carta nº48 / continuação
AOS SEUS COMPANHEIROS RESIDENTES EM ROMA
Cochim, 27 de
Janeiro 1545
Duma cópia em castelhano, feita em 1547
Martírio de cristãos na ilha de Manar. Vontade do Governador em matar o
rei perseguidor e passar o reino ao príncipe, seu irmão, refugiado em Goa
3. Noutra
terra (*Patim,
na ilha de Manar), a cinquenta léguas desta onde ando, me mandaram
dizer os moradores dela que queriam ser cristãos e me rogavam que fosse batizá-los.
Eu não pude ir, por estar ocupado em coisas de muito serviço do Senhor. Roguei
a um clérigo4 que fosse baptizá-los. Depois de ele ter ido e os ter batizado, o
rei da terra5 fez, a muitos deles6, grandes estragos e crueldades, [só] porque
se fizeram cristãos.
Graças
sejam dadas a Deus Nosso Senhor, que em nossos dias não faltam mártires! Já
que, por piedades, tão devagar se vai povoando o céu, permite Deus Nosso
Senhor, por sua grande providência, que, por crueldades que na terra se fazem,
o glorioso número dos eleitos se vá completando.
4
Talvez fosse um dos diáconos indianos, Manuel ou Gaspar, o que passou por lá em
Outubro, ao vir da Costa da Pescaria para a ordenação sacerdotal em Goa.
5 Chekarâsa Sêkaran (Sankily),
rei de Jaffna (SCHURHAMMER, Ceylon 136).
6
Só parte dos cristãos foi martirizada; os restantes, protegidos pelos portugueses,
regressaram a Manar em 1561.
O Governador
da Índia, do qual vos tenho escrito muitas vezes quanto é nosso amigo e de toda
a Companhia, sentiu de tal maneira a morte destes cristãos que, logo que lhe
falei7, mandou grande armada por mar a prender e destruir aquele rei, de maneira
que me foi necessário aplacar a sua santa ira. O rei que matou estes cristãos
tem um irmão, que é o verdadeiro herdeiro do reino, e está fora do reino pelo
temor que tem do rei seu irmão que o mate8. Diz este irmão do rei que, se o
Governador o puser na posse do reino, ele se fará cristão com os principais e
os demais do reino. Por isso, manda o Governador aos seus capitães que, em
fazendo-se cristão este irmão do rei com os seus, lhe entreguem o reino e, ao
rei que matou os cristãos, o matem ou façam o que eu de parte do Governador
lhes disser. Espero em Deus Nosso Senhor e em sua infinita misericórdia, e nas
orações devotíssimas dos que martirizou, que ele virá a conhecimento do seu
erro, pedindo a Deus misericórdia, fazendo salutar penitência.
Milagre no martírio dum príncipe doutro reino, que atraiu à fé seu
irmão e muita outra gente
4. Num reino
destas partes (*Cota (Kotê), junto a Colombo),
que fica a quarenta léguas de onde andamos Francisco Mansilhas e eu (*no Cabo Comorim), o príncipe daquele reino11 de terminou
fazer-se cristão. O rei12, sendo sabedor,
mandou-o matar. Dizem, os que se encontravam presentes, que viram no céu uma
cruz de cor de fogo e [que], no lugar onde o mataram, se abriu a terra em cruz.
Dizem que muitos infiéis que viram estes sinais estão muito movidos a fazer-se
cristãos13. Um irmão14 deste príncipe, quando viu estes sinais, pediu aos
Padres15 daquelas partes que o fizessem cristão, e assim o batizaram16. Falei
com este príncipe cristão17, o qual vai pedir socorro ao Governador para
defender-se do rei que matou o seu irmão. Parece-me que daqui a não muitos dias
aquele reino se converterá à nossa santa fé, porque a gente está muito movida a
isso pelos sinais que viu na morte do príncipe, e também porque o herdeiro do reino
é o príncipe que se fez cristão19.
Três nobres convertidos em Macassar (Celebes), pedem missionários.
Trabalho de Micer Paulo no colégio de Goa. O apoio e simpatia dos portugueses
merecem mais missionários
5.
