Peregrinação da Itália à Portugal
[*Bolonha - Todos
quer vê-lo - Toda a população de Bolonha se
achava em grande agitação na sexta-feira de Páscoa do ano de 1540. Homens e
mulheres, jovens e velhos, ricos e pobres, todos iam e vinham em grande
alvoroço; um raio de felicidade parecia brilhar em cada semblante, e de todos
os lados se ouviam trocar as mesmas palavras:
- Sabeis a novidade?
- Sim, acabam de me contar, e vou transmiti-la
aos outros...
- E eu também! Que bênção sobre Bolonha!
- Sabe-se se ele se demorará muito tempo?
- Ninguém o sabe! Acaba de chegar... e não passa
aqui senão a noite!...
- Oh! se ele tornasse a partir sem que nós o
pudéssemos ver! Rezemos a Nossa Senhora! roguemos-lhe que nos permita ouvi-lo
ao menos uma vez!
E ajoelhavam-se, com a piedade nativa daqueles
tempos de fé e de doces esperanças, que valia muito mais do que o cepticismo
destruidor dos nossos dias; ajoelhavam-se diante da Imagem da Virgem colocada
no nicho que ficava por cima da porta do edifício, cuja entrada guardava e
protegia os habitantes, falando-lhe bem alto, sem temor dos sorrisos dos que
por ali passavam:
"Virgem Santíssima! se ele deve partir
amanhã, impedi-o! Que nós o possamos ver e ouvi-lo, e que ele nos abençoe ainda
uma vez!"
Naquele momento propala-se o boato de que o cura
de Santa Lúcia se acha muito satisfeito por ter visto aquele de quem tanto se
ocupava: ainda mais, que dele se apoderara, que o conduzira a sua casa, e que
ali estava! Então o povo dirige-se precipitadamente para o presbitério; quer
entrar, quer saber... Produziam um barulho atroador; o cura aparece a uma
janela, com um gesto indica que quer falar e o silêncio se restabelece:
- Meus filhos, disse ele, vinde amanhã às seis
horas da manhã a [ igreja] Santa Lúcia e sereis satisfeitos...
- Obrigado! obrigado! senhor! exclamava o povo a
uma voz.
Na manhã seguinte, desde as quatro horas da
madrugada, toda a população se dirigia a Santa Lúcia, e foi necessário
abrirem-se as portas àquela hora. A igreja estava cheia, a ponto de não poder
conter nem mais uma pessoa; o Santo que se esperava, o nosso S. Francisco
Xavier, a instâncias do cura, disse a missa no altar-mor e falou de Deus àquela
multidão ávida de o ouvir e que o escutava aos soluços, por que sentia que lhe
seria de novo arrebatado.
Xavier viera com o embaixador de Portugal, não
trazendo por bagagem mais do que o seu breviário, a bênção do Vigário de Jesus
Cristo e a do seu amado pai, Santo Inácio de Loiola.
Viagem perigosa e
cansativa - No século XVI não se viajava tão
fácil e ràpidamente como hoje. As estradas eram quase intransitáveis, as
viaturas muito raras, os caminhos de ferro desconhecidos. Montava-se então em
bons e fortes cavalos, mais próprios para resistirem a longas viagens do que
para velozes corridas; se se quisesse levar mulheres, faziam-nas montar na
garupa e cavalgava-se assim por montes e por vales; os que não podiam ter
cavalgadura, viajavam a pé.
Pedro de
Mascarenhas, na qualidade de embaixador, tinha a sua carroça; a sua comitiva
acompanhava-o a cavalo, e os domésticos a pé. Ele pusera também à disposição do
nosso Santo um cavalo, porém a bondade do coração de Xavier não permitia que o
reservasse só para si; fazia utilizar dele os criados, por turnos, e ele era
quem o montava o menos possível; este arranjo satisfazia de algum modo o seu
zelo e a sua caridade.
Quando se achava a pé, sustentava, com mais
liberdade, largas conversações com os companheiros de viagem, e depois de os
ter entusiasmado pela sua amável benevolência e habitual alegria, falava-lhes
das suas almas e fazia-lhes compreender que deviam temer e amar a Deus.
Quando descansavam nas hospedarias, era para o
embaixador e para os principais da sua comitiva que se dirigiam as atenções do
Padre Francisco, mostrando-se para coxas eles amável, espirituoso e atraente.
