento do primeiro esboço de Constituições da Companhia de Jesus que viriam a fundar. Um relatório contemporâneo dessas deliberações, escrito por mão de António de Estrada, conservou-se (MI Const. I 2-7; cf. p. XXXV-XL). Na primeira noite foi proposta a dúvida, se convinha ou não que os companheiros se organizassem num cor­po. Resolvida esta dúvida pela afirmativa, passaram a outra mais difícil: se, além dos votos que já tinham feito, de castidade e pobreza, convinha fazerem um terceiro – o de obediência. «Depois de termos discutido, por muitos dias, os prós e contras, concluímos, sem discordância absolutamente de nenhum, que a solução da dúvida era: ser para nós mais vantajoso e até necessário, prestar obediência a alguém dos nossos» (ib. 7).
­­­­­­­­­­­­­­­­
Eu N., abaixo assinado, declaro, em presença de Deus onipotente, da beatíssima Virgem Maria e de toda a corte celestial, que, tendo feito antes oração a Deus e pensado maduramente o assunto, livremente determinei ser, a meu juízo, mais conducente à glória de Deus e perpetuidade da Companhia, que houvesse nela voto de obediência, e deliberadamente me ofereci, mas sem voto nem obrigação alguma, a entrar na Companhia, se o Papa, por conces­são do Senhor, vier a confirmá-la; para memória desta deliberação [que por dom de Deus reconheço ter assumido], me acerco agora à sacratíssima comunhão, embora indigníssimo, com essa mesma deliberação.
Terça-feira, quinze de Abril 1539

CÁCERES1, JOÃO CODURI2, LAÍNEZ3, SALMERÓN4, BOBADILLA5, PASCÁSIO BROET6, PEDRO FABRO7, FRAN­CISCO8, IGNACIO9, SIMÃO RODRIGUESJAYO 10, CLAUDIO 11

1 - Diogo de Cáceres, espanhol, amigo de Inácio em Paris, cujo instituto deter­minara seguir, chegara em princípios de 1539 a Roma, onde veio a participar nas deliberações dos companheiros. Nesse mesmo ano, regressou a Paris, onde continuou os estudos com outros estudantes da Com­panhia e foi ordenado sacerdote. Mas em 1541 deixou a Companhia de Jesus e passou ao serviço de Francisco I, rei de França. Não confundir este Diogo de Cáceres com outro companheiro de Inácio em Alcalá, Lope de Cáceres (natural de Segóvia), num grupo que já se tinha desfeito.
2 - João Codure, nascido em Seyne (Provence) em 1508 ou 1509, juntou-se em Paris ao grupo de Inácio em 1536, e veio a morrer em Roma em 1541 (Epp Broeti 409-413; TACCHI VENTURI, II 123-124; KOCH 344).
3 - Diogo Laínez, nascido em Almazán em 1512, foi estudar para Paris em 1533, onde se juntou ao grupo de Inácio. Morreu em 1565, como Superior Geral da Companhia de Jesus (1558-1565), cargo que assumira logo a seguir ao Fun­dador. Seus pais eram João Laínez e Isabel Gómez de León (Lainii Mon. I p.VII--XII).
4 - Afonso Salmerón, nascido em Toledo em 1515, juntou-se em Paris aos companheiros de Inácio em 1533 e morreu em Nápoles em 1585.
5 - Nicolau Afonso de Bobadilla, nascido em Bobadilla del Camino (Palencia) em 1508 ou 1509, chegou a Paris em 1533, onde se juntou aos companheiros de Inácio, e morreu em Loreto (Itália) em 1590
6 - Pascásio Broet, nascido em Bertrancourt (Picardia), cerca do ano 1500, che­gou a Paris em 1534, onde se juntou aos companheiros de Inácio em 1536 e aí veio a morrer em 1562 (Epp. Broeti 9-11;
7 - Pedro Fabro (Lefèvre), nascido em Villaret (Sabóia) em 1506, chegou a Paris em 1525 onde foi primeiro, companheiro de colégio com Inácio e Xavier e, em 1531 passou a ser companheiro do grupo de Inácio. Morreu em Roma em 1546 e foi beatificado em 1872 (Fabri Mon. 490-498; TACCHI VENTURI II
9 - Inácio de Loyola.
10 - Simão Rodrigues de Azevedo, nascido em Vouzela em 1510, chegou a Paris em 1527, juntou-se aos companheiros de Inácio em 1532, morreu em Lisboa em 1579. Foi fundador e primeiro Superior da Província portuguesa da Companhia de Jesus (RODRIGUES, História da Com­panhia de Jesus na Assistência de Portugal.
11 - Cláudio Jaio (Le Jay), nascido em Mieussy (Alta Sabóia) entre 1500 e 1504, chegou a Paris em 1534, onde se juntou aos companheiros de Inácio em 1535. Morreu em Viena em 1552.

]*Retorno a Veneza e Ordenação de Xavier - Depois desta audiência, voltaram os nossos viajantes a Veneza, onde Xavier retomou o seu servriço dos doentes pobres do hospital dos incuráveis. Ele e seus irmãos renovaram os seus votos perante o núncio do Papa, Jerónimo Varolli, arcebispo de Rosana, e pouco depois, a 24 de junho, foram conferidas as ordens sacras pelo arcebispo de Arbe, Vicente Nigusanti.
Considerando-se o nosso Santo muito feliz por poder trabalhar com mais eficácia ainda na salvação do próximo, revestido como se achava do caráter augusto que acabava de receber, desejava preparar-se por um longo retiro para a celebração da sua primeira Missa.
Um dia, depois de ter pregado na povoação de Monte Felice, a quatro léguas de Pádua, voltava a Veneza por um caminho diferente do que seguira na ida, para lá, quando descobriu uma. pobre cabana em ruínas completamente abandonada e cujas entradas estavam obstruídas pelos materiais amontoados... Dirigiu-se para ali, desembaraçou a porta da cabana e entrando viu que as paredes estavam fendidas e o tecto de colmo todo aberto, reconhecendo que estava desabitada e que a sua situação era completamente isolada:
- "Que bem estarei eu aqui, só e com Deus somente"! disse ele para si, com sensível demonstração de alegria."
E logo na manhã seguinte veio tomar posse da morada que escolhera a fim de se entregar ali, sob as únicas vistas de Deus, a todos os exercícios da mais rigorosa penitência, a um jejum diário e a contínuas orações.
Não saía da cabana senão para ir mendigar o seu pão nas proximidades; depois de ter obtido o necessário para não morrer de fome, voltava à sua solidão, martirizava o corpo e depois repousava por alguns momentos, deitando-se sobre aquele solo húmido e nu. Passou assim quarenta dias no gozo de consolações divinas e de sacrifícios contínuos do seu corpo.
Terminado o seu retiro, voltou Francisco para junto do seu amado mestre, então em Vicência, para onde foram chamados todos os seus irmãos, e teve a felicidade de celebrar os santos mistérios pela primeira vez, achando-se todos eles presentes, auxiliado das suas orações e dos seus votos. A sua comoção era tão forte, e corriam tão abundantemente as suas lágrimas, que os assistentes também as não puderam conter.