Noutra terra (*Macassar,
Celebes ocidentais) muito longe, quase
quinhentas léguas desta onde ando, fizeram-se cristãos, haverá oito meses, três
grandes senhores com muita outra gente21. Mandaram aqueles senhores às
fortalezas22 do Rei de Portugal a pedir pessoas religiosas, para que os
ensinassem e doutrinassem na lei de Deus, pois até agora tinham vivido como
brutos animais e daqui em diante queriam viver como homens, conhecendo e
servindo a Deus. E assim os capitães23 das fortalezas do Rei os proveram de
clérigos24 para fazer aquele santo ministério. Por estas coisas que vos
escrevo, podeis saber quão disposta está esta terra para dar muito fruto.
Rogai, pois, ao Senhor da messe que envie operários para a sua vinha (*Mt 9,38). Confio em Deus Nosso Senhor que este
ano farei mais de cem mil cristãos, a julgar pela muita disposição que há
nestas partes.
7
No dia 23 de Dezembro, o Governador já estava de novo em Goa, onde Xavier falou
com ele SCHURHAMMER.
8
Xavier teve estas notícias deste irmão do rei de Jaffna, velho brâmane, por
Mansilhas. Já tinha filhos e netos. Sobre os vários nomes que se lhe atribuem,
pode ver-se SCHURHAMMER, Ceylon 142.
11
Iugo, filho do rei Bhuvaneka Bâhu e duma concubina (SCHURHAMMER). Como
primogénito, era e chamava-se príncipe herdeiro. Mas o pai , em 1542, já tinha feito
confirmar em Lisboa o neto Dharmapâla com sucessor do reino.
12
Bhuvaneka Bâhu.
13
Iugo foi morto em fins de 1544.
14
Em regime de poligamia, como a que reinava entre os cingaleses, o parentesco é
designado por palavras muito ambíguas. Aqui tratava-se do príncipe João, cuja
mãe era irmã do rei Bhuvaneka (ib. 143; 190).
15
Padres franciscanos, que então evangelizavam Ceilão. Em Cota havia dois (ib.
203).
16
André de Sousa diz que fez cristãos os príncipes, porque foi ele que os animou
a batizar-se.
17
Xavier encontrou este príncipe D. João e o seu padrinho André de Sousa em
Cochim, onde ambos tinham chegado em 27 de Janeiro de 1545, vindos de Colombo
(ib. 144; 202).
19
No direito do Malabar (Marumakkattayan), o filho da irmã do rei era o herdeiro
do reino.
21
Xavier encontrou-se em Cochim com António de Paiva que, chegado de Malaca a 26
de Janeiro, lhe contou como tinha ido à ilha das Celebes e lá tinha convencido
o rei de Supa e seu filho, assim como o rei do distrito de Sião, na parte
ocidental da ilha, e muita outra gente a receberem o batismo. Nestas notícias
se funda o relatório de Miguel Vaz (Serapeum 19 (1859). O próprio Paiva
escreveu sobre isso à rainha e fez-lhe um amplo relatório sobre os reis
convertidos. Sobre as missões cristãs na parte sul da ilha.
22
Pode referir-se apenas às fortalezas de Malaca e Ternate (Molucas).
23
Os dois reis enviaram legados com Paiva ao capitão de Malaca, que então, depois
da morte súbita de Rodrigo Vaz Pereira, era Simão Botelho (SCHURHAMMER, Mendes
Pinto 82; Serapeum l.c. 185).
24
Simão Botelho enviou-lhes o sacerdote diocesano Vicente Viegas
Micer
Paulo está em Goa no colégio da Santa Fé. É confessor dos estudantes: ocupa-se
nas enfermidades tanto espirituais como corporais deles continuamente. Faz
tanto, o Rei de Portugal, por acrescentar esta santa casa, que é coisa para dar
graças ao Senhor26. Os que a estas partes, só por amor e serviço de Deus Nosso
Senhor, vierem, para acrescentar o número dos fiéis e as fronteiras da santa
Igreja, mãe nossa – pois há tanta disposição nesta terra – encontrarão todo o
favor e ajuda necessária nos portugueses desta terra com muita abundância, e
serão deles recebidos com muita caridade e amor, por ser a nação portuguesa tão
amiga da sua lei, e desejosa de ver estas partes de infiéis convertidas à fé de
Cristo nosso Redentor. Ainda que não fosse por mais que por satisfazer à
caridade e ao amor que à nossa Companhia têm27, deveríeis mandar a estas partes
alguns da Companhia. Quanto mais havendo tanta disposição nestas partes para
fazer cristãos! E assim cesso, rogando a Deus Nosso Senhor que nos dê a
conhecer e sentir sua santíssima vontade e, sentida, muitas forças e graças
para nesta vida a cumprir com caridade.