- O rei aguarda-o para enviá-lo às Índias, dizia
Pedro, mas quando o conhecer quererá por certo deixá-lo em Lisboa.
- Ou mesmo na corte, acrescentava o capelão, por
que ali prestaria valiosos serviços.
- Nunca vi tão elevada distinção pessoal aliada
a uma tão grande santidade, prosseguia o embaixador; o rei não 0 deixará sair
de Portugal.
Pedro tinha sabido pela sua gente que onde as
camas eram insuficientes, jamais o Padre Xavier se utilizava da que lhe
reservavam; obrigava àquele que a não tivesse a aceitá-la. Convencia-se, pois,
de que o Santo tinha o maior empenho em ser útil a todos, e até aos criados de
serviço; avaliava, finalmente, toda a importância do tesouro que tinha tido a
felicidade de adquirir para o seu soberano.
CARTA DE XAVIER A
INÁCIO DE LOIOLA
Consolaçõs ao
Mestre Inácio - Descansaram alguns dias em Loreto,
e Xavier, por si próprio, vai dizer-nos, na seguinte carta que escreveu a Santo
Inácio, qual o benefício para a religião que para ali levaram.]
5
AOS PADRES INÁCIO DE LOYOLA E PEDRO CODÁCIO
Bolonha, 31 de Março 1540
Autógrafo de Xavier em castelhano
IHUS. A graça e amor de Cristo
Nosso Senhor seja sempre em nossa ajuda e favor.
Alegra-se com as cartas recebidas dos companheiros no dia de Páscoa e
promete escrever frequentemente e ao modo como lhe indicam
1. No dia de
Páscoa1 recebi umas cartas vossas2, num embrulho que vinha para o senhor
Embaixador3 e, com elas, tanto gozo e consolação quanto Nosso Senhor sabe. E
já que, só por cartas creio que nesta vida nos veremos, e na outra cara a cara4
com muitos abraços, resta que, neste pouco tempo que desta vida nos fica, por
frequentes cartas nos vejamos. Eu assim o farei, como acabais de mo mandar:
quanto ao de escrever a miúde cumprindo a ordem das folhazitas5 [aparte].
Benevolência do cardeal Bonifácio Ferreri para com Xavier e a Companhia
de Jesus nascente
2. Com o
cardeal Ibrea6 falei muito a meu prazer,
pela ordem que me escrevestes. Recebeu-me muito humaníssimamente, oferecendo-se
muito a favorecer-nos em tudo o que ele pudesse7. O bom velho, já quando me
despedia dele, começou a abraçar-me ao beijar-lhe eu as mãos. E, a meio do
arrazoado que lhe fiz, pus-me de joelhos e, em nome de toda a Companhia,
beijei-lhe as mãos: pelo que ele me respondeu, e eu acredito, ele está muito
bem com o nosso modo de proceder.
Fervor do Embaixador português e da sua comitiva durante a viagem
3. O senhor
Embaixador faz-me tantos regalos, que não poderia acabar de os descrever. E não
sei como poderia suportá-los, se não pensasse e tivesse quase por certo que,
entre os índios, com não menos que a vida, se haveriam de pagar. Em Nossa
Senhora do Loreto, no domingo de Ramos, confessei-o e dei-lhe a comunhão a ele
e a muitos da sua casa: na capela de Nossa Senhora8 disse Missa, e o bom
Embaixador fez que, juntamente com ele, comungassem todos os de sua casa dentro
da capela. E depois, no dia de Páscoa, confessei-o e dei-lhe a comunhão outra
vez, [a ele] e outros devotos da sua casa. O capelão do senhor Embaixador
recomenda-se muito às orações de todos, e tem-me dado promessas de ir conosco
para as Índias9.
Manda consolar em seu nome a senhora Faustina Ancolina pelo assassínio
de seu filho
4. À senhora
Faustina Ancolina10 dareis as minhas recomendações: dizei-lhe que disse Missa
pelo seu Vincencio11 e meu, e que direi amanhã outra por ele; e que tenha por
certo que eu nunca me esquecerei dela, mesmo quando estiver nas Índias. E da
minha parte, micer Pedro12, irmão meu caríssimo, fazei-lhe lembrar que me
mantenha a promessa que me fez de se confessar e comungar, e que me faça saber
se o tem feito e quantas vezes. E se quer dar prazer ao seu e meu Vincencio,
dizei-lhe da minha parte que perdoe aos que mataram o seu filho13, pois por
eles roga muito Vincencio no céu.
