N: Os progressos de Xavier nas ciências e no mundo lisonjeavam a sua vaidade a ponto de o tornar surdo à palavra evangélica, que não cessavam de lhe recordar.
N: Num dia, Inácio depois de lhe ter falado por longo tempo sobre as vaidades do mundo, com tão mau resultado como sempre, terminou com as mesmas palavras celestes:
Inácio: - De que serve ao homem ganhar todo o universo, se vier a perder a sua alma? - Vós o compreendereis um dia, D. Francisco acrescentou ele.
Xavier: - De que serve ao homem estar a pregar todo o dia se não consegue senão perder o seu tempo? replicou-lhe Xavier em tom de mofa.
Inácio: - Cumpre com o seu dever, e aquele que não procura aproveitar, falta ao seu, Francisco.
N: Francisco continuou a trabalhar sem responder. Dois dias depois Inácio apresentava-lhe estudantes capazes de poderem apreciar o seu mérito, e aos quais havia feito os maiores elogios da ciência e eloqüência do jovem professor. Queria levá-lo pelo lado fraco, conhecendo, além disso, que Francisco tinta um coração o mais sensível e o mais reconhecido. Agradeceu a Inácio com delicadeza, repreendendo-se interiormente por o haver tratado até então com tanto rigor. A partir daquele dia renunciou ao seu sistema de defesa por epigramas, e suportava com paciência, sem responder, as importunas maçadas de Inácio. Os dias passam...
N: Depois da partida de Fabro (outro colega de quarto), Francisco pôde estudar melhor as perfeições de Inácio, e quanto mais o admirava, mais se arrependia da injustiça das zombarias que lhe dirigira tão inconsideradamente, tornou-se amável e atencioso para com ele, estimava-o verdadeiramente, mas não passava além.
N: Inácio não conseguia, portanto, o que mais ambicionava, e não obstante a luta interior que Francisco experimentava, e que ele observava e seguia, via-o, contudo, continuar ávido pela glória que passa, e pouco disposto a querer alcançar a que é eterna. De tempos a tempos repetia-lhe: "De que serve ao homem ganhar o universo, se vier a perder a sua alma, caro Francisco?"
N: E ele nada mais dizia.
Persistência de Inácio
N: Estavam as coisas neste pé, no dia em que Miguel, obrigado por falta de dinheiro, viera pedi-lo ao jovem professor no colégio de Beauvais; e nós sabemos que Xavier, depois de lhe ter dado algumas moedas para as primeiras necessidades, lhe pedira que voltasse na manhã seguinte.
N: Na tarde daquele dia, Francisco acabava de interromper o seu trabalho, ao qual não se tinha podido dedicar com o seu habitual zelo, quando sentiu abrir-se levemente a porta do seu quarto para dar passagem a Inácio. Este ruído, ainda que fraco, fê-lo estremecer como se respondesse secretamente aos íntimos pensamentos que o preocupavam.
N: Aproximando-se de Xavier, Inácio estendeu-lhe a mão mostrando envolvê-lo num olhar o mais terno e paternal. Xavier dissimulando do melhor modo que pôde a sensação que lhe causava aquele olhar, apressou-se em dizer ao seu amigo:
Xavier: - Tendes-me dado tantas provas de amizade, meu caro senhor, que não hesito em pedir-vos uma nova. Quereis prestar-me um serviço?
Inácio: - Da melhor vontade, meu amigo. Tudo quanto eu possa fazer por vós, farei com o maior prazer. Falai caro Francisco.
Xavier: - Tivestes a bondade de me emprestar dinheiro a última vez que me faltou pela demora do mensageiro encarregado de receber a minha mesada. Acho-me hoje nas mesmas circunstâncias, e se pudésseis emprestar-lhe de novo, muito grato me deixaríeis.
Inácio: - Sabeis que eu estou sempre à vossa disposição, e muito vos agradeço a confiança que me dispensais, Francisco.
Xavier: - Um amigo meu me pediu que o tirasse dum pequeno embaraço pecuniário, e eu, não o podendo servir neste momento, lembrei-me de recorrer a vós, certo de que me obsequiaríeis.
Inácio: - Certamente e de todo o coração. Vós é que muito me obsequiais dando-me ocasião de vos ser útil, crede-o.
N: Francisco dirigiu ao seu amigo um olhar indecifrável para qualquer outro que não fosse aquele a quem era dirigido. Inácio compreendeu-o e procurou aproveitar o momento que a divina Providência parecia proporcionar-lhe para penetrar na alma que se mostrava, enfim, disposta a abrir-se.
