segunda-feira, 6 de junho de 2016

Entrevista com o Superior Geral dos Jesuítas sobre Xavier

Com a palavra, Peter-Hans Kolvenbach
“É o Senhor quem faz a diferença”


Entrevista com o prepósito-geral da Companhia de Jesus por ocasião dos 500 anos do nascimento de São Francisco Xavier e do bem-aventurado Pedro Favre, e dos 450 anos da morte de Santo Inácio de Loyola -2006.

Entrevista com Peter-Hans Kolvenbach de Giovanni Cubeddu

“Esta visita me dá a oportunidade de agradecer ao Senhor convosco por ter concedido à vossa Companhia o dom de homens de extraordinária santidade e excepcional zelo apostólico, como foram Santo Inácio de Loyola, São Francisco Xavier e o bem-aventurado Pedro Favre. Para vocês, eles são os pais e os fundadores: é justo, portanto, que neste ano de centenário vocês os recordem com gratidão e olhem para eles como os guias iluminados e seguros do seu caminho espiritual e da sua atividade apostólica.” Essas são palavras do papa Bento XVI na saudação com a qual aco­lheu a peregrinação da Companhia de Jesus a São Pedro para visitar o túmulo do Príncipe dos Apóstolos em 22 de abril.
De fato, celebram-se neste ano os quinhentos anos do nascimento de São Francisco Xavier, que Pio XI declarou padroeiro das missões, e do bem-aventurado Pedro Favre, além dos 450 anos da morte de Santo Inácio de Loyola, fundador da Societas Iesu. Uma ocasião propícia para entrevistar padre Peter-Hans Kolvenbach, prepósito-geral da Companhia de Jesus desde setembro de 1983.

Que episódio da vida de Francisco Xavier o faz particularmente caro ao senhor? 
PETER-HANS KOLVENBACH: Xavier desejava servir ao Se­nhor em pobreza e humildade, como havia aprendido de Inácio e dos Exercícios Espirituais. Ter sido nomeado legado pontifício para a Ásia não alterou seu estilo de vida. Temos testemunhos da época sobre a pobreza de Xavier. Ele e seus companheiros viajavam a pé e se vestiam tão miseravelmente que as crianças japonesas os acolhiam a pedradas e os ridicularizavam. Ao descrever suas peregrinações apostólicas no coração do inverno, Xavier fala da dor que sentia pelo inchaço dos pés. Pensando que uma visita ao senhor de algumas províncias lhe valeria a permissão de pregar em público, pediu que lhe concedessem essa audiência, mas a entrada no palácio lhe foi negada porque não tinha presentes adequados para oferecer. Essas experiências o levaram a modificar sua abordagem. Assim, dirigiu-se à cidade de Miyako, vestido de seda, apresentando credenciais de embaixador do governador da Índia, escritas em pergaminho decorado, e levando consigo presentes preciosos... Esse episódio encarna um princípio importante do zelo apostólico da Companhia de Jesus: o uso dos meios a serviço dos fins mais elevados. Xavier representa a “indiferença” que Inácio ensina em seus Exercícios Espirituais. Ele era livre, desapegado das comodidades e das aparências, a fim de que o Senhor pudesse fazer a diferença nas opções que fazia e em seus planos apostólicos. Sendo espiritualmente livre, podia adotar um estilo de vida diferente para que a pregação do Evangelho na realidade japonesa fosse possível. Acho esse episódio extremamente revelador.

Há duas imagens clássicas de Francisco Xavier, uma quando parte em viagem com o breviário nas mãos, na volta das Índias, a outra quando reúne os jovens hindus tocando uma sineta para convidá-los para o catecismo e para a oração. No entanto, Santo Inácio disse que Xavier era “a argila mais rebelde que teve a oportunidade de moldar”... 
KOLVENBACH: Sim. Quando Inácio o encontrou, Xavier sonhava tornar-se um intelectual, um jurista ou um homem de armas para obter uma posição de relevo em sua nativa cidade de Xavier, e elevar o status social de sua família, humilhada por batalhas políticas. Foi preciso muito tempo e perseverança por parte de Inácio para que as palavras do Evangelho, repetidas incessantemente, começassem a ecoar no coração de Xavier: “De que vale a um homem ter ganhado o mundo inteiro se depois perder sua alma?”. Ao passo que, perdendo a vida no seguimento de Cristo, o homem se tornará rico em Cristo... Isso levou Xavier a fazer os Exercícios Espirituais e a doar a si mesmo a Cristo. Uma vez rendido, deu-se totalmente ao Senhor e ao serviço aos outros, seguindo as pegadas do Cristo pobre, com humildade e serviço gratuito.

A propósito de Santo Inácio, o cardeal Martini afirmou que toda vez que há uma discussão na Companhia de Jesus - graças às várias perspectivas e opiniões que derivam do pluralismo que os jesuítas vivem no quadro mundial de sua ação -, tudo se resolve por encanto quando se faz o confronto com os Exercícios Espirituais. 
KOLVENBACH: Sem sombra de dúvida, os Exercícios Espirituais são o fundamento da espiritualidade e da vida da Companhia. Muitos jesuítas perceberam que Deus os estava chamando para a Companhia de Jesus durante os Exercícios que repetiram muitas vezes nos anos da juventude e que consolidaram depois no retiro de um mês, no noviciado. Na rica diversidade de culturas e linguagens, de abordagens espirituais e habilidades profissionais, todos os jesuítas descobriram, ajudados pela experiência espiritual de Inácio, um chamado a discernir a vontade de Deus e uma maneira de continuar hoje a missão de Cristo.

Francisco Xavier morreu, como Inácio, sem os confortos religiosos... 
KOLVENBACH: Conta-se com freqüência um episódio da vida de São Luís Gonzaga. Ele estaria jogando bilhar com outros jovens jesuítas quando um deles lhe perguntou: “Luís, se lhe dissessem que chegou a sua hora, o que você faria?”. Dizem que Luís respondeu: “Eu continuaria a jogar”... Verdadeiro ou não, o episódio revela um ponto importante da espiritualidade inaciana. Mais que a preparação imediata para o momento da morte, são as horas e os anos que a precedem, sustentados pela graça de Deus e vividos no cumprimento da Sua vontade, que importam para o encontro com Cristo, na perspectiva da eternidade. Os pouquíssimos jesuítas que estavam à cabeceira de Inácio, moribundo, ficaram “espantados” com a falta daqueles gestos que normalmente se esperam de um fundador no fim de sua vida: chamar os colaboradores a sua cabeceira, dar a eles os últimos conselhos, nomear um sucessor... Inácio nunca pensou em governar a “sua” companhia, mas a Companhia de Jesus. Os jesuítas foram completamente surpreendidos pelo fato de Inácio morrer de maneira simples, “como uma pessoa comum”. A única testemunha da morte de Xavier nos diz que ele estava feliz no momento de sua passagem solitária, convencido de que para ele havia chegado o momento de encontrar Aquele que durante a sua vida havia sido seu Senhor e companheiro.

O cardeal Tucci escreveu que seria muito fácil ver em Xavier o espírito do conquistador daqueles tempos. No entanto, continua o cardeal, o que move Xavier é a convicção de que ninguém pode se salvar sem ter recebido o batismo. Que exemplo e ensinamento se pode extrair disso? 
KOLVENBACH: Xavier era, em muitos aspectos, filho de seu tempo. A teologia aprendida em Paris e o ambiente religioso no qual havia vivido consideravam o batismo uma necessidade absoluta para a salvação. Xavier sofria muitíssimo quando via que os japoneses choravam depois que ele lhes dizia que seus antepassados estavam condenados ao inferno por não terem sido batizados. Mais tarde, Xavier passou a pôr maior ênfase na misericórdia de Deus, que aceitaria as vidas retas daqueles que, sem culpa, ignoravam a necessidade do batismo. Guiados pela Igreja e pelo Concílio Ecumênico Vaticano II, nós hoje sabemos que a semente da verdade deve ser encontrada em todos os homens, e que Deus oferecerá a salvação àqueles que não chegaram a conhecer Cristo. Mas essa não era a doutrina do tempo de Xavier. De uma forma ou de outra, as novas interpretações do Vaticano II não diminuíram a urgência, para toda a Igreja, de ser missionária com a mesma paixão de Xavier.

Na época de Xavier, os mestres chineses eram considerados os primeiros em todo conhecimento humano. Discutindo com os monges budistas, Xavier ouvia objeções de que, se a religião cristã fosse verdadeira, os chineses já a teriam conhecido. O que é que a Companhia de Jesus aprendeu, nestes séculos, da alma religiosa chinesa e como - também depois da recente nomeação a cardeal do bispo de Hong Kong - podem se desenvolver melhores relações entre Pequim e a Igreja Católica? 
KOLVENBACH: Dos contatos com a cultura chinesa ao longo da história aprendemos em primeiro lugar a respeitar e admirar suas conquistas no campo do espírito humano. O Ocidente olhou para o Oriente com um complexo de superioridade cultural. Xavier e outros missionários que o seguiram ajudaram o Ocidente a adotar uma atitude mais amena e a adquirir a capacidade de apreciar aspectos que não haviam nascido da herança greco-romana. Se é verdade que sob a influência do cristianismo a Europa desenvolveu uma filosofia sobre os direitos humanos e sobre a dignidade humana, que em algumas outras culturas não é uma coisa óbvia, de modo algum, é também verdade que vemos outros valores humanos mais bem preservados nas culturas orientais.
As relações entre a Igreja e a China são obviamente complexas e necessitam de esforços corajosos de ambas as partes antes de se chegar a um entendimento. Não é fácil compreender as razões por trás de certas exigências da China, e está claro também que a China não entende a natureza da Igreja.

Na Companhia de Jesus, nunca faltaram histórias de amizade e santidade. Além de Inácio e Xavier, estamos recordando também o bem-aventurado Pedro Favre...

KOLVENBACH: Os primeiros companheiros desenvolveram uma profunda amizade que reforçou eno­rmemente a sua unidade de intenções. A amizade deles precedeu o laço espiritual que os uniu mais tarde como membros da Companhia de Jesus. Mesmo antes de tomarem a decisão de criar um grupo formal (“se Deus quiser, talvez tenhamos imitadores neste tipo de vida”, diz a Fórmula do Instituto apresentada a Júlio III), Inácio e seus companheiros se identificaram como “um grupo de amigos no Senhor”. Como o se­nhor disse, mesmo sendo personalidades fortes, de ambientes diferentes, havia entre eles uma bela e profunda amizade baseada em sua familiaridade com Cristo.

Inácio, Francisco e Pedro Favre tiveram todos os três relações pessoais com os papas de seu tempo.
KOLVENBACH: A disponibilidade incondicional dos primeiros jesuítas a receberem e cumprirem as “missões” - quaisquer que fossem elas - confiadas a eles pelo papa era obviamente uma novidade para aquela época, e uma atitude que promoveu o vínculo entre eles e os papas. Além do mais, alguns jesuítas eram teólogos notáveis, com os quais os papas gostavam de estabelecer diálogos. Muitos deles foram “teólogos papais” no Concílio de Trento, e Favre morreu exausto depois de uma longa viagem, a pé, no caminho que levava ao Concílio para o qual o Papa o havia convocado. Inácio tinha apenas um desejo: que os jesuítas que ele reuniu e preparou fossem enviados em missão pelo vigário de Cristo na terra. Efetivamente, Francisco Xavier foi enviado à Ásia como legado pontifício.

De onde provêm hoje as vocações da Companhia de Jesus? A grande experiência dos jesuítas nos campos da inculturação e da educação produz frutos ainda hoje? 
KOLVENBACH: Todo ano, cerca de quinhentos jovens entram na Companhia de Jesus. As origens de sua vocação não podem ser resumidas de maneira simples. De qualquer forma, como nos primeiros tempos, os Exercícios Espirituais são muitas vezes o meio pelo qual os jovens reconhecem o chamado do Senhor. As instituições educativas, sociais e pastorais da Companhia continuam a ser o ambiente em que nascem muitas dessas vocações.

Xavier morreu sozinho e sem ter conseguido ir à China. Conta-se que no momento de sua morte a imagem de Jesus que ficava na capela de uma torre do castelo de Xavier suou sangue de seu lado. Essa imagem é conhecida como o Cristo do sorriso. Que significou essa imagem para Xavier e para a Companhia de Jesus?
KOLVENBACH: A escultura à qual o senhor se refere atraiu a atenção de muitas pessoas por ocasião da celebração dos quinhentos anos do nascimento de Xavier. Efetivamente, é uma representação um tanto insólita de Cristo, sorridente na cruz. Os historiadores nos dizem que a escultura, do século XII, ficava no castelo, e que Xavier rezava diante dela. Não acredito que a escultura fosse muito conhecida entre os jesuítas até pouco tempo atrás. Mas certamente a serena beleza do rosto de Cristo nos lembra as suas palavras: “Tudo está consumado” para a nossa salvação. Esse é também o significado da morte de Xavier: “Na morte, parecia muito feliz”.

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