De
Cochim, a 27 de Janeiro de 1545
Vosso
filho mínimo em Cristo, FRANCISCO
COCHIM 1548
A caminho da Índia, passa por uma das maiores tempestades da vida. Reação espiritual que lhe provoca
20. Oito dias
há que cheguei à Índia66. Até agora não me vi com os Padres da Companhia67. Por
esta razão não escrevo deles nem do fruto que nestas partes têm feito depois
que chegaram. Parece-me que eles vos escrevem largamente.
Nesta
viagem, de Malaca para a Índia, passámos muitos perigos de grandes tormentas,
três dias com três noites. Maiores do que os que nunca me vi no mar. Muitos
foram os que choraram em vida as suas mortes, com prometimentos grandes de
jamais navegar se Deus Nosso Senhor desta os livrasse. Tudo o que pudemos
deitar ao mar deitámos, para salvar as vidas.
21.
Estando na maior força da tormenta, me encomendei a Deus Nosso Senhor,
começando por tomar primeiro por valedores na terra mais consolado nesta
tormenta, do que talvez o fui depois de ser livre dela. Achar um grandíssimo
pecador lágrimas de prazer e consolação todos os da bendita Companhia de Jesus
com todos os devotos dela. Com tanto favor e ajuda, entreguei-me todo nas
devotíssimas orações da esposa de Jesus Cristo, que é a santa madre Igreja a
qual, diante do seu esposo Jesus Cristo, estando na terra é continuadamente
ouvida no céu. Não me descuidei de tomar por valedores todos os santos da
glória do paraíso, começando primeiro por aqueles que nesta vida foram da
santa Companhia de Jesus, tomando primeiramente por valedora a beata alma do
Padre Fabro68, com todas as demais que em vida foram da Companhia de Jesus69.
SAIU EM Fins de Dezembro.
66
Chegou a 13 de Janeiro (Xavier-doc. 61,13).
67
Em Cochim ainda não havia então jesuítas. A 11 de Setembro de 1546 tinham
chegado de Portugal a Goa Francisco Henriques, Francisco Pérez e Adão Francisco
(Doc. Indica 363) e a 17 de Setembro Henrique Henriques, Nuno Ribeiro e Manuel
de Moraes júnior (Doc. Indica 151); em 20 de Outubro, a Cochim, Cipriano,
Baltasar e Nicolau Nunes (COUTO, Da Ásia 6,3,9; CORREA IV 550). Em 1547 nenhum
jesuíta foi de Portugal para a Índia.
68
Morreu em Roma a 1 de Agosto de 1546.
69
Os da nova Ordem que tinham morrido até 1546 foram estes: em 1538, Hozes e
Coduri; em 1541, Francisco de Torres e Marco Lainez; em 1543, Mart e Pezzano;
em 1544, Lamberto Castrense; em 1546, Fabro, António Monis, H. Pijn, C.
Wishaven júnior.
Nunca poderia
acabar de escrever as consolações que recebo quando, pelos da Companhia, assim
dos que vivem como dos que reinam no céu, me encomendo a Deus Nosso Senhor.
Entreguei-me, posto em todo o perigo, a todos os anjos, procedendo pelas nove ordens
deles e, juntamente, a todos os patriarcas, profetas, apóstolos, evangelistas,
mártires, confessores, virgens, com todos os santos do céu. Para mais firmeza
de poder alcançar perdão dos meus infinitíssimos pecados, tomei por valedora a
gloriosa Virgem Nossa Senhora, pois no céu, onde está, tudo o que a Deus Nosso
Senhor pede lhe outorga. Finalmente, posta toda a minha esperança nos
infinitíssimos merecimentos da morte e paixão de Jesus Cristo Nosso Redentor e
Senhor, com todos este favores e ajudas, achei-me em tanta tribulação, para
mim, quando me recordo, é uma confusão muito grande. E assim, rogava a Deus
Nosso Senhor, nesta tormenta, que se desta me livrasse, não fosse senão para
entrar noutras tão grandes ou maiores, que fossem de maior serviço seu70.
Amor transbordante pela Companhia de Jesus
22.
Quando começo a falar desta santa Companhia de Jesus, não sei sair de tão
deleitosa comunicação, nem sei acabar de escrever. Mas vejo que me é forçado
acabar, sem ter vontade nem achar fim para isso, pela pressa que têm as naus71.
