SÃO FRANCISCO XAVIER E A CULTURA FUNERÁRIA E MEMORIAL DE GOA
Não
apenas a vida de Francisco Xavier marcou a história das "Índias
orientais", em particular de Goa. A sua morte deu ensejo a solenidades que
marcaram a história cultural do Oriente cristão. Fundamentou uma cultura
memorial de alto significado para a identidade de comunidades e que apenas nas
últimas décadas, com a integração de Goa na União Indiana, passa a ser
substituida com bases em outros referenciais. A consideração do seu mausoléu e
de sua veneração em Goa adquire particular atualidade à luz do debate relativo
à superação do eurocentrismo nos estudos do Cristianismo no Oriente.
O corpo de São
Francisco foi trazido da ilha de Sancian pelo seu companheiro, Antonio de Santa
Fé, em 1553. Transportado pela nave Santa Cruz, após dois e meio meses,
alcançou Malaca, onde o corpo foi venerado na igreja. Em dezembro de 1553, foi
transferido para Goa pelo irmão Manoel de Tavora, com estações em Cochim e
Batcal.
O noviço
Mendes Pinto descreveu, em carta de 1554, o recebimento dos restos mortais de
Francisco Xavier em alto mar, acompanhado por quatro catecúmenos que cantavam o
Gloria. Ao chegar o corpo em Goa, após 15 meses da morte do missionário, o
caixão foi recebido por 5000 pessoas, com a presença de representantes do
Governo e da nobreza, sendo os funerais celebrados também com a participação do
clero secular e de outras ordens religiosas. As exéquias tiveram lugar no
Colégio de São Paulo e entraram na história local como uma das mais solenes
cerimônias até então celebradas na cidade. Em sua memória, os Franciscanos
cantaram uma "missa de Nossa Senhora" num sábado e os clérigos da Sé
Catedral cantaram a "missa da cruz" para dar um testemunho do
trabalho de Francisco Xavier pela adoração da cruz. ((Bispo, A.A., Grundlagen christlicher
Musikkultur in der außereuropäischen Welt der Neuzeit, Musices Aptatio 1987-88,
Roma 1989, 629)
Após cinco
anos de sua morte, as solenidades e a pompa fúnebre foram ainda maiores. Apesar
da reserva prevista pelas Constituições relativamente ao canto, em particular
ao Ofício, as circunstâncias já criadas em Goa eram de tal ordem que as
cerimônias foram realizadas com grande aparato musical, convidando-se os mais
capacitados cantores e instrumentistas para o salmos da Véspera, o primeiro e o
segundo Noturno, as Antífonas, o Invitatorium e as orações. Esse grupo coral,
de especialistas, foi alternado pelos alunos do Colégio, que formaram um
segundo coro. À noite, os sinos dobraram várias vezes. A solenidade foi tão
longa que o terceiro Noturno apenas pode ser cantado à alvorada. A seguir,
celebrou-se uma missa solene. Para a benção do caixão, o Patriarca Nunes
Barreto entoou o último Responsorium, apoiado por muitos cantores de boas
vozes. ((Bispo, A.A.,op.cit.)
Canonizado em 1622, a notícia chegou a
Goa em 1623, dando motivo, no ano seguinte, a grandes solenidades. O corpo, em
pequeno caixão de prata, foi levado em procissão à capela de São Francisco de
Borja, na igreja do Bom Jesus. Um livro especial foi publicado pela imprensa do
Colégio de São Paulo em 1624, com o relato das solenidades feitas para celebrar
a canonização de Inácio de Loyola e Francisco Xavier.
Com
a doação do Capitão Antonio Teles da Silva, tomada no leito da morte pelo irmão
Marcelo Francesco Mastrilli, que abrira o caixão em 1636, tornou-se possível
construir um novo sarcófago. Em 1637, o corpo foi colocado no novo repositório
de prata feita por artistas goanos.
Presença de Florença em Goa: mausoléu de Francisco Xavier no Bom Jesus
O mausoléu de
S. Francisco Xavier na igreja do Bom Jesus é considerado como um dos principais
tesouros do patrimônio religioso-cultural de velha Goa (Veja artigo
a respeito do Bom Jesus nesta edição).
Esse mausoléu
manteve vivo o culto a Francisco Xavier à época da expulsão dos jesuítas e de
outras ordens religiosas no século XIX, quando a sua festa continuou a ser ali
celebrada, e sobreviveu ao longo período de decadência da antiga cidade. Ainda
hoje é alvo de peregrinações e atos de culto.
