INSTRUÇÃO PARA OS DA COMPANHIA DE JESUS
QUE ESTÃO NA COSTA DA PESCARIA E TRAVANCOR
Manapar, Fevereiro de 1548
Cópia do texto primitivo em português, feita em 1746
A ordem que haveis de ter para
servirdes a Deus é a seguinte, na qual vos ocupareis com muita diligência:
1.
Primeiramente vos ocupareis, com muita diligência, nos lugares que visitardes
ou tiverdes a cargo, de batizar as crianças que nascem, por ser este o feito
maior que nestas partes ao presente se pode: indo de casa em casa, pelos
lugares que andardes visitando, perguntando se aí há alguma criança para batizar,
levando convosco alguns meninos do lugar, para vos ajudarem a perguntar1.
2. E não
confieis em meirinhos nem em outras pessoas, que vos venham [eles] dizer quando
alguma criança nasce: pelo descuido que nestes cabe e perigo que correm as
crianças de morrerem sem batismo.
3.
Ocupar-vos-eis muito, em os lugares onde estiverdes ou lugares que visitardes
ou tiverdes cargo, de fazer ensinar aos meninos a doutrina cristã: fazendo com
muita diligência ajuntá-los, e encomendando aos moradores que os ensinem com
muita diligência e que façam seu ofício, tomando-lhes conta de quantos sabem as
orações; para [que], quando outra vez os visitardes, acheis mais fruto, sabendo
eles a conta que lhes haveis de pedir. Este fruto dos meninos é o principal.
4. Aos
domingos, no lugar ou lugares que tiverdes o cargo de visitar, fareis que vão
os homens à igreja dizer as orações; e, nos lugares [em] que aos domingos não
fordes, pedireis conta ao meirinho se os patangatins do lugar vão à igreja, e
assim as outras pessoas do lugar.
No lugar em
que vos achardes, depois de ditas as orações, lhas explicareis: repreendereis
os vícios que entre eles há, com exemplos e comparações claras, procurando
sempre de lhes falar tão claro que vos entendam, dizendo-lhes que, não se
emendando, Deus os há-de castigar, nesta vida, por doenças e abreviando-lhes os
dias da vida por tiranias de adigares e reis2 e, depois da sua morte, indo ao
inferno.
5.
Informar-vos-eis dos que no lugar se querem mal e, ao domingo, trabalhareis
por os fazer amigos, quando se ajuntarem na igreja; e outro tanto fareis, aos
sábados, com as mulheres que se querem mal.
6. As esmolas
que derem, assim homens como mulheres, aos domingos e sábados, ou esmolas que
oferecem nas igrejas, ou promessas de doentes, distribuir-se-ão todas aos
pobres, de modo que não tomemos nenhuma coisa para nós.
7. Aos que
estiverem doentes, visitá-los-eis, dando-lhes lugar e ordem para que vos venham
dizer quando alguém estiver doente. Nesta visitação, fá-los-eis dizer a
Confissão geral e o Credo, perguntando se crêem em cada artigo
verdadeiramente. Para isto, levareis um menino que saiba as orações, para que
as diga1, e rezareis um Evangelho. Admoestareis aos homens e mulheres, aos
domingos e sábados, que vos façam saber quando alguma pessoa adoecer, avisando
que, se vo-lo não fizerem saber, não os haveis de enterrar na igreja nem onde
enterram os cristãos.
8. Aos sábados
e domingos, quando se ajuntarem na igreja os homens e mulheres,
explicar-lhes-eis os artigos da fé, pela ordem que deixo [por] escrito ao P.
Francisco Coelho, para que do português os mude em malabar4: acabados de mudar,
fareis como por eles o tenho escrito, para que, cada sábado e domingo, os
façais ler1 na igreja em que estiverdes e tiverdes cargo de visitar.
9. Quando
morrer alguém, enterrá-lo-eis, indo a sua casa com uma cruz e meninos dizendo
as orações pelo caminho e, em chegando a sua casa, direis um responso,
levando-o depois a enterrar, e todos os meninos dizendo as orações1; quando o
houverdes de enterrar, outro responso. Acabando de o enterrar, aos que estão
presentes, em breves palavras, lhes fareis uma exortação, fazendo-lhes lembrar
que hão-de morrer, e que para isso se encomendem com bem viver, se querem ir
para o paraíso.
10.
Exortá-los-eis, aos sábados e domingos, aos homens e mulheres, que, quando
algum menino estiver doente, o tragam à igreja para lhe dizerem o Evangelho.
Isto, para que os grandes tenham fé e amor à igreja e as crianças se achem
melhor.