Não sei com que melhor acabe de escrever que confessando a todos os da
Companhia, que se algum dia me esquecer da Companhia do nome de Jesus, ao
esquecimento se dê a minha mão direita72, pois por tantas vias tenho conhecido
o muito que devo a todos os da Companhia. Fez-me Deus Nosso Senhor tanta mercê
por vossos merecimentos: a de dar-me, conforme a esta pobre capacidade minha,
conhecimento da dívida que à santa Companhia devo. Não digo de toda, porque em
mim não há virtude nem talento para igual conhecimento de dívida tão crescida.
Mas, para evitar de alguma maneira pecado de ingratidão, há [em mim], pela
misericórdia de Deus Nosso Senhor, algum conhecimento, ainda que pouco. Assim
cesso, rogando a Deus Nosso Senhor que, pois nos juntou em sua santa Companhia
nesta tão trabalhosa vida, por sua santa misericórdia nos junte na sua gloriosa
companhia do céu, pois nesta vida tão apartados uns dos outros andamos por seu
amor.
Muitas
vezes Deus Nosso Senhor me tem dado a sentir dentro em minha alma, de quantos
perigos corporais e espirituais trabalhos me tem guardado, pelos devotos e
contínuos sacrifícios e orações de todos aqueles que debaixo da bendita
Companhia de Jesus militam e de todos os que estão agora na glória com muito triunfo
e em vida militaram e foram da dita Companhia. Esta conta vos dou, caríssimos
em Cristo Padres e Irmãos, do muito que vos devo, para que me ajudeis a pagar,
todos, o que eu só, nem a Deus nem a vós posso
As grandes demoras do correio entre o Oriente
e a Europa
23.
E para que saibais quão apartados corporalmente estamos uns dos outros, é que,
quando em virtude da santa obediência nos mandais de Roma aos que estamos em
Maluco, ou aos que formos para o Japão, não podeis ter resposta do que nos mandais
em menos de três anos e nove meses. Para que saibais que é assim como digo, vos
dou a razão. Quando de Roma nos escreveis para a Índia, antes que recebamos as
vossas cartas na Índia se passam oito meses. E depois que recebemos as vossas
cartas, antes que da Índia partam os navios para Maluco, se passam oito meses
esperando tempo. E a nau que parte da Índia para Maluco, em ir e tornar à
Índia, põe vinte e um meses, e isto com muito bons tempos. E da Índia, antes
que vá a resposta para Roma, se passam oito meses; e isto se entende quando
navegam com muito bons tempos, porque, a acontecer algum contraste, alargam a
viagem muitas vezes mais de um ano73.
De
Cochim, a 20 de Janeiro de 1548
Mínimo
servo dos servos da Companhia do nome de Jesus, FRANCISCO
70
Ver também o que testemunhou Francisco Pereira para a causa de canonização de
Xavier (MX II 191).
71
A 22 de Janeiro deu à vela a última nau, São Boaventura, que devia ter partido
entre 15 e 20 desse mês.
72
Sl 136, 5.
73
Cf. Rebello: «Partem de Goa a 15 de Abril, chegam a Malaca no fim de Maio e
(partem) daí a 15 de Agosto. E chegam a Maluco até ao fim de Outubro, donde
partem a 15 de Fevereiro e, em seis, sete dias chegam a Amboino. Donde partem a
15 de Maio, ou segura a lua cheia do mesmo mês, e chegam a Malaca no fim de
Junho e para bem trovarem (encontrarem) as naus do Reino, partem dali a 15 de
Novembro e chegam a Cochim na entrada de Janeiro. E, descarregando aí, chegam
a Goa até 15 de Março. E assim se gastam vinte e três meses de viagem e por via
de Banda põem trinta meses» (REBELLO, Informação 299-300; WESSELS, Histoire
d’Amboine 117-118).
TRECHO DA CARTA 60, 1548, COCHIM A D. JOÃO III
Pede muitos pregadores para continuar nas fortalezas portuguesas a
catequese que ele fez nas Molucas, Malaca e noutros núcleos cristãos
10.
Por amor e serviço de Deus Nosso Senhor, peço a Vossa Alteza que, a seus leais
vassalos da Índia e a mim com eles, faça esta mercê: de mandar, para o ano,
muitos pregadores da nossa Companhia. Porque lhe faço saber que têm muita
necessidade deles, nas fortalezas da Índia, assim os portugueses como os
cristãos novamente convertidos. Isto me causa escrever: a experiência que
tenho vista.