O mausoléu, na
capela direita do transepto, é uma obra estruturada em três partes: o altar, o
mausoléu propriamente dito e a urna de prata. As relíquias estão conservadas
nessa urna, obra artisticamente elaborada por artesãos da própria Índia.
Em mármore
italiano, foi obra do artista florentino Giovanni Battista Foggini (1652-1725).
Executado em 1697, é uma das mais valiosas expressões do Barroco tardio europeu
do Oriente.
A elucidação da autoria
da obra e das circunstâncias da sua criação é devida sobretudo ao pesquisador
Carlos de Azevedo. Foggini, arquiteto e escultor, protegido por Cosimo III de
Medici (1642-1723), estudou de 1673
a 1676 na Accademia Fiorentina em Roma, sendo nomeado,
em 1687, a
escultor e arquiteto da Côrte dos Medicis, tornando-se famoso pela sua arte
funerária.
Cosimo III de
Florença, tendo sido procurado pelo Ir. Francisco Sarmento, Procurador Geral da
Província de Goa, que lhe ofereceu uma peça sobre o qual a cabeça de S.
Francisco Xavier havia descansado após a morte, mandou que se criasse um
mausoléu de mármore italiano para ser enviado a Goa. Para a sua ereção no
local, no ano seguinte à sua criação, foi especialmente enviado a Goa o artista
Placido Francesco Ramponi.
A parte superior do
sarcófago tem uma forma que lembra, segundo alguns, trabalhos indianos em
marfim ou um templo. 32 placas de prata nos quatro lados do sarcófago
representam diferentes cenas da vida de Francisco Xavier. Algumas delas lembram
fatos da vida do santo em Veneza e Vicenza, assim como atos e milagres que
praticou no Oriente. Anjos ornamentam o mausoléu, um deles segurando um coração
ardente e outro com o texto: Satis est - Domine, Satis est.
Em 1659, o
caixão foi removido para a capela do tabernáculo, defronte à de S. Francisco de
Borgia, inicialmente determinada para servir de capela mortuária. As paredes
foram decoradas com pinturas representando cenas da vida de S. Francisco
Xavier.
Em todos os lados do mausóleu há
representações da vida do santo em bronze: a pregação aos molucos, com as
palavras Nox inimica fugat, o batismo de povos de Moluca com o texto Ut vitam
habeant, o ataque da ilha Moro com o texto Nihil horum vereor e Francisco na
ilha de Sancian, com o texto Major in occasu.
Capela de S. Francisco Xavier da igreja do Bom Jesus, Goa
O túmulo de
S. Francisco Xavier, localizado na capela da sua invocação, na igreja do Bom
Jesus de Goa assume-se como uma obra, a vários títulos, excepcional.
Integrado
no camarim de uma imponente estrutura retabular, o túmulo propriamente dito, é
constituído por várias componentes, destacando-se desde logo a arca feral,
paralelipipédica e de tampa escalonada, em prata, de fabrico goês, e o aparato escultórico
concebido em momento posterior, em mármore e bronze e de origem italiana.
Quando
Francisco Xavier morreu, a 3 de Dezembro de 1552, o seu corpo foi enterrado num
caixão de madeira de acordo com as práticas chinesas, por ação do seu amigo
António de Santa Fé, tendo desde logo sido colocadas duas camadas de cal (a fim
de acelerar o processo de corrupção dos restos mortais), de molde a poder
transportar-se com brevidade as ossadas para outro local. Com efeito, dois
meses e meio mais tarde, os restos mortais de Francisco Xavier foram
transportados para Malaca. Aí foram de novo enterrados (desta feita sem o
caixão), sendo o rosto coberto, como era prática local. Já no mês de Dezembro
de 1553, os restos mortais foram então transportados para Goa, pelo Padre
Manuel de Távora, onde foram recebidos com grande solenidade, na presença do
arcebispo e do vice-rei, no dia 15 de Março de 1554. As cerimónias das exéquias
fúnebres tiveram então lugar na igreja do colégio de S. Paulo, onde o corpo de
S. Francisco Xavier ficou passando, mais tarde, para o terceiro andar (sobre a
portaria) da Casa Professa do Bom Jesus. Quando, em 1623, chegou a Goa a
notícia da canonização de S. Francisco Xavier (que ocorrera em Roma no ano
anterior), deliberou-se transportar o corpo do santo para a capela de S.