Doença de Xavier - Conquanto fosse naturalmente robusta a saúde de Xavier, não pôde resistir a tamanhas austeridades: alguns dias depois da primeira Missa adoeceu gravemente, e foi necessário tratá-lo como a um mendigo, porque ele queria viver e morrer na mais completa pobreza.
Levaram-no para o hospital, e ali, o nobre Xavier, o ilustre descendente dos antigos reis de Navarra, não obteve mais que metade dum leito! Foi colocado ao lado dum doente pobre que lhe era desconhecido...
Deus fazia-lhe expiar assim os sentimentos de orgulho e as ambições de glórias vãs que haviam por algum tempo alimentado a sua mocidade:.. mas derramava ao mesmo tempo tais consolações na sua alma, que Xavier, longe de recordar-se do que havia deixado, julgava-se feliz por ter um sacrifício mais a oferecer, e agradecia à divina Misericórdia que se dignava oferecer-lhe assim tão preciosas ocasiões.

Devoção a São Jerônimo - Nos seus estudos da Escritura Santa, Francisco Xavier invocava muitas vezes S. Jerónimo; pedia-lhe que lhe fizesse compreender as dificuldades que encontrava e a luz fazia-se no seu espirito; resultou dali que da parte do nosso Santo nasceu uma dedicada devoção por aquele Santo doutor da Igreja.
Numa noite, quando Xavier se achava ainda doente no hospital de Vicência, julgou ver em sonhos, circundado de glória, o Santo que ele gostava de invocar nos seus estudos. Pareceu ouvir distintamente que ele lhe dizia, depois de meigas e fortificantes palavras, como as que costumam vir do Céu à terra:
- Muitas e maiores tribulações vos esperam em Bolonha, onde passareis este inverno acompanhado somente de um dos vossos irmãos; os outros serão mandados para Roma, Pádua, Ferrara e Sena.
Estas palavras impressionaram profundamente Francisco. Duvidou duma aparição real de São Jerónimo, mas não podendo esquecer-se das palavras que ouvira, não podendo disfarçar a consolação que experimentava, e vendo as melhoras do seu estado de saúde, tomou o partido de nada dizer, nem mesmo ao seu santo mestre, e de esperar pelos acontecimentos futuros. Poucos dias depois [outubro] achava-se completamente curado.

Xavier discípulo de Inácio é enviado para evangelizar ainda na Itália, em Bolonha - Até ali havia decorrido o ano durante o qual Santo Inácio e seus discípulos se achavam comprometidos a esperar os meios de passarem para a Palestina. A guerra não lhes deixava esperança alguma de poderem embarcar, era chegado, pois o momento de se tomar uma decisão relativa ao segundo voto: o de se porem à disposição do Soberano Pontífice.
Reuniu, pois, Inácio os seus discípulos e lhes fez ver que desembaraçados como se achavam da peregrinação para a Terra Santa, ficava-lhes o cumprimento do voto de irem a Roma receber do Papa o destino que ele julgasse dever dar-lhes, e achando inútil que todos para ali fossem, resolveu que ele próprio iria a Roma acompanhado de Pedro Fabro e Diogo Laynez; que Xavier e Bobadilha iriam pregar em Bolonha, Rodrigues e Lejay em Ferrara, Codure e Mozes em Pádua, Brouet e Salmeron em Sena.
Francisco Xavier, quando ouviu assim designadas pelo seu mestre, as cidades que lhe haviam sido indicadas por S. Jerónimo no seu sonho, convenceu-se que não tinha sido uma ilusão, e mais ainda vendo que o seu destino pessoal era Bolonha; não obstante isso guardou ainda segredo das suas anteriores impressões.
Antes de terminar esta reunião, deu Santo Inácio detalhadas instruções aos seus discípulos, acrescentando que achando-se eles reunidos em nome de Jesus com o fim de trabalharem pela sua glória, a sua associação devia ter, dali em, diante, o nome de Companhia de Jesus