11.
Pregava em Malaca e Maluco, ao tempo que lá estive, duas vezes todos os
domingos e dias santos, pela muita necessidade que via: aos portugueses, pela
manhã na Missa e, depois do jantar16, aos filhos e filhas dos portugueses e
escravos seus e aos cristãos forros da terra, declarando-lhes os artigos da fé.
Um dia na semana, pregava numa igreja às mulheres dos portugueses, assim da
terra como mestiças, sobre os artigos da fé e sacramentos da confissão e da
comunhão. Em poucos anos se faria muito serviço a Deus Nosso Senhor, se se
continuasse esta doutrina. Nas fortalezas, ensinava em todo este tempo a
doutrina cristã, todos os dias depois do jantar, aos filhos e filhas dos
portugueses, escravas e escravos seus e cristãos da terra, e com esta doutrina
e ensino cessavam muito as idolatrias e feitiçarias.
12.
Esta conta dou a Vossa Alteza, para que se lembre de mandar pregadores, pois à
míngua deles nem os portugueses nem os convertidos à nossa fé são cristãos.
Também, Senhor, eu desconfio de não vir tanto bem a estas partes, porque a
Índia tem esta qualidade: que não sofre fazer-se nela tanto bem espiritual.
Elogio ao Bispo de Goa, a quem injustamente
têm caluniado por ocasião da morte de Miguel Vaz
13.
A treze de Janeiro deste ano, vindo de Malaca, cheguei aqui a Cochim, onde
encontrei o Bispo17. Com ele fiquei muito consolado em ver que, com tanta
caridade, toma tantos trabalhos corporais, visitando as fortalezas do seu
bispado e os cristãos de São Tomé18, fazendo seu ofício como verdadeiro pastor.
Em paga de tão boas obras, algumas pessoas destas partes lhe dão o galardão que
costuma dar o mundo. Fiquei muito edificado, em ver a sua paciência tão santa.
Coisas falarão na Índia dele alguns devotos e servos do mundo, e parece-me que
também as escreverão a Vossa Alteza, acerca da morte de Miguel Vaz19. Eu, por
descargo da minha consciência, sem poder escrever nem poder dizer como, sei que
em tal coisa não é culpado mais do que sou eu, que estava em Maluco quando isto
aconteceu.
14.
Por amor e serviço de Nosso Senhor, e por descargo da sua consciência, peço a
Vossa Alteza, muito por mercê, que o não desconsole, porque Vossa Alteza,
dando crédito a tão grande falsidade, poria em grande crédito aos praguejadores
da Índia.
16
Almoço, na maneira de falar antiga. / 17 Frei João de Albuquerque.
18
O Bispo dos cristãos de S. Tomé era Mar Jacob, residente em Cochim; mas também
o Bispo de Goa se julgava pastor deles, pelo menos onde havia guarnições de
portugueses e nas suas redondezas.
19
Miguel Vaz, quando viajava de Goa para Diu, ao encontro do Governador, para lhe
urgir o cumprimento das severas ordens que trazia de Portugal contra os
brâmanes e idólatras, morreu repentinamente em Chaul a 11 de Janeiro de 1547.
Como alguns falaram de veneno, o capitão da fortaleza mandou imediatamente
fazer exame ao cadáver por um médico, que diagnosticou morte por cólera-morbo,
e assim o comunicou o capitão ao Governador a 13 de Janeiro. Contudo o rumor de
veneno continuava e Cosme Anes escreveu ao Rei em Novembro daquele ano: «Acerca
da morte de Miguel Vaz houve, logo que se soube que faleceu, um tom que correu
por muitos lugares, que o Bispo lhe mandara dar peçonha… O que eu tenho para
mim que, se foi peçonha de que morreu Miguel Vaz, como muitos afirmaram, que
lha mandaram Vida de D. João de Castro 455).dar brâmanes». O próprio Bispo
escreveu de Goa ao Governador a 1 de Fevereiro de 1547 que era muito grande a
sua dor pela morte de Miguel Vaz e que só Deus sabia como e quando morreu. E
acrescentava: «Falsos testemunhos cá se dizem muitos: disto lhe darei conta
quando N. Senhor o trouxer a esta terra ou me mandar a mim ir aí».