Trabalhos pastorais em Bolonha
5. Cá, em
Bolonha, estou mais ocupado em ouvir confissões14 do que estava em São Luís15.
Recomendai-me muito a todos, pois é verdade que não é por esquecimento que
deixo de os nomear.
Saudação final
De Bolonha,
último de Março 1540
Vosso irmão e
servo em Cristo, FRANCISCO
1 Dia 28 de Março.
2
Inácio enviou duas cartas a Xavier no dia 21 de Março: uma de recomendação
para o seu irmão Beltrão residente em Loyola, escrita em 20 de Março de 1540
(ed. MI Epp. I 155); outra, que se perdeu, para o próprio Xavier.
3
D. Pedro de Mascarenhas, senhor de Palma, nascido em 1483, Embaixador português
em Roma em 1538-1541, Vice-rei da Índia em 1554-1555, amicíssima da Companhia
de Jesus, morreu em Goa em 1555; a data do seu nascimento encontra-se em CC
1-94-74). A carta de Inácio era de 21 de Março. A sua resposta a Inácio era de
31 de Março 1540.
4
Cf. 1Cor 13,12.
5
Folhazita era uma carta adjunta à principal, em que se escreviam os assuntos de
carácter reservado ou especial, não comunicáveis a todos (cf. MI, Epp. I
236--238 e Cartas de S. Ignacio I 147-151).
6
Bonifácio Ferreri, nascido em Vercelli, foi designado cardeal de Ibrea em 1517,
cidade de que já fora bispo em 1488-1509 e de novo em 1511-1518. Nomeado
Legado de Bolonha em 1539, morreu em 1543
7
Para demover o cardeal Guidiccioni da sua forte oposição à aprovação da
Companhia de Jesus, Inácio implorou nessa altura a intercessão de pessoas da
grande influência, entre as quais até a do duque de Ferrara, a do arcebispo de
Sena, a da cidade de Parma e, como indica esta carta, a do Legado de Bolonha
(TACCHI VENTURI II 317, n.2).
8
Santa Casa.
9
Não foi possível encontrar o seu nome; mas não chegou a ir para a Índia.
10
Faustina de Jancolini, viúva de Ubaldo de Ubaldis, nobilíssima matrona romana,
faleceu em Roma em 1556. No testamento, redigido em 23 de Dezembro de 1539,
deixou por sua morte à Companhia de Jesus a sua casa, junto aos terrenos da atual
Piazza Colona (TACCHI VENTURI , Storia della Compagnia di Gesù in Itália I/2,
223-229; II 353-360).
11
A dor que lhe ficou do seu filho assassinado, até no testamento deixou vestígios:
«viúva, encontrando-se sozinha… tristíssima e dolorosíssima pela morte já do
seu único e cordialíssimo filho, messer Vincentio de Ubaldis» (ib. I/2,
224-225).
12
Pedro Codacio (Codazzo) S.I., nascido em Lodi , cónego da catedral do mesmo
lugar, curial do Papa Paulo III, abastado em rendas eclesiásticas, entrou na
Companhia de Jesus em 1539, à qual doou a primeira igreja (S. Maria della
Strata) que esta teve em Roma e a casa. Foi o primeiro procurador da Companhia
de Jesus. Morreu em Roma em 1549 (ib. II 333-339).
13
Sobre a morte de Vicente que, aos 28 anos, infaustamente foi morto em 11 de
Novembro de 1538 no monte Maggio perto de Rovereto, narra a inscrição do
sepulcro: «A Vincento de Ubaldis, romano, capitão de infantaria, trucidado
cruelíssimamente, embora não impunemente, na flor da juventude, pelos soldados
alpinos, na matança do monte Maggio contra Marcelo, quando reclamava o dinheiro
emprestado, Faustina Jancolina, romana, mãe piedosíssima, ao seu filho
amantíssimo, com cuja morte desapareceu a esperança da estirpe dos Ubaldi, inconsolável…
pôs» (TACCHI VENTURI II.
14
Na igreja de S. Luzia.
15 S. Luís dos franceses, em Roma.
[*Despedidas aos
fieis em pranto (ainda na Itália) - É o
próprio Santo que o diz: ele achava-se absorvido pelas confissões em Bolonha. O embaixador
concedeu alguns dias de demora ao público, e o Santo, querendo, por seu lado,
satisfazer a todos, quase que não saía da igreja. Porém foi geral a dor quando
se soube que o Padre Francisco Xavier ia para as Índias! Foi um luto público
para Bolonha! O povo chorava em altas vozes pelas ruas, na igreja e em toda a
parte onde o viam, em todo o lugar onde. se falava dele; mortos queriam
segui-lo para onde ele fosse.