03 - MARIA DE ORDEZ - JERÔNIMO CASALINI - ZELO DE XAVIER
Pregação Virtuosa de Xavier: Sinal de Santidade - Maria de Ordez, nobre rica e santa mulher, irmã-confrade da Ordem Terceira de São Domingos estava possuída dum tão grande desejo de ir acabar os seus dias junto do túmulo deste santo fundador da Ordem, que, logo que se viu desligada dos laços de família que a prendiam a Espanha, aceitou as propostas da sua amiga Isabel Casalini, de Forli, que a convidara a ir a Bolonha a fim de acompanhar no seu retiro e ali viverem como duas irmãs. A senhora Isabel habitava o presbitério de [da igreja] Santa Lúcia com seu tio Jerónimo Casalini, cura daquela paróquia [Bolonha], homem muito notável pelos seus conhecimentos científicos, pela sua piedade e outras virtudes.
Reunidas já as duas amigas e com o propósito de se não separarem dali em diante, iam todas as manhãs ouvir Missa à capela do túmulo de S. Domingos, quando um dia Maria de Ordez impressionada pelas maneiras do Padre que a celebrava, o fez notar a Isabel. Ambas dirigiram para ele olhares perscrutadores e ambas se compenetraram dum mesmo sentimento de admiração e respeito.
Para elas não era ele um padre da terra, mas sim um enviado do Céu; Isabel contempla-o por um instante, crendo em uma aparição celeste; depois, deixando cair a cabeça e apoiando-a entre as mãos, prostra-se, profundamente humilhada, aos pés de Deus, e sente naquele momento passar-lhe pela mente todas as misérias da sua alma, como jamais se lhe afigurara com tanta realidade; as lágrimas correm-lhe silenciosas e abundantes... Dirige de novo as vistas para o Padre, e nota que dos seus olhos também as lágrimas correm, porém apresentando no semblante uma espécie de irradiação divina...
Isabel não se enganara: aquelas lágrimas, a expressão seráfica, o modo de orar do Padre, testemunhavam evidentemente as delícias que enchiam a sua alma.
Acabada a missa, Isabel possuída de vivos desejos de falar ao Santo, que acabava de a comover tão profundamente, intenta pedir-lhe alguns conselhos espirituais, mas como ousar aproximar-se dele, se os seus desejos e os seus ela se julga tão indigna! Comunica temores à sua amiga... D. Maria achava-se do mesmo modo impressionada, e ainda muito comovida, responde-lhe somente:
-Vamos juntas!
Concordes nisto, mandaram pedir ao santo Padre a bondade de as receber por um instante; obtiveram-no, e logo que se acharam em sua presença ficaram por tal modo impressionadas da maneira como ele falou de Deus.

Primeiros devotos - E depois de terem recebido os seus preciosos conselhos, correram imediatamente a participar a sua descoberta ao venerável cura.
- diz-lhe Isabel: Meu tio, ele não é um homem, é um anjo!...
- De onde é ele? De onde vem?
- É espanhol. De onde vem, ignoro-o; tudo quanto sei é que ele fala de Deus como nunca até hoje tenho ouvido falar, e que é duma beleza que nada tem da terra! Quando dirige 0 olhar para o Céu, estou certa, meu tio, que ele vê a Deus! Nunca vi expressão semelhante; é celestial!
- E ele mora no hospital! Acrescentou Maria.
- Sim, meu tio, replicou Isabel, e nós não o podemos deixar ali. Ide vê-lo e suplicai-lhe que venha habitar o presbitério!
- Oh! sim, senhor, disse Maria, Deus deve abençoar generosamente os lugares por onde ele passa!...
- Muito bem, minhas filhas, eu irei vê-lo e farei quanto me seja possível para obter que honre o presbitério com a sua presença.
As duas amigas estavam já adiantadas em idade. O bom cura sentia que aquela exaltação, conquanto inteiramente natural do caráter italiano, devia ter, nestas duas santas almas, uma causa de grande valor.
No mesmo dia dirigiu-se ao hospital e pediu para ver o Padre espanhol que naquela manhã tinha celebrado a missa no altar do túmulo de São Domingos.
- Ah! responderam-lhe, é o Padre Francisco! Que santo, senhor cura! que felicidade experimentareis se o virdes e o conhecerdes! Vinde, vinde contemplá-lo de longe na sala onde ele trata dos doentes.
- De que Ordem é ele?
- Nada sabemos, senhor, a esse respeito; dizem somente, quando lhes perguntam, que são noviços e da Companhia de Jesus.
- Pois eles são muitos?
- Dois, senhor, e verdadeiros Santos.
Tinham chegado à entrada da sala onde Francisco Xavier se dedicava, como em Veneza, ao tratamento dos enfermos, e com resultado muito superior para a glória de Deus, pois que já então falava o italiano mais facilmente.
O cura de Santa Lúcia, logo que o viu compreendeu a justa exaltação da sobrinha e de Maria. E se ele tivesse querido patentear, naquele momento, tudo quanto sentia, prostrar-se-ia aos pés do jovem santo e lhe pediria a sua bênção.
Falaram por muito tempo de Deus, e o bom cura rogou, suplicou e obteve do amável Xavier, que não sabia negar o que pudesse conceder, que aceitaria hospitalidade no presbitério, com a condição, porém, de não se utilizar da mesa do bom cura.
- Senhor, disse-lhe o nosso jovem santo, eu fiz voto de viver de esmolas, de não comer senão o pão que mendigar, e quanto seja compatível com o meu ministério: permiti, pois, que me conserve fiel a este meu voto, ou que continue a habitar o hospital.
O cura, contentando-se e julgando-se feliz por o poder ter ao menos debaixo do seu tecto, aceitou as suas condições, e desde a manhã do dia seguinte Xavier estabeleceu-se em sua casa e na maior liberdade de poder ali viver como lhe aprouvesse.

Ocupações virtuosas: amor fervoroso pelos semelhantes – Francisco Xavier ia todas as manhãs oferecer o santo sacrifício da Missa na igreja de Santa Lúcia, depois ouvia as confissões de grande número de pessoas que concorriam ao seu confessionário.
Visitava em seguida os encarcerados, nós quais só a sua presença bastava para produzir uma salutar impressão, colhendo, além disso, admiráveis frutos da sua insinuante palavra.
Terminada a visita aos presos voltava a ver os seus queridos doentes do hospital, e pela tarde reunia as crianças para lhes fazer o catecismo; depois disto pregava à parte do povo, cujas ocupações durante o dia privavam de ir à igreja em outra hora.
O povo, subjugado pela sua palavra, coaria em seguida ao tribunal da penitência, e o retinha ali muitas vezes até hora avançada. Voltando a casa, entregava-se à oração e assim passava uma grande parte da noite.