11. Fareis por
os conciliar em suas causas e demandas. As que forem de importância,
remetê-las-eis ao capitão ou ao P. António7: de maneira que, o menos que
puderdes, vos ocupareis em averiguar as demandas e, as obras de misericórdia
espirituais, não as deixareis de cumprir por vos ocupardes em ouvir demandas.
Mas as demandas que houver no povo, as que não forem de muita importância, ao
domingo, depois de acabadas as orações, dareis ordem para que se despachem com
os patangatins do lugar.
1
Os missionários, nos princípios de 1548, ainda não sabiam bem a língua tamul.
2
Desde 1547, os cristãos que viviam na costa oriental do Cabo de Comorim
(Pescaria) estavam sob a jurisdição do imperador Vijayanagar ou do seu procurador;
e os que viviam na costa ocidental (Travancor), obedeciam aos reis de Travancor
e Coulão.
4
Refere-se à Explicação do Credo (Xavier-doc. 58). Em Outubro já estava feita a
tradução.
7
Padre Criminali.
12. Com o
capitão vos havereis muito benignamente, de modo que por nenhuma coisa quebreis
com ele. Com todos os portugueses desta Costa, procurareis de viver em paz e
amor com eles, e com nenhum estareis mal, ainda que eles queiram. Os agravos
que eles fizerem aos cristãos, com amor os repreendereis. Quando neles não
houver emenda, fá-lo-eis saber ao capitão. Outra vez vos torno a encomendar:
que por nenhuma coisa estejais mal com o capitão!
13. A
conversação que tiverdes com os portugueses será em coisa de Deus, falando-lhes
na morte e no dia de juízo e nas penas do inferno e do purgatório. Isto, para
admoestá-los a que se confessem e comunguem e vivam em guarda dos dez
mandamentos de Deus. Falando-lhes nestas coisas, não vos impedirão as coisas do
vosso ofício e, os que vos conversarem, serão em coisas espirituais ou vos
deixarão.
14. Aos Padres
da terra, os favorecereis nas coisas espirituais, dizendo-lhes que se
confessem e digam Missa e que vivam dando bom exemplo de si. Deles não
escrevais mal a ninguém, mas somente podereis dar conta disso ao P. António,
que é o superior desta Costa8.
Quando batizardes
crianças, rezai-lhes primeiro um Evangelho de S. Marcos ou o Credo e, depois,
as batizareis com intenção de as fazerdes cristãs, dizendo as palavras
essenciais do batismo, que são: «Eu te batizo em nome do Pai e do Filho e do
Espírito Santo», lançando água quando disserdes estas palavras. Acabando de as
batizar, lhes direis um Evangelho ou uma oração, segundo for vossa devoção.
Quando batizardes grandes, far-lhes-eis primeiro dizer a Confissão geral e o
Credo; e, dizendo o Credo, se crê em cada artigo dele; e, dizendo que sim,
então o batizareis9.
15.
Guardai-vos de dizer mal dos cristãos diante dos portugueses, mas sempre sereis
da sua parte, e os defendereis em falar por eles: é que, se bem olharem os
portugueses a pouca doutrina que esta gente tem, e o pouco tempo que há que são
cristãos, é mais para espantar de não serem piores.
16.
Procurareis com todas as vossas forças fazer-vos amar desta gente, porque,
sendo deles amados, fareis muito mais fruto que sendo deles aborrecidos.
17. Nenhum
castigo fareis entre eles sem primeiro o consultar com o P. António; e, estando
no lugar onde estiver o capitão, não castigareis nem prendereis ninguém, sem
dar primeiro disso parte ao capitão.
18. Quando
algum fizer algum pagode10, assim homens como mulheres, o castigo que nisto lhe
dareis será desterrá-lo do lugar onde estiver para outro, com parecer do P.
António.
19. Aos meninos
que vêm às orações, mostrareis muito amor. Guardai-vos de escandalizar
dissimulando com os castigos que merecem.
20. Quando
escreverdes para a Índia11, aos Padres e Irmãos de lá, será dando
particularmente conta do fruto que fazeis. Também o escrevereis ao Senhor
Bispo, com muito acatamento e reverência, como a superior nosso, de modo que
nos conheça na obediência que lhe temos.
21. A nenhuma
terra ireis, a chamado de nenhum rei nem outro senhor da terra, sem parecer do
P. António, dando por escusa que não podemos lá ir.
22. Muito vos
torno a encomendar que trabalheis por vos fazer amar nos lugares onde andardes
e estiverdes, assim fazendo boas obras como por palavras de amor, para que de
todos sejamos amados antes que aborrecidos, porque desta maneira fareis mais
fruto, com já disse. O Senhor no-lo conceda e fique com todos. Amen.
Em Fevereiro de 1548
Todo vosso, FRANCISCO
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