Agradece os favores concedidos pelo Rei ao vigário de Cochim e seu
sobrinho e pede alvarás para a respectiva requisição na Índia
15. A mercê
que Vossa Alteza fez a Pedro Gonçalves, vigário de Cochim20, de tomá-lo por seu
capelão e, a um sobrinho seu, por moço de câmara, fez-me a mim muita mercê. Eu
estou no conhecimento disso, porque lhe faço saber que a casa do vigário de
Cochim21 é estalagem da Companhia de Jesus, e ele é muito nosso amigo. Tanto
que, por nossa causa, gasta porventura o que não tem, tomando emprestado. Peço
a Vossa Alteza, em nome da Companhia, que lhe faça, a ele e ao seu sobrinho,
mercê de lhes mandar passar seus alvarás, para que vençam cá seus ordenados,
pois o vigário, olhando pelas almas dos leais vassalos de Vossa Alteza, e seu
sobrinho, servindo nas armadas, lho merecem. Fico rogando a Deus Nosso Senhor
que, a Vossa Alteza, dê a sentir dentro em sua alma e, juntamente, a fazer
tudo aquilo que à hora da sua morte folgaria ter feito.
De Cochim, a
vinte de Janeiro de mil e quinhentos e quarenta e oito anos.
Servo inútil
de Vossa Alteza, FRANCISCO
70
AO PADRE INÁCIO DE LOYOLA (ROMA)
Cochim, 12 de Janeiro 1549
Duma cópia em castelhano, feita em 1585 - Primeira
via
A
graça e amor de Cristo Nosso Senhor seja sempre em nossa ajuda e favor. Amen.
Pai meu nas
entranhas de Cristo único1
Necessidade que os missionários têm de orações, por viverem entre gente
tão bárbara
1. Pelas
cartas principais que escrevemos, pela via de Mestre Simão, todos os vossos
mínimos servos da Índia, será informada, vossa santa Caridade, do fruto e
serviço que a Deus Nosso Senhor se faz nestas partes da Índia – com a ajuda de
Deus e de seus devotos e santos sacrifícios e orações – e se fará no futuro.
Por esta, lhe faço saber, particularmente, algumas coisas destas partes tão
remotas de Roma. Primeiramente, da gente India natural destas partes: é gente,
de quanta tenho visto, falando em geral, muito bárbara. Os da Companhia levamos
muito trabalho com os que já são cristãos e se fazem cada dia. É necessário que
especial cuidado tenha vossa Caridade, de todos os seus filhos da Índia, em
encomendá-los a Deus Nosso Senhor continuadamente, pois sabe quão grande
trabalho é ter de entender-se com gente que não conhece a Deus, nem obedece à
razão, pelo muito grande costume de viver em pecados.
Dificuldades de clima, de alimentos, de perigos físicos e morais, em
que não tem faltado a ajuda de Deus e a boa aceitação da gente
2. As terras
destas partes são muito trabalhosas, por causa dos grandes calores no Verão, e
de ventos e águas no Inverno, [embora] sem haver frio. Os mantimentos corporais
em Maluco, Socotorá e Cabo de Comorim são poucos, e os trabalhos do espírito e
do corpo são grandes a maravilha, em tratar com gente de tal qualidade e nas
línguas destas partes [que] são más de tomar. E mais: os perigos de uma e outra
vida, muitos e trabalhosos de evitar. Mas, para que todos os da Companhia
bendita de Jesus dêem graças a Deus Nosso Senhor incessantes, vos faço saber
que Deus Nosso Senhor, por sua infinita misericórdia, tem especial cuidado de
todos estes vossos mínimos filhos da Índia em guardá-los de cair em pecados.
Somos tão bem quistos e aceites a todos os portugueses, assim eclesiásticos
como seculares, e também aos infiéis, que é coisa da qual todos vivem
espantados. Somos muitos: passamos de trinta2.
1
Conserva-se a resposta de Inácio a esta carta, a 11 de Outubro de 1549 (MI,
Epp. II 569-570).
2 Os jesuítas que estavam na Índia, eram então: desde
1542, Xavier, Micer Paulo; desde 1545, Beira, Criminali, Lancillotto; desde
1546, F. Henriques, H. Henriques, Pérez, Ribeiro, Cipriano, Adão Francisco,
Moraes júnior, Baltasar Nunes, N. Nunes; desde 1548, Torres, Barzeu, Gago, M.