Inácio (disse-lhe muito comovido): - Francisco, o vosso coração é muito bom... em extremo sensível!.. Oh! meu amigo! sim! ele é muito nobre, muito grande, muito generoso para se prender à terra! Não foi feito para este mundo! As vossas próprias reflexões vo-lo terão feito sentir, porque vos acho menos alegre que de ordinário, há já algum tempo, e hoje especialmente pareceis-me triste e preocupado. Pois estou convencido, que alguma coisa vos atormenta interiormente...
Xavier: O que me atormenta, não é tanto a vossa exortação!... É a necessidade de vos dizer que sinto e me arrependo de vos ter conhecido e apreciado tão tarde, manifestando, tantas vezes, que as vossas palavras me eram desagradáveis.
Xavier: - Horroriza-me esta injustiça, sinto que tenho sido mais que injusto aos vossos olhos e o meu coração me recrimina. Eis, pois, tudo.
A conversão é completa
Xavier: - Quanto às minhas idéias do futuro, não as posso sacrificar. Reconheço a vossa bondade, a generosidade do vosso coração e todas as mais qualidades que vos adornam e que eu admiro e respeito. Maravilham-me, sobremodo, as vossas virtudes e a vossa perfeição, mas não me julgo destinado e digno de imitá-las, não me sinto com vocação para renunciar aos meus empreendimentos presentes e àqueles que espero para o futuro.
Inácio: - Mas, caro Francisco, vós me obrigais a opor-vos ainda a frase da vossa embirração: "De que serve ao homem ganhar o universo se ele vier a perder a sua alma?"
Inácio: - A vossa ambição é nobre, eu não a contesto; mas a que se dirige para o Céu, para a eternidade, não a é ainda mais? E se visais a um fim que reconheceis ser menos belo, menos nobre, menos duradouro, é isto digno duma alma como a vossa?
Inácio: - Se não existe outra vida mais que a deste mundo, a razão está por vós. Porém, se a vida deste mundo é curta e a do outro é eterna, é loucura não trabalhar senão pela glória fugitiva da terra e perder assim a da eternidade...”.
Inácio: - "Francisco, podeis me dizer em que se tornaram os ricos, os poderosos, os felizes desta vida que morreram há algum tempo? Viveram de ambições, conquistaram fortunas, honras, e os louvores dos homens; conseguiram o seu fim, obtiveram tudo que ambicionavam e de tudo gozaram..., Mas o que lhes resta agora, depois da morte, de tudo que desfrutaram na terra? O que encontraram de tudo isto às portas da eternidade?"
Inácio: - "Ah! sim, meu amigo! tornarei a dizer-vos ainda, e vós refletireis mais sèriamente: De que serve ao homem ganhar o universo, se vier a perder a sua alma?"
Xavier: - Eu posso amar a ciência, posso ser sensível à glória que reina em torno dela, sem contudo condenar-me por isso.
Inácio: - Tendes a certeza do que dizeis? Não. Sabeis, ao contrário, que Deus vos pede que façais por Ele todo o sacrifício desde já, e nada mais sabeis. Não exponhais, pois, a saúde da vossa alma num talvez!
Xavier: - Sacrificar tudo! encerrar-se o homem num pequeno círculo de idéias estreitas... Inácio: - Estreitas! Elas abraçam todos os séculos passados e por vir, a eternidade inteira, e vós as achais mais estreitas do que as vossas, que se limitam a esta vida e não abraçam senão alguns anos?
Xavier: - Eu não posso deixar de dizer-vos que acho algum tanto baixas as vossas idéias de perfeição, quando vejo que elas vos levam a estender a mão à caridade, andar mal trajado e a suportar toda a sorte de injúrias... Oh! não! nunca poderei partilhar essas idéias!
Inácio: - Achais baixo aquilo que eleva e engrandece a alma! Dizei que é sem sentido o que se aproxima de Deus! Não ignorais, de certo, que ela se eleva e se aproxima d'Ele em proporção e à semelhança de Nosso Senhor, pela prática das virtudes, cujo exemplo nos deu durante a sua vida mortal...
Inácio: - "Francisco, vós sois dotado duma razão bastante clara e dum grandioso coração para deixardes de compreender tudo isto."
Inácio: - "Prossigamos, meu amigo; eu conheço quanto é esclarecido o vosso espírito, e quanto é bom e leal o vosso coração e o vosso caráter; muito bem! dizei-me agora o que achais mais racional e mais proveitoso; sacrificar agora aquilo que prezais para ter segurado a felicidade eterna, ou satisfazer-se hoje desses bens pelo preço duma pena eterna?"
Inácio: - "Respondei".
Narrador: Falando-lhe deste modo, Inácio aproximou-se do seu jovem amigo e tomou-lhe a mão que sentiu estremecer entre as suas, adivinhando a luta que se travava naquele coração tão ardente de 27 anos. Francisco não respondeu.