Francisco de Borja (no transepto, do lado do Evangelho), na igreja do Bom
Jesus, o que, em solene procissão, se verificou em 1624, ficando, desde então, exposto
à veneração dos fiéis. Já então os restos mortais de S. Francisco Xavier se
encontravam no interior de um caixão de prata, acerca do qual nada de muito
concreto se sabe mas presume-se que seria bastante simples. Só a 2 de Dezembro
de 1637 foi transferido o corpo do santo para a arca de prata que ainda na atualidade
se pode observar, a qual foi realizada por ourives locais entre 1636 e 1637. A
arca apresenta-se constituída pelo corpo, paralelipipédico, ostentando
decoração dominantemente de carácter arquitectónico
e vegetalista e sendo as faces (maiores e menores) ainda animadas pela presença
de trinta e duas placas relevadas com cenas alusivas a passos da vida do santo.
A tampa, escalonada, apresenta igualmente uma ornamentação constituída por uma
gramática arquitectónica e vegetalista, sendo a animação marcada pelas contracurvas
das cornucópias que ritmam, pelo efeito de repetição, a decoração
horizontalizante do conjunto.
Esta
horizontalidade só se vê desmentida pelo remate superior da tampa, de cariz
mais claramente arquitectónico, exibindo placas relevadas, apresentando-se
sobrepujado de cruz e por dois anjos, ostentando um o coração em chamas e outro
a legenda latina Satisest Domine, Satis est. A integração das placas, figurando
cenas da vida de S. Francisco Xavier, na arca, foi concebida de molde a que as
mesmas pudessem ser
(regularmente) retiradas, a
fim de que a visão do corpo ficasse acessível aos olhos dos fiéis, expondo-se
assim, mais claramente à sua veneração.
No ano de
1659, este túmulo de prata foi transferido da capela de S. Francisco de Borja,
onde se encontrava desde 1637, para a capela fronteira, do lado da Epístola, no
transepto da mesma igreja do Bom Jesus, a qual passou a ter a invocação de S.
Francisco Xavier, procedendo-se, por esta ocasião, à decoração pictórica dos muros
e da abóbada com figurações de episódios da vida do santo.
A segunda
componente do túmulo de S. Francisco Xavier, resultou de uma oferta do
grão-duque da Toscânia, Cosme III, a quem o Procurador-Geral da Província de
Goa, o Padre Francisco Sarmento, havia ofertado um objecto que agradou
particularmente ao grão-duque: um pequeno coxim no qual S. Francisco Xavier
descansara a sua cabeça durante alguns anos. Assim, no mês de Setembro de 1698,
chegou a Goa o monumento e também Placido Francesco Ramponi, artista enviado
para coordenar e supervisionar a montagem e assentamento do mesmo. Em Novembro
já o monumento se encontrava instalado na capela do santo na igreja do Bom
Jesus, passando a funcionar como um monumental e aparatoso embasamento
integrando o altar - para a arca feral dprata previamente existente, a qual
foi colocada rematando o conjunto. A obra florentina consiste no que podemos
considerar o embasamento (que integra o altar) e ostenta nas suas quatro faces
outros tantos relevos brônzeos figurando cenas da vida do santo, sendo que o da
face frontal se apresenta encimado por dois anjinhos tenentes de um medalhão
marmóreo, sobre o qual se lê a seguinte legenda em bronze: Nox inimica fugat.
Sobre esta estrutura eleva-se uma balaustrada marmórea que funciona como guarda
da arca de prata.
A autoria
da obra de escultura, particularmente aquela realizada em bronze, tem sido
atribuída ao escultor florentino Giovanni Battista Foggini (1652-1725),
escultor notável e particularmente influente no contexto florentino, aquando da
introdução e difusão do barroco, porque formador de outros escultores e por ter
desenvolvido a sua actividade quase exclusivamente no imediato círculo dos
Médicis. Com efeito, Foggini foi, no seguimento de uma estada romana (onde
frequentou a oficina de Ercole Ferrata), o responsável maior pela introdução do
gosto do barroco romano do seicento no ambiente preferencialmente classicizante
de Florença. Essa linguagem actualizada - veiculando valores como a expressão
do movimento, a verosimelhança na representação dos diversos materiais, a
minúcia da figuração do pormenor decorativo - é bem visível nos anjinhos
marmóreos mas também nos relevos brônzeos que animam as faces do embasamento,
os quais bem traduzem as capacidades de Foggini ao nível da construção
compositiva e da gradação de planos, herdeira igualmente da tradição
escultórica renascentista florentina.
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