Gonçalves, G. Rodrigues, Oliveira, D. Carvalho, J. Fernandes, Barreto, Mendes,
A. Gomes, P. do Vale, Frois, F. Gonçalves, M. Vaz. Em 25 de Outubro, entraram
três na Companhia de Jesus: D. Diogo Lobo, André de Carvalho, Cristóvão
Ferreira. Eram ao todo 33. A estes há que acrescentar mais oito, admitidos ao
que parece por A. Gomes em 13 de Setembro de 1548, depois de Xavier ter partido
de Goa (Rodrigues, A. Nunes.Indica II 151): R. Pereira, Araújo, F. Lopes, F. do
Souro, A. Vaz, Alcáçova, M.
TRECHO DA CARTA 71
AO PADRE INÁCIO DE LOYOLA (ROMA)
Cochim, 14 de Janeiro 1549
Duma cópia em italiano, feita entre1549 e 1550
Segunda via
IHS
Pai meu nas entranhas de Cristo
único
Cartas que escreveu. Índole dos indianos. Trabalhos com os cristãos
1. Por outras
cartas, que escrevemos por via de Mestre Simão todos os vossos mínimos filhos
da Índia, será informada vossa santa Caridade do fruto e serviço que a Deus
Nosso Senhor se faz nestas partes da Índia, com a ajuda de Deus e dos devotos e
santos sacrifícios e orações vossas. Por esta, lhe farei particularmente
saber, por aviso vosso, algumas coisas. Primeiramente da gente desta região
que, pelo que tenho visto e falando em geral, é muito bárbara e não tem desejos
de saber senão coisas conformes aos seus costumes pagãos. Não têm inclinação
para ouvir coisas de Deus e da sua salvação. As forças naturais acham-se neles
muito corrompidas para toda a classe de virtudes. São extraordinariamente inconstantes,
pelos muitos pecados em que têm vivido. Falam pouca ou nenhuma verdade. Os da
Companhia que nos encontramos aqui, passamos muito trabalho com os que já são
cristãos e se fazem cada dia. É necessário que vossa Caridade tenha especial
cuidado de todos os seus filhos da Índia, em encomendá-los a Deus Nosso Senhor
continuamente, pois sabe quão grande trabalho é ter que entender-se com gente
que não conhece a Deus nem obedece à razão. Tanto que, pelo costume de viver em
pecados, o tirar-lhes este costume lhes parece fora de razão.
Clima, comida, língua e perigos de morte na Índia
2. Estas
terras são trabalhosas, por causa dos grandes calores no Verão, e ventos e
águas no Inverno sem fazer frio. Os alimentos corporais em Maluco, Socotorá e
Cabo de Comorim, são poucos, e os trabalhos do espírito e do corpo são grandes
por tratar com semelhante gente. As línguas são más de apanhar. Os perigos de
uma e outra vida, muitos e difíceis de evitar. E, para que todos os da
Companhia de Jesus dêem graças sem cessar a Deus Nosso Senhor, faço-vos saber
que Deus Nosso Senhor, por sua infinita misericórdia, tem especial cuidado de
todos estes vossos mínimos filhos da Índia – passamos de trinta, sem contar os
indígenas do colégio de Goa1 – não só em livrá-los de cair em pecados e
perigos, mas também em fazê-los aceites e estimados de todos os portugueses,
assim eclesiásticos como seculares, e também dos infiéis, que é coisa da qual
todos se espantam.
Qualidades requeridas nos missionários que enviarem para a Índia
3. Os índios
desta terra, assim mouros como gentios, todos os que até agora tenho visto, são
muito ignorantes. Para os que hão-de andar entre os infiéis, trabalhando na sua
conversão, não são necessárias muitas letras, mas sim muitas virtudes:
obediência, humildade, perseverança, paciência, amor ao próximo assim como
grande castidade pelas muitas ocasiões que há de pecar. E que tenham bom senso
e corpos aptos para o trabalho. Esta conta dou a vossa Caridade, para ver que
é necessário provar os espíritos dos que para cá se mandam.
Missões jesuítas espalhadas pelo Oriente. O P. Criminali
4. Em todas as
partes da Índia, onde há cristãos, há também alguns Padres da Companhia: em
Maluco, quatro; em Malaca, dois; no Cabo de Comorim, seis; em Coulão, dois; em