- Iremos para as Índias convosco, meu Padre! levai-nos!
permiti que vos sigamos!
E ouviam-se lamentos, soluços e gritos de dor
que dilaceravam o coração tão terno, tão amável de Xavier! Ele não pôde impedir
que o povo em multidão o acompanhasse, à sua partida, até uma grande distância,
chorando sempre com a maior consternação, e repetindo sem cessar e sem fim as
seguintes palavras de dor:
- "Nunca mais!... Oh! não nos veremos
mais!... Não nos abençoareis jamais!...".
Era esta uma prova sensível para o coração
impressionável do Santo tão amado! O próprio embaixador se comoveu vivamente,
assim como as pessoas da sua comitiva.
Nunca se vira coisa semelhante por causa de um
Padre de aparência tão humilde, tão pobre, e tão despretensiosa, e ninguém
poderia esquecer, em toda a sua vida, aqueles comovedores adeuses.
A esta população, de joelhos no caminho,
recebendo, em soluços e brados de dor, a última bênção do apóstolo que tanto
amara, e que não tornaria a ver senão no Céu: o próprio Santo, que não tendo já
palavras de consolação para aqueles que assim choravam a sua ausência,
abençoava cada um com sua mão bendita, deixando correr lágrimas de ternura e
reconhecimento...
Este quadro era extremamente comovedor e devia
deixar uma perpétua memória. Quando a caravana se pôs a caminho, deixando o
povo ainda ajoelhado, o jovem santo voltou-se e dirigiu-se-lhe ainda uma vez:
- "Meus bons e queridos irmãos Bolonheses,
eu não vos esquecerei nem mesmo nas Índias! Orarei por vós todos os dias; rezai
também por mim!...".
Nada mais disse, e dirigindo o seu cavalo em
seguimento dos que o precediam, deixou os Bolonheses, que se conservaram no
mesmo lugar por todo o tempo em que. puderam seguir com a vista aquele que eles
tão saudosamente choravam.
Conversão do servo
do Rei - A viagem devia ser longa, porque
estava convencionado que de Roma a Lisboa, deviam ir sempre por terra; em cada
dia se adiantava um criado da comitiva para preparar alojamentos.
Num dia, o embaixador, descontente pela maneira
como o seu correio se desleixara naquele serviço, repreendeu-o severamente.
Antônio conteve, em presença de seu amo, a
explosão da sua cólera, porém na manhã seguinte, violentamente encolerizado,
montou a cavalo, picou-o de esporas e partiu como um furioso.
Xavier, testemunha desta fuga, não lhe disse nem
uma palavra; receou irritá-lo em vez de o acalmar; contudo prevendo os perigos
daquela corrida louca que Antônio levava, o Santo monta a cavalo e parte em
seguimento do desgraçado correio que encontra estendido no chão, por debaixo do
seu cavalo morto e cujo peso o sufocava. Xavier apeia-se, desembaraça-o,
levanta-o, monta-o no seu cavalo e, tomando as rédeas, o conduz à mão até à
primeira aldeia. Ali o faz descansar e lhe presta todos os cuidados de que ele
carecia. Logo que o viu melhor, disse-lhe:
- Meu pobre Antônio, o que teria sido da vossa
alma se tivésseis morrido naquele estado?
A voz de Francisco era tão meiga e tão
penetrante naquele momento, que foi direita ao coração do culpado e ali vibrou
sensivelmente.
- É verdade, meu Padre, respondeu ele derramando
copiosas lágrimas; o que teria sido de mim sem a vossa caridade ?
E Antônio confessou-se e mudou de vida.
Deixemos agora Francisco Xavier contar ele mesmo
os incidentes desta longa viagem.]
6
AOS PADRES INÁCIO DE LOYOLA E NICOLAU BOBADILHA (ROMA)
Lisboa 23 de Julho 1540
Cópia em castelhano,
feita em Roma pelo P. Ribadeneira em 1540
IHUS
A graça e amor de Cristo Nosso
Senhor sejam sempre em nossa ajuda e favor. Ámen.
Viagem para Portugal. Fervor religioso do Embaixador e da sua comitiva.