Saúde abalada, mas ainda pregava - Esta vida de trabalhos, um jejum quase contínuo e outras austeridades de que nunca se dispensou, suportando as intempéries dum inverno excepcionalmente rigoroso era mais que suficiente para deteriorar a mais robusta saúde. Além disto, São Jerónimo revelara ao nosso Santo, por ocasião da sua doença em Vicência:
- Uma maior tribulação vos espera em Bolonha, onde passareis o inverno.
A tribulação profetizada, foi uma violenta febre intermitente, que, resistindo a todos os meios empregados para a combater, reduziu o nosso jovem santo a um grau de debilidade e de aniquilamento que fez recear pela sua vida. Isto produziu uma grande dor em toda a cidade de Bolonha onde ele havia convertido tantos pecadores, consolado tantos aflitos, reconciliado tantos inimigos e feita grande bem a todos!
Logo que as suas forças o permitiram, Xavier continuou a exercer o ministério da pregação, da confissão, da instrução das crianças, do cuidado dos doentes e dos presos, e tudo isto com a ardente febre que o devorava e os sofrimentos que a acompanhavam.
Porém chegou um momento em que a natureza sucumbiu: Abatido a ponto de não poder ter-sé de pé; mas sempre devorado pelo seu zelo religioso, arrastava-se até à porta da rua, sentava-se em um banco de madeira e ali se esforçava ainda em chamar os transeuntes à contrição dos seus pecados; pregava-lhes a necessidade da penitência, falava-lhes da misericórdia infinita dum Deus que morreu pela salvação do mundo.
Conhecido, amado e venerado, como era o nosso Santo, aquelas pregações, tanto mais eloqüentes quanto mais impossíveis pareciam no estado em que ele se achava, produziam maravilhosos frutos.
Cada pessoa que passava e ouvia a voz do venerando apóstolo, se aproximava imediatamente dele; cercavam-no, escutavam-no de joelhos, e muitas vezes os soluços dos seus auditores cobriam a sua voz quase extinta e que ele sustentava por um grande esforço. Algumas vezes extinguia-se-lhe completamente aquele jovem apóstolo, de trinta e dois anos apenas, conservava-se ali, aniquilado, débil, pálido e exânime como se a morte tivesse passado por ele!
Devotado à salvação das almas e querendo dedicar-se a este santo ministério até ao seu último suspiro, ali se deixava ficar, com a cabeça caída, o corpo apoiado à parede, esperando o momento em que a sua voz pudesse ainda por um instante secundar o seu zelo, que nenhum outro sofrimento podia enfraquecer; naquele estado, contudo, só a sua mista impressionava e produzia numerosas conversões. De noite ocupava-se de Deus e não dispunha senão de alguns momentos para dormir.

Princípios de Santidade - Jerónimo Casalini desejava cuidar dele como um pai cuida dos seus filhos; porém não pôde conseguir o seu intento e nada alcançou do espírito de mortificação e zelo que animava Francisco, vendo-se obrigado a admirá-lo e a agradecer a Deus por lhe haver concedido, na sua misericórdia, a graça de ver de tão perto a santidade sobre a terra.
O bom cura procurava aproveitar-se, para o seu progresso espiritual, de todos os instantes que o seu heróico amigo lhe concedia durante a sua doença, porque se entregara à sua direção, assim como sua sobrinha e Maria de Ordez. Afirmava-se que Francisco Xavier vertia abundantes lágrimas em todas as sextas-feiras quando dizia a missa da Paixão, e que muitas vezes tivera grandes transportes no santo altar, e acrescentavam:
- O Padre Francisco fala muito pouco; mas cada uma das suas palavras parece vinda do Céu.
É que o nosso jovem Santo se lembrava sempre, com pesar, dos prazeres que gozara na convivência da sociedade, onde os encantos do seu espírito eram apreciados e louvados a ponto de iludir o seu amor próprio, e expiava agora esses pequenos gozos da sua vaidade, por todos os meios que o seu arrependimento lhe sugeria.
Os Santos, segundo o mundo, perdoam-se voluntariamente dos prazeres desses pequenos triunfos; os Santos, segundo Deus, exprobram-se e expiam-nos...
Até então cedera a febre que minava a saúde de Xavier, e uma carta do seu querido mestre Inácio, chamando-o a Roma pelos fins da Quaresma, o fez partir de Bolonha quase furtivamente para evitar a explosão de dor que ele esperava se declarasse em toda a cidade com a notícia da sua partida.
- Jamais, disse o cura de Santa Lúcia, quando o Santo deixou o presbitério, jamais será ocupado por outra pessoa o quarto que foi habitado pelo santo Padre Francisco Xavier.
- Enquanto nós vivermos, ajuntava a sobrinha, ninguém mais habitará esta câmara abençoada! e nós, meu tio, iremos sempre orar ali.

04 - EM ROMA - PARTIDA PARA PORTUGAL
Mais tentativas de vingança do seu ex-amigo - Miguel Navarro, por um momento horrorizado de si próprio, e cedendo à voz da consciência, pedira a Santo Inácio, o favor de o admitir no número dos seus discípulos. Inácio, sempre pronto a acolher em seus braços o arrependido, aceitou aquele que pouco antes era o seu mais cruel inimigo, e tratou-o com bondade verdadeiramente paternal; porém Miguel, bem depressa desgostoso de uma vida tão santa, retirara-se e readquirira todos os sentimentos de vil inveja que nele havia excitado a conversão de Francisco Xavier.
Depois de ter buscado em vão um novo meio de se desfazer de Inácio, por ter a sua consciência cheia de remorsos "ou por qualquer outro motivo desconhecido", diz o Padre Bártoli, voltou de novo ao combate; reunindo-se a Santo Inácio em Veneza pediu-lhe a sua readmissão na Companhia.
Desta vez a experiência motivou a recusa, e então, ofendido no seu orgulho, jurou que a sua vingança seria terrível e tão medonha como a afronta que acabava de receber. Inácio ia partir para Roma; era necessário precedê-lo ali.
Miguel chega à cidade santa, encontra ali um dos seus Muitos amigos, Ramon Barrero; este regozija-se dos vergonhosos sentimentos que Miguel lhe confia e não hesita em propor-lhe um pacto infame.
Combinam-se com Pedro Castilho e Francisco Mudarra, juntos se dirigem a Frei Agostinho, monge da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, pregador célebre e luterano oculto, que procurava iludir a fé dos seus ouvintes, entusiasmando-os com a sua eloqüência, e reunidos tratam de perder Inácio de Loiola por todos os meios que o inferno pudesse sugerir.
Miguel declara que é rico e que empregará o seu dinheiro até ao último real, se necessário for, para se vingar daquele que lhe arrebatou Francisco Xavier; o monge aceita tudo; traça-se um plano de campanha, e aguarda-se a chegada dos que juraram perder.