Inácio: - O vosso silêncio responde por vós, lhe disse Inácio; fiquemos nisto, e eu me convenço de que vós mesmo me direis amanhã: "De que serve ao homem ganhar o universo se vier a perder a sua alma?"
Decidido à conversão, mas Inácio quer a perfeição de Xavier
Xavier: - Não aguardarei para amanhã, respondeu-lhe Francisco com voz comovida; confesso-me vencido... Porém não posso sacrificar tudo como entendeis! É impossível!
Inácio: - Compreendo que acheis impossível, por esta tarde, porém uma natureza como a vossa, não pode reconhecer a verdade sem se render e sacrificar por ela com a mais completa e cega submissão.
N: Francisco não replicou. Inácio levantou-se, deu alguns passos pelo quarto, e depois parando, ficou a contemplar o seu jovem amigo que parecia absorvido nas suas reflexões. Não tardou, porém, muito que os seus olhares se encontrassem. Francisco tinha os olhos cheios de lágrimas. Inácio aproximou-se então dele e abriu-Lhe os braços, aos quais Xavier se deixou atrair, entregando-se completamente comovido...
N: O homem do mundo, que pouco antes se confessara vencido, rendia-se agora por completo. O amigo estreitou-o ao seu coração com o semblante radiante de inexprimível satisfação! Podia, finalmente, entregar a Deus e entregar-lhe toda inteira aquela formosa alma que conhecia ser predestinada a coisas muito grandes, e que pelos desígnios da Providência, devia ir, mais tarde, fundar o reino de Jesus Cristo no meio das nações bárbaras, fazendo reviver entre aqueles povos a luz já consumida e que, outrora irradiara à voz dos primeiros apóstolos.
N: Francisco estava de todo convertido; sentia intimamente que Deus o queria e o chamava para si... mas ele tinha tanto a sacrificar que pediu ainda alguns dias para refletir. Inácio contava, com toda confiança, na retidão e sinceridade do seu amigo para não duvidar um instante sequer do resultado das suas reflexões na disposição em que o via.
Inácio: - Tornaremos a falar, quando você quiser. Sim, meu amigo, disponha do tempo necessário, reflita perante Deus, e segui depois a sua divina inspiração.
N: No dia seguinte, ao levar a quantia de dinheiro que Inácio o havia emprestado em favor de um amigo, este percebe a mudança, no semblante de Xavier, e tenta dissuadi-lo, criticando a vida religiosa de Inácio, mas Francisco, desta vez, não mais compartilha esta zombaria, e recrimina seu amigo de festas:
Xavier: - Ide, Miguel, deixai-me a liberdade de dispor de mim sem necessidade de vosso consentimento: sei que a afeição que me dedicais é o que vos leva a falar-me desse modo; mas muito estimaria que fosse esta a última vez.
N: Miguel retirou-se devorado de tristeza e de raiva. Perguntava a si mesmo qual seria o modo de se vingar de Inácio de Loiola e vingar ao mesmo tempo a família de Xavier. Retiro Espiritual e perfeição de Xavier
N: Dias depois, Francisco declarava-se abertamente como um dos discípulos do seu caro mestre na vida espiritual, esperando o momento em que lhe fosse possível fazer um retiro sob a sua direção e seguindo os Exercícios Espirituais que Inácio, inspirado pelo Céu, escrevera em Manresa.
N: Passava-se isto nas proximidades das férias. Logo que elas começaram, Xavier deixou o colégio e afastou-se do bulício do mundo para ir viver durante algum tempo, a sós com Deus, no retiro e na penitência.
N: Passou os quatro primeiros dias sem tomar alimento algum. A sua pungente dor por ter ofendido a Deus, e o seu desejo de servi-lo dali em diante, eram dois sentimentos tão ardentes da sua alma magnânima e verdadeira, que ele ligava os pés e as mãos, tanto quanto lhe fosse possível, antes da oração, e assim se apresentava em presença de Deus como uma vítima disposta a ser imolada. Não deixava o cilício, jejuava todos os dias e orava sem cessar.
N: Na volta do seu retiro, Xavier começou os estudos de teologia, e dirigido sempre pelo seu santo mestre, fez rápidos progressos no caminho da perfeição.
N: Ofereceram-lhe em vão um rico canonicato em Pamplona; recusou-o, por não ambicionar outras riquezas que não fossem as do Céu.
N: Inácio, vendo-o tão seguro, e forte, comunicou-lhe os seus desejos de ir trabalhar na conversão dos judeus e infiéis que habitavam a Terra Santa. Xavier respondeu-lhe que o seguiria por toda a parte para onde ele fosse. Pedro Fabro dera-lhe, meses antes, igual resposta.