Confissões
1.
Muitos e contínuos foram os benefícios que Cristo Nosso
Senhor nos fez, na vinda de Roma para Portugal. Tardamos no caminho, até chegar
a Lisboa, mais de três meses1. Em tão longo caminho e com tantos trabalhos,
vir sempre com muita saúde o senhor Embaixador2 e toda a sua casa, desde o
maior ao mais pequeno, coisa é para dar muitos louvores e graças a Cristo Nosso
Senhor. Com efeito, além da sua habitual ajuda, especialmente punha a sua mão para
de todos os perigos nos livrar e para, assim, o senhor Embaixador governar com
tal ordem toda a sua casa que parecia mais casa de religiosos que de um
secular, confessando-se e comungando [ele] muitas vezes; e os criados, tomando
exemplo dele, faziam o mesmo, imitando-o. A tal ponto que, pelos caminhos,
quando não era possível achar disposição nas pousadas aonde chegávamos, para
confessar os seus criados, tínhamos de nos desviar do caminho e, apeando-nos,
os costumava confessar.
Perigos que passou um cavaleiro ao atravessar um rio
2.
Vindo por Itália, quis Nosso Senhor mostrar-se milagrosamente em um dos seus
criados: naquele que esteve aí em Roma a ponto de se fazer frade. Atravessando
ele uma ribeira muito grande3 contra vontade de todos, foi tão grande a força
do rio que, em presença de todos, a ele e ao cavalo levou a água mais longe do
que desde a pousada em que vos deixamos em Roma4 até S. Luís [dos franceses].
Quis Deus Nosso Senhor ouvir as devotas orações do seu servo, o senhor
Embaixador, o qual eficazmente com todos os seus, não sem lágrimas, rogava
instantemente ao Senhor que o livrasse. Assim quis Nosso Senhor livrá-lo, mais
milagrosamente que humanamente. Este era um moço de estrebaria. Folgara ele
mais, ao tempo em que ia pela água abaixo, estar no mosteiro, do que onde se
achava [agora], pesando-lhe muito ter diferido tanto o que muito desejava ter
cumprido. Disse-me, quando lhe falei, que em todo o tempo que andou na água a
perder-se, sem nenhuma esperança de salvar-se, não lhe dava outra coisa tanta
pena como a de haver vivido tanto tempo sem dispor-se para morrer. E juntamente
com isto me dizia que lhe doía muito na alma não ter cumprido e posto por obra
o que Deus Nosso Senhor lhe tinha começado acerca do seu modo de viver.
[Nota 1º livro: Francisco Xavier tinha a convicção de que era
devido às orações do embaixador e das pessoas da sua casa, o evidente milagre
que restituíra a vida ao escudeiro; porém Pedro e os que o acompanhavam não
hesitaram um momento sequer em atribuí-lo ao Padre Francisco, que todos olhavam
como um Santo. ]
1
Escreve o Embaixador D. Pedro de Mascarenhas que Xavier partiu com ele de Roma
a 15 de Março (Corpo Diplomático Português VI 298; 300). Chegou a Lisboa em
fins de Junho (RODRIGUES, Hist. I 241, n.1).
2
D. Pedro de Mascarenhas.
3
Talvez o rio Taro, perto de Parma, que em Março atingia grandes cheias (cf. A.
SCHOTTI, Itinerarium Italiae, msterdão).
4
Casa de António Frangipani (Via Delfini 16).
Desta
maneira dava ânimo a todos. Ficou tão espantado que parecia que vinha do outro
mundo. Com tanta eficácia falava das penas do outro mundo, como se delas
tivesse tido experiência, dizendo que, quem na vida não se dispõe a morrer, à
hora da morte não tem ânimo para recordar-se de Deus. Falava este bom homem do
que por experiência veio a saber: não por havê-lo lido ou ouvido dizer, senão
por haver passado por isso. Muita compaixão tenho por muitos dos nossos amigos
e conhecidos, temendo-me que tanto adiem os seus bons pensamentos e desejos de
servir a Deus Nosso Senhor que, quando os quiserem pôr em execução, não tenham
tempo nem oportunidade.