A verdade prevalece - Assim que Inácio e seus discípulos se acharam reunidos em Roma, pelas proximidades da festa da Páscoa do ano 1538, distribuíram desde logo entre si os diversos bairros da cidade para neles trabalharem pela salvação das almas e defesa da verdade, contra os erros e prejuízos que os partidários de Lutero buscavam introduzir e propagar.
Bem depressa descobriram que Frei Agostinho semeava a heresia nas suas prédicas e não deixava de atrair um grande número de pessoas impressionadas e sempre ávidas de ouvirem a sua brilhante e persuasiva palavra. Contudo procuraram certificar-se disto pessoalmente, e depois de o terem ouvido pregar por muitas vezes, julgaram dever adverti-lo dos perigos a que expunha a fé dos seus ouvintes.
Esta advertência, embora feita comas maiores atenções e a mais sincera urbanidade, irritou o orgulho do religioso luterano que se achava comprometido naquela empresa, e que pondo de parte todas as considerações, e julgando também que era chegado o momento de dar um golpe decisivo, atreveu-se, o fogoso pregador, a apresentar à vindicta pública em um dos seus sermões, os novos apóstolos que defendiam tão valorosamente a doutrina da Igreja; acusava-os de heresia, esperando assim paralisar o zelo que os animava e afastar de si as suspeitas que nasciam.
Ao mesmo tempo Miguel Navarro, que pagara largamente para aquele fim, era autor de uma denúncia em forma, contra Inácio de Loiola, ao governador de Roma, Benedito Conversini; assegurava sob juramento, e prometia provar, que D. Inácio de Loiola havia sido duas vezes condenado na Espanha, a primeira em Alcalá, a segunda em Salamanca, e uma terceira vez, em Paris, pelo crime de sortilégio e de magia.
Todo este negócio fez grande ruído e produziu geral sensação, sem contudo desanimar as vítimas daquele odioso trama.
Inácio e os seus presados discípulos viam-se isolados, abandonados de todos e apontados a dedo nas ruas de Roma como heréticos que não tardariam a ser condenados pelo tribunal da Inquisição, não ousando ninguém aproximar-se deles com o temor de os fazerem duvidar da ortodoxia da sua fé.
Mas esta grande prova de sofrimento devia ter um fim; Deus ali estava!...
Os caluniadores foram convencidos de impostura e acabaram por se confessarem culpados.
O pregador herético, revestido de um hábito religioso e que servia para encobrir os seus sentimentos de proselitismo, teve de fugir e foi completamente desmascarado em Génova; Pedro Castilho foi condenado a prisão perpétua; Francisco Mudarra e Ramon Barrem foram queimados em efígie, e teriam também sofrido uma longa prisão se Santo Inácio não tivesse intercedido por eles; Miguel Navarro foi condenado a degredo por toda a vida.
Ainda desta vez o demônio fugira rugindo; o inferno fora vencido.

Socorros aos fragelados - Naquela época a fome assolava a cidade de Roma, e os discípulos de Santo Inácio dedicavam-se com admirável caridade a socorrer as vítimas deste horrível flagelo.
Xavier, cuja saúde recuperara finalmente algum vigor, exercia o santo ministério na igreja de S. Lourenço in Damaso, e na de S. Luís dos Franceses, e o mais consolados resultado correspondia aos seus trabalhos.
Todo o tempo que lhe sobrasse depois das pregações, confissões e instrução das crianças, dedicava aos pobres, que, extenuados pela fome, arrastavam-se e morriam pelas ruas. Procurava para eles algum asilo, pedia aos ricos um bocado de pão para minorar a fome e prolongar-lhes a vida; conduzia à última morada, em seus braços, os cadáveres, e os moribundos para os asilos de caridade que para eles obtivesse, proporcionando-lhes, finalmente, todos os socorros que os pudesse chamar à vida. Tratava deles, consolava-os, punha-os em santas disposições, e se lhe não era dado salvar sempre a vida do corpo, salvava-lhes ao menos a das almas.

Evangelizar e sofrer ainda mais - No meio destes penosos trabalhos desejava o nosso Santo outros ainda mais cruéis. Tudo isto nada era para o zelo que o animava. Falava muitas vezes do bem que se poderia fazer nos grandes países conquistados pelos portugueses nas Índias orientais, e da felicidade que gozariam aqueles que obtivessem a graça de serem para ali mandados, expostos a todos os sofrimentos, a todos os perigos e a todas as privações inseparáveis de um tal apostolado.
Era tal a sua preocupação que quase diariamente, nos poucos momentos que concedia ao sono, sonhava que tinha em seus braços ou às costas um negro sofrendo penas horríveis. Então ouvia-se-lhe gritar, no excesso do seu amor a Deus e do seu zelo pela sua glória:
"Ainda mais, Senhor! ainda mais!"