Preparação para Consagração Religiosa com o mestre Inácio
N: No ano seguinte, 1534, Pedro Fabro, (seu colega de quarto), recebeu as ordens sacerdotais e celebrou a primeira missa a 22 de julho. Inácio, que aguardava aquele momento para reunir em torno de si todos aqueles que havia conquistado para o serviço de Deus, aconselhou-os a que se preparassem para aquela reunião por meio de penitências corporais e de longas e freqüentes orações, a fim de atraírem a luz e a inspiração divina sobre a vocação de cada um em trabalhar pela salvação das almas, e maior-glória de Deus.
N: No dia fixado, os seus discípulos, em número de sete, reuniram-se a ele como fora combinado. Todos, homens de ciência, de elevado mérito e de reconhecida inteligência, contemplaram-se por um instante com mútua admiração, experimentando, cada um deles a mais viva comoção que se traía pelas lágrimas involuntárias que derramavam.
Inácio: - "Compreendendo a comoção que experimentaríeis, quis que ignorásseis os nomes dos vossos companheiros escolhidos pelo Céu, com o fim de deixar os vossos corações mais livres em seguir as inspirações de Deus. Conheço que desde que vos vistes, o vosso zelo, a vossa coragem e a vossa confiança redobraram de vigor. Inácio: - Convenço-me de que Deus vos chamava a todos para uma missão de muito grande importância. E se cada um de vós, em separado, é capaz de grandes empreendimentos, muito se pode esperar dos vossos trabalhos achando-vos reunidos para um único fim, por um único pensamento e com um único interesse, a glória de Deus e o bem da igreja! Tivestes tempo bastante para consultar, em presença de Deus, a vossa vocação, e vindes hoje declará-la."
Inácio: - "Por mim, não tenho mais que um só desejo: e vem a ser, conformar a minha vida com a do divino Modelo, socorrido da sua graça. A santidade pessoal de Jesus Cristo não foi julgada suficiente: padeceu, sofreu e morreu pela salvação dos homens. Desejo, pois, esforçar-me por imitá-lo quanto seja possível às minhas poucas forças. Trabalhando pela minha própria salvação quero dedicar-me à salvação dos meus irmãos".
N: Depois patenteou-lhes a dor que sofria a sua alma por ver que os Lugares Santos, que tinham sido banhados pelo sangue divino, se achavam transformados em verdadeiros infernos, e comunicou a resolução que tomara de ir trabalhar pela conversão dos infiéis da Terra Santa.
Inácio: - "Que feliz seria eu! exclamou ele, se me fosse permitido derramar o meu sangue, por uma tal causa, sobre aquela terra, regada pelo sangue do Redentor! Tenho esperanças de que um dia me será concedida uma tão grande felicidade! Confiado nestas esperanças, estou resolvido a entregar-me, a consagrar-me inteiramente a Deus, dedicando-me tão somente ao seu serviço para nunca mais pertencer senão a Ele, por um solene voto; desejo dedicar-me irrevogavelmente à pobreza voluntária, à castidade perpétua e à viagem para a Terra Santa!"
N: Toda a alma de Inácio parecia transportar-se para os seus discípulos à medida que ele lhes falava, e tal era a impressão e o respeitoso entusiasmo que experimentavam, que supunham escutá-lo, ainda algum tempo depois de ter cessado de falar.
N: Despertados daquele êxtase, exclamaram espontaneamente e a uma só voz: Xavier e os demais colegas: - "A Terra Santa! À Terra Santa!"
O novo Xavier
N: O seu presado mestre, Inácio, muitas vezes lhe dissera: "Francisco, lembrai-vos que se não adianta no caminho da virtude, senão quando se tenha triunfado de si próprio! É tão rara a ocasião para um grande sacrifício, que não se deve deixar escapar!"
N: Xavier já não pertencia a si; havia-se dado inteiramente a Deus, dedicara-se de todo ao seu serviço e à salvação das almas, e dali em diante todos os instantes da sua vida iam ser exclusivamente empregados no cumprimento deste duplo voto.
N: Vivendo sempre em companhia de Inácio e de Fabro, aperfeiçoara-se naquela escola, seguindo os conselhos e a direção do seu santo mestre com a docilidade de uma criança c com a humildade do mais perfeito religioso.
N: São Francisco Xavier, juntamente com os demais jesuítas, peregrinaram da França para a Itália para as primeiras missões, reconhecimento do Papa e sua ordenação como Padre a fim de ir pregar na Terra Santa, mas o destino lhe encaminhou para Portugal, a pedido do Rei. E em 07 de abril de 1541
embarca para à desconhecida Índia.
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