[Milagre da
montanha – Dá a vida pelo irmão - A neve
ainda cobria uma grande parte das montanhas quando a caravana atravessou os
Alpes. O secretário do embaixador apeara-se do cavalo numa passagem perigosa;
mas a neve não permitia, à vista mais perspicaz, reconhecer o sítio em que se
punha o pé, e cada um temia por si. Um grito desesperado se fez ouvir
inesperadamente. O secretário havia desaparecido. Avança-se com precaução, e
olha-se pela inclinação rápida dum imenso precipício... Os seus vestidos
estavam embaraçados nas asperezas dum rochedo, estava suspenso sobre o abismo,
o peso do seu corpo vai arrastá-lo, o fato vai rasgar-se pela ação do mesmo
peso, e ele perecerá da mais horrível morte! Ninguém ousa socorrê-lo, o seu
salvamento é impossível; quem o tentasse corria a uma perda certa...
Xavier lança-se por aquele horroroso precipício,
sem escutar os gritos e as súplicas com que buscavam retê-lo. Desce com
admirável facilidade até onde estava o secretário, toma-lhe a mão, puxa-o para
si, e salvo o restitui ao embaixador, que, maravilhado, não pode crer o que
seus olhos viam.
Os viajantes exclamam então a uma voz:
"Milagre!" porque Xavier acabava de praticar uma coisa humanamente
impossível; e é isto que explica o seu silêncio sobre este facto na sua carta à
Companhia de Roma. Porém esta tão sublime modéstia não podia ficar ignorada;
existiam muitas testemunhas, qual delas mais impressionada, de que Deus o havia
recompensado por um milagre incontestável, cuja recordação não podia extinguir-se
em nenhum deles.
PASSAGEM
PELA ESPANHA (Pamplona: perto do Castelo de Xavier)
Esperança da mãe de
Xavier em vê-lo - Um extraordinário
movimento animava o solar senhorial de Xavier. Toda a família de Jasso de
Azpilcueta se achava reunida em torno da nobre castelã, D. Maria, cuja avançada
idade não havia envelhecido o coração e lhe fortificara a fé. Seus filhos
tinham sabido na corte que o rei de Portugal pedira ao Papa alguns Padres da
Sociedade de Inácio de Loiola para evangelizar as Índias, e D. Maria que
conservara no coração a predição de sua filha, estava convencida que o seu
amado Francisco estaria incluído no número daqueles que Deus escolheria para um
tão perigoso e glorioso apostolado.
Bem depressa se espalhou também a notícia de que
Pedro de Mascarenhas atravessaria a Espanha, que estava já em caminho, e que o
Padre Francisco Xavier o acompanhava. Cada pessoa da nobre família esperava
ver, na sua passagem, aquele último descendente, cuja infância recebera as
carícias de todos, cuja mocidade encantara os primeiros velhos dias do pai, que
não existia já, e cuja ausência era uma contínua dor para a mãe veneranda que
vivia ainda.
Quase todos os dias um dos criados de D. Maria
montava a cavalo, ia a Pamplona, informava-se e voltava no dia seguinte para
assegurar que o correio do embaixador não chegara ainda:
"Será amanhã, dizia suspirando a mãe do
nosso Santo; esperemos".
E ela esperava, os dias corriam uns após outros,
e o seu filho não aparecia! Desde aquele em que começara a esperar a felicidade
de o tornar a ver. D. Maria quase que se estabelecera numa janela donde
descobria o caminho que conduzia a Sanguesa e donde a sua vista alcançava a
grande distância por ser um dos pontos mais elevados do castelo.
- Há dezassete anos que não vejo o meu belo
Francisco, dizia ela algumas vezes; mas se ele vem agora, hei-de reconhecê-lo,
por certo!
- Querida mãe! respondiam-lhe seus filhos, bem
depressa o tornareis a ver.
- Pedro Ortiz tem-nos mandado dizer sempre que
ele é a mesmo belo Francisco. Somente acrescenta que está magro porque este meu
querido filho se tornou um Santo, e pratica austeridades que alteram a sua
saúde...
Então procurava-se mudar a conversação, porque a
pobre mãe não podia ocultar as lágrimas que lhe corriam em abundância, quando se
lembrava que a santidade do seu filho o levara a martirizar o corpo, a ponto de
enfraquecer a sua robusta constituição. Depois elevava os olhos para o céu com
expressão resignada e ajuntava:
- É verdade que ele é de Deus! inteiramente
d'Ele!... já me não pertence!
E recaía no seu lânguido e habitual silêncio.