Precisa-se de missionários para as Índias - Disseram-lhe, um dia, que D. João III, rei de Portugal, solicitara do soberano Pontífice a graça de lhe conceder seis Padres formados na escola de Inácio.
 Diogo de Gouveia, reitor do colégio de Santa Bárbara na época em que Francisco, Fabro e Inácio ali estiveram, voltara depois a Portugal. Enviado a Roma, pelo seu governo, a fim de ali tratar dum negócio de interesse da coroa, veio encontrar naquela cidade os seus antigos alunos do colégio Santa Bárbara, e presenciou os trabalhos dedicados que prestavam durante a fome aqueles cujas brilhantes faculdades e prodigioso talento ninguém melhor do que ele conhecia, e que mostravam não saber praticar senão atos de humilhação e caridade. Comunicou a sua admiração ao rei seu soberano, cujo zelo pela glória de Deus ele conhecia, pedindo-lhe que solicitasse alguns destes santos Padres para evangelizar as Índias orientais.
O rei de Portugal, aceitando gostoso esta proposta, acabava de escrever ao seu embaixador Pedro de Mascarenhas encarregando-o de dirigir aquele pedido ao Papa em seu nome. O Papa deixou o negócio à decisão de Inácio, que resolveu não dever conceder mais que dois dos seus discípulos para aquele apostolado, porque ele não tinha até ali mais que dez.

Quem são os escolhidos - Xavier sentiu o seu coração palpitar com maior força quando soube desta decisão, e, contudo, poderia pensar em si para um tal destino? Não, porque se julgava mil vezes indigno daquele favor! Não sabia, é verdade, qual dos seus irmãos merecesse mais para poder ser escolhido; achava-os todos tão perfeitos, que não via senão em si a exceção e humilhava-se profundamente perante Deus por aquela incapacidade.
Enquanto se tratava este negócio, Inácio ocupava-se em constituir a sua Companhia em Ordem religiosa, e em submetê-la à aprovação do soberano Pontífice. Comunicara todo o seu projecto aos seus discípulos e lhes rogara que reflectissem maduramente, perante Deus, sobre a escolha daquele a quem deveriam dar o título de Geral, logo que o Papa tivesse aprovado os estatutos da Sociedade e a tivesse autorizado.
Chamado naquela ocasião pelo rei, o embaixador de Portugal, e encarregado de acompanhar os dois Padres que lhe tinham sido prometidos, empregou este as maiores diligências e instâncias em obtê-los desde logo, e para que a sua partida fosse o mais breve possível Inácio designou então Simão Rodrigues e Nicolau Bobadilha; não se lembrou de Xavier, e o nosso Santo achou muito natural que o seu querido mestre não o tivesse escolhido para uma tal missão.
Simão Rodrigues achava-se então em Sena e Nicolau Bobadilha no reino de Nápoles, e ambos voltaram à ordem de Inácio. Rodrigues, ferido de febres intermitentes, mal podia ter-se de pé, mas mesmo assim ia obedecer: embarcou imediatamente em Civita-Vecchia no primeiro navio que se fazia de vela para Lisboa. Bobadilha adoeceu logo que chegou a Roma, mas como não estava ainda designado o dia da partida, esperava recuperar as forças perdidas, para poder obedecer também...
Xavier humilhava-se cada dia mais da sua indignidade, por ver os mais perfeitos do que ele destinados para aquele apostolado, que ocupava dia e noite o seu pensamento.

Xavier destinado às missões na Índia - A partida do embaixador fora finalmente fixada para o dia imediato. Sabe-o o nosso Santo, e faz ardentes votos pelo bom êxito dos seus irmãos; orava por eles com todo o fervor da sua alma, quando Inácio o chama.
- Francisco, lhe disse ele, eu havia designado Bobadilha para a missão das Índias, porém aprouve ao Céu escolher um outro. Sois vós que ele acaba de designar hoje mesmo, e eu vo-lo anuncio em nome do Vigário de Jesus Cristo...
Xavier, prostrado aos pés do seu santo mestre escutava no maior recolhimento de gratidão e humildade.
Inácio continuou: - Aceitai a missão de que Sua Santidade vos encarrega, como se Jesus Cristo em pessoa vo-la tivesse intimado, e alegrai-vos por encontrardes nela o cumprimento do ardente desejo de que nós todos nos achamos animados: levar a fé para além dos mares. Não é somente a Palestina, ou uma província da Ásia que tereis de evangelizar; são países imensos, estados inumeráveis, o mundo todo! Aquele tão vasto campo é digno da vossa coragem, é digno do vosso zelo! Ide, Francisco; ide, meu irmão, onde a voz de Deus vos chama, onde a Santa Sé vos -envia, e desenvolvei todo o fogo que vos anima!
As lágrimas de Francisco corriam até ao chão; porém eram lágrimas de felicidade!
- Pai da minha alma, respondeu ele, como pudestes vós pensar em mim para uma missão que exige um verdadeiro apóstolo? Eu sou o mais inerte, o mais fraco, o mais incapaz e o menos virtuoso dos vossos discípulos! E é por isso que eu me considero duplamente feliz!
"Meu Padre, eu obedecerei ao mandato de Deus! Estou preparado e pronto a sofrer tudo e com a maior alegria do meu coração, para a salvação dos pobres índios Confesso-vos, hoje, meu amado Padre, que há muito tempo o meu coração suspirava pelas Índias; porém não me atrevia a confessá-lo senão a mim próprio, por isso que me julgava indigno duma tal graça. Ah! Eu espero em Deus, que naqueles países idólatras, encontrarei o que a Terra Santa me recusou.
"Espero também que terei a felicidade de ali morrer por Jesus Cristo!...".
Inácio tinha já feito levantar o seu amigo: apertava-o ao seu coração de pai, profundamente comovido.
Francisco significou-lhe quanto o apostolado das Índias ocupava o seu pensamento e o seu espírito, a ponto de o acompanhar até nas suas horas de sono; em seguida apressou-se a remendar a sua batina, abraçar os seus amigos e ir prostrar-se aos pés do Soberano Pontífice para lhe pedir a sua bênção.

Retorno a Roma para benção de envio do Papa - Paulo III, Soberano Pontífice, rendia graças a Deus desde que o rei de Portugal lhe manifestara o desejo de fazer pregar o Evangelho nos países infiéis que lhe eram sujeitos, porque contava como seguro o triunfo da Cruz em todos os lugares onde os discípulos de Inácio a levassem. Recebeu Xavier com benevolência verdadeiramente paternal, felicitou-o pela sublime missão que ele ia desempenhar, e disse-lhe:
- "A soberana Sabedoria dá sempre a graça necessária para suportar os encargos que ela impõe, embora eles sejam superiores às forças humanas! Vós tereis muitas ocasiões de sofrer; mas deveis lembrar-vos sempre que no serviço de Deus não se consegue o bom êxito senão pelo caminho dos sofrimentos, e que se não deve ambicionar a honra cio apostolado senão caminhando pelos traços deixados pelos Apóstolos, cuja vida foi sempre uma pesada cruz e uma morte de cada dia."
"O Céu vos envia a seguir os passos de São Tomé, o apóstolo das Índias, na conquista das almas; trabalhai ardente e generosamente em fazer reviver a fé nas terras em que ele a semeou! e se Deus permitir que possais derramar o vosso sangue pela glória de Jesus Cristo, oh! considerai-vos feliz de serdes o escolhido para morrer por uma tal causa."
"É tão belo morrer mártir!"
Xavier, compenetrado das palavras do soberano pontífice, e parecendo-lhe ouvir a própria voz de Jesus Cristo, respondeu algumas palavras duma tão profunda humildade e de zelo tão ardente, que Paulo III depois de o ter abençoado, o abraçou por muitas vezes com extrema comoção.
Adeus a Inácio - No momento de partir, na manhã seguinte, Xavier prostrou-se aos pés do seu querido Padre Inácio para lhe pedir a sua bênção; o seu coração, naquele momento, cumpria um grande sacrifício, continha tanta dor como alegria.
Inácio abraçou com ternura aquele filho que tanto amava e que ia separar-se dele, sem dúvida para sempre. Apertou-o dolorosamente, mas com todo o afecto, ao seu coração, pois que ele também fazia um grande sacrifício!... Porém a glória de Deus o chamava, e pai e filho se achavam votados inteiramente à sua glória, à sua maior glória...
Abraçavam-se pela última vez, quando Santo Inácio descobriu, por acaso, que o seu amado discípulo desprezara completamente as precauções mais necessárias para tão longa viagem.
Oh! meu Francisco! lhe disse ele, apertando-o de novo ao seu coração paternal, - é muito! é demais! nem ao menos alguma roupa de lã para abrigar o vosso peito contra os grandes frios!
E despojando-se da sua camisola de lã, forçou o seu filho espiritual a vesti-la.

Delaração para eleger o Superior dos Jesuítas - No derradeiro momento da partida, Francisco depositou nas mãos de Laynez uma declaração escrita, regando-lhe que a fizesse conhecer aos seus irmãos, no dia em que eles se reunissem para elegerem um Geral. Esta declaração, damo-la aqui dividida em três partes, tal qual a achamos reproduzida na série das Cartas de S. Francisco Xavier.]

3
DETERMINAÇÃO DA COMPANHIA DE JESUS
Roma, 4 de Março 1540            /          Tradução do original escrito pelo P. Coduri

HISTÓRIA – No dia 24 de Julho de 1539, Inácio e os seus companheiros davam fim às deliberações preparatórias sobre as Constituições da Companhia ou Ordem religiosa que iriam fundar (MI Const. I 9-14). No mês de Agosto, já estava redigido o primeiro Sumário ou fórmula do Instituto da Companhia de Jesus (ib. 16-20) e, a 3 de Setembro, era aprovado de viva voz por Paulo III (ib. 21-22). Nas mencionadas deliberações tinha-se estabelecido que, em todas as coisas em que se houvesse de decretar sobre toda a Companhia, principalmente sobre as suas Constituições, se devia ater ao voto da maioria (ib. 13). No Sumário do Instituto dizia-se mais expressamente: «nas coisas de maior importância e perpétuas» decida «a maioria de toda a Companhia que puder ser comodamente convocada pelo Superior dela» (ib. 17). Naquela altura, os companheiros só tinham sido enviados pelo Papa a terras de Itália: em Maio de 1539, os Padres Rodrigues e Broet a Sena; em Junho, Fabro e Laínez a Parma e, Coduri, a Velletri; no Outono, Bobadilha ao reino de Nápoles. Como, porém, os restantes quatro companheiros iriam ser enviados para fora de Itália, a expressão «maioria» necessitou de nova declaração. Por esse o motivo foi redigido o documento que a seguir publicamos.

Jesus, Maria .... Se acontecer, como piedosamente cremos, por disposição de Deus infinitamente bom e grande, que, por mandato do Sumo Pontífice, cabeça de toda a Igreja, venhamos a ser distribuídos por diversas partes do mundo, e essas longínquas1; considerando nós, os que nos juntámos em corpo, que podem sobrevir muitas coisas que poderão tocar no bem de toda a Companhia, como a de fazer Constituições e outras quaisquer; pareceu-nos a todos os que neste momento nos encontramos em Roma, e assim o determinamos, e em sinal de ser assim verdade, abaixo assinamos por próprio punho e letra os nossos nomes, que todas estas coisas se deixem ao juízo e decisão do maior número de votos daqueles da nossa corporação que, morando na Itália, possam ser convocados ou serem-lhes pedidos os votos por cartas dos que se encontrarem em Roma; e vista assim a maior parte dos votos dos que, como se disse, estiverem nessa ocasião em Itália, poderão decidir acerca das coisas sobreditas, pertencentes a toda a nossa Companhia, como se toda ela estivesse presente; assim pareceu a todos e o tiveram por bem no Senhor.
A 4 de Março de 1540

(assinaturas)
Iñigo/(Inácio), Simão Rodrigues2, João Coduri3, Al­fonso Salmerón, Claudio Jayo4, Francisco5

1 Rodrigues e Bobadilha estavam destinados à Índia (Bobd. Mon. 618), Coduri e Salmerón à Irlanda (Epp. Broeti, 418-419; Bobad. Mon. 22). Os votos de Rodri­gues e Coduri foram escritos em 5 de Março (Epp. Broeti 520; 418).50
2 Simão Rodrigues tinha sido chamado pouco antes de Sena a Roma (RO­DRIGUES, Hist. I/1, 228, n.4); no dia 5 de Março saiu de Roma para Lisboa (ib. 230).
3 Para a expedição à Irlanda, tinham sido escolhidos primeiro Coduri e Sal­merón; morto inesperadamente Coduri em 1541, foi substituído por Broet (Epp. Broeti 418-433). No Outono de 1541 foi a partida (Epp. Salm. I, p. VII 2-10).
4 Jaio (Le Jay) foi enviado a Bagnorea a 17 de Abril.
5 Xavier. Faltam as assinaturas de 4 dos 10 primeiros companheiros: Fabro e Laínez estavam ainda em Parma (Fabri Mon. 498), Broet em Sena (Epp. Broeti 509--513), e Bobadilla só a 13 ou 14 de Março chegou a Roma (Bobad. Mon. 22).

4
DECLARAÇÃO, VOTO, VOTOS
Autógrafo de Xavier

HISTÓRIA – Bobadilha estava destinado para a Índia e devia partir de Roma a 15 de Março com D. Pedro de Mascarenhas, embaixador português na cidade eterna. Como, porém, a 13 ou 14 de Março tinha chegado de Nápoles a Roma cheio de febre e a juízo do médico estava incapaz de fazer viagem, foi Xavier destinado à Índia, quase à última hora (cf. Bobad. Mon. 22; RODRIGUES, Hist. I). Não estando então a Companhia ainda juridicamente fundada, nem o Superior Geral ainda eleito, Xavier, antes da sua partida, deixou estas três declarações que a seguir pu­blicamos. Nelas, dá a sua aprovação às futuras Constituições que forem feitas quando a Companhia vier a ser confirmada por Bula pontifícia, dá o seu voto para a futura eleição do Superior Geral e subscreve a fórmula dos votos religiosos que haverá de fazer nas mãos do Superior Geral.

Declaração de Xavier acerca das Constituições da Companhia de Jesus
1. Eu, Francisco, digo assim: que concedendo Sua Santidade o nosso modo de viver (1), estou por tudo aquilo que a Companhia orde­nar acerca de todas as nossas Constituições, regras e modo de viver, juntando-se em Roma os que a Companhia puder comodamente convocar e chamar; e, uma vez que Sua Santidade envia muitos de nós a diversas partes fora de Itália, os quais não poderão todos jun­tar-se, por esta digo e prometo estar por tudo aquilo que ordenarem os que se puderem juntar, quer sejam dois, quer sejam três, ou os que forem: e assim, por esta, assinada por minha mão, digo e prome­to estar por tudo aquilo que eles fizerem (2).
Escrita em Roma no ano 1540, a 15 de Março, FRANCISCO

Voto para a eleição do Superior Geral
2. Do mesmo modo, eu, Francisco, digo e afirmo que, de modo nenhum persuadido por homem, julgo que aquele que há de ser eleito por Superior da nossa Companhia, ao qual todos havemos de obedecer3, parece-me, falando conforme me assegura a minha consciência, que seja o prelado nosso antigo e verdadeiro pai Dom Inácio, o qual, uma vez que nos juntou a todos com não poucos trabalhos, não sem eles nos saberá melhor conservar, governar e au­mentar de bem em melhor, por estar mais ao par de cada um de nós; e depois da sua morte, falando segundo o que a minha alma sente, como se tivesse de morrer por isto, digo que seja o padre micer4 Pe­dro Fabro5; e, nisto, Deus me é testemunha de que não digo outra coisa do que sinto; e porque é verdade, ponho a minha assinatura por própria mão.
Escrita em Roma no ano 1540, 15 de Março, FRANCISCO

1 A Companhia de Jesus foi aprovada por Paulo III com a Bula «Regimini militantis Ecclesiae» a 27 de Setembro de 1540.
2 Em 4 de Março de 1541, Inácio, Jaio, Laínez, Broet, Salmerón e Codure jun­taram-se em Roma «em nome também dos ausentes que nos tinham dado os seus votos» e encarregaram Inácio e Codure de «estudarem os assuntos da Companhia de forma a serem interpretados segundo a Bula de confirmação» etc. (MI Const. I 34).
3 No dia 4 de Abril de 1541, Inácio foi eleito Superior Geral. Os votos dos 6 companheiros presentes e os restantes dos au­sentes (Xavier e Rodrigues em Portugal, Fabro na Alemanha) permaneceram três dias na urna fechada (ib. 4; cf. 9). O documento público da eleição, que refere também o voto de Xavier, foi redigido em 22 de Abril de 1541 (ib. 8-9).
4 Micer quer dizer meu Senhor. Tinha sido, antigamente, um título honorífico da coroa de Aragão e, no século XVIII, ainda se aplicava, por exemplo, aos letra­dos e legistas, nas ilhas Baleares. Micer Paulo, que aparece muitas vezes nos escritos seguintes, é o P. Paulo Camerte ou de Camerino.
5 A amizade entre Xavier e Fabro é muito conhecida. O voto de Fabro era em primeiro lugar para Inácio e em segundo lugar para Xavier (MI Const. I 32-33; Fabri Mon. 51-53).

Os seus votos religiosos simples
3. Assim mesmo, depois de a Companhia se ter juntado e eleito o Superior, eu, Francisco, prometo agora, para então, perpétua obedi­ência, pobreza e castidade; e assim, padre meu em Cristo caríssimo Laínez, vos rogo por serviço de Deus Nosso Senhor que, na minha ausência, vós, por mim, apresenteis esta minha vontade, com os três votos de religião, ao Superior que elegerdes, porque desde agora, para o dia em que se fizerem, os prometo guardar (6); e, porque é ver­dade, ponho a presente assinatura, feita por minha própria mão.
Escrita em Roma no ano 1540, a 15 de Março (7). FRANCISCO

6 A profissão solene dos primeiros companheiros foi feita em 22 de Abril de 1541, na basílica romana de S. Paulo extra muros (MI Const. I 67-68; Scripta II 6-9; Fontes Narr. I 16-22).

7 Naquele mesmo dia partiu Xavier de Roma com o embaixador português D. Pedro de Mascarenhas (RODRIGUES, Hist). 

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