Amar a Deus sob
todas as coisas: Xavier não visita sua mãe -
Os dias corriam. O embaixador de Portugal avançava na sua jornada e entrava em
Navarra, e disse: - Padre Francisco, nós não estamos longe de Pamplona, onde
devo descansar. Ali vos esperarei.
- Esperar-me, senhor?
- Pois vós não ides ao castelo de Xavier visitar
vossa família?
- Não, senhor; agradeço a vossa bondade, mas não
posso aceitar.
- Como! acaso esqueceis, meu caro Padre, que ides
deixar a Europa talvez para sempre?!
- É provável, senhor.
- Pois muito bem! vós não vedes a vossa família
há já muito tempo, e a senhora vossa boa mãe está hoje velha.
- Conheço tudo isso, senhor, mas não é para
Xavier que Deus me chama, é para as Índias.
- Meu Padre, é esta uma abnegação que eu admiro
verdadeiramente, mas permiti-me fazer-vos observar que a senhora de Jasso deve
esperar-vos, e que é impor um sacri- fício muito grande ao coração duma mãe. É
por ela, é pois D. Maria, que vos peço, que vos rogo, meu Padre. Ide a Xavier!
Dai esta consolação à vossa família!
- A esta consolação, senhor, se ajuntarão a
amargura da separação e dos adeuses dilacerantes. Por minha mãe, que eu amo
terna e extremosamente, por toda a minha família, que me é tão cara, e por mim
mesmo, é melhor que eu evite estes desgostos, e que nos não tornemos a ver
senão no Céu. Ali, senhor, a união será sem separação, a consolação sem
amarguras e a felicidade sem estorvo.
O embaixador ia insistir. Francisco conhece e
replica:
- Eu dei tudo a Deus, senhor, não me é
permitido, portanto, dispor de mim para os outros; não me julgo com esse
direito.
Uma mãe que não
verá mais o filho - O caráter cavalheiresco
que o jovem Francisco manifestara em Santa Bárbara torna a patentear-se aqui com toda
a generosidade do Santo formado na escola de Inácio, e que não vivia senão do
contínuo sacrifício de si próprio.
Cheio de admiração, Pedro de Mascarenhas, sem o
dizer a Francisco, modificou as disposições do seu itinerário, por delicadeza
para com a família do nosso Santo. Atravessou a cidade de Pamplona, retendo-se
ali só por momentos, a fim de renovar as suas provisões e despachar um correio
ao rei de Portugal, a quem escreveu para lhe dar antecipadamente conhecimento
da elevada santidade do missionário que lhe levava.
Poucas horas depois de os viajantes deixarem
Pamplona, apresentou-se ali o enviado do castelo de Xavier... Era já, porém,
muito tarde. Pedro não dissera onde pernoitaria naquela dia; supunha-se mesmo
que alterara o seu itinerário, e ouviram-no dizer às pessoas da sua comitiva
que o Padre Francisco Xavier era duma tal santidade que recusara desviar-se do
caminho para ir ao solar visitar a sua família.
Além disso, assegurava que ele parecia ter
saúde, que era amável e bom para todos em geral, e que em toda a parte onde
fosse visto se reconheceria imediatamente nele, não obstante a pobreza do seu
traje, um grande fidalgo da velha Navarra espanhola.
"Eu, por mim, reconheci-o
perfeitamente!" acrescentava com orgulho o estalajadeiro de Pamplona, que
sentia duplicar a sua importância ao pensar que não somente um embaixador se
hospedara em sua casa, mas ainda, porque vira de bem perto o filho da castelã
de Xavier, ao passo que ela própria fora privada daquela felicidade..."
Era necessário comunicar-se esta pungente
notícia a D. Maria: seus filhos procuraram todos os rodeios possíveis, porém
quaisquer que fossem a prudência e a doçura dos meios, um semelhante golpe
dirigido ao coração duma mãe causa sempre profunda ferida!
D. Maria agradeceu a seus filhos as meigas
carícias que deles recebeu; depois pediu para ser conduzida à capela e ali
renovou os votos do seu sacrifício e de ações de graças, oferecendo em
holocausto toda a sua dor maternal aos pés do crucifixo de madeira, de tamanho
natural, que ornava o fundo da capela.
Este crucifixo fora muito venerado por Francisco
na sua infância... e D. Maria comprazia-se em falar-lhe do seu querido ausente;
parecia-lhe então que as forças e a generosidade se lhe aumentavam, e que
recebia tesouros de bênçãos para si e para o filho tão amado, que nunca mais
tornaria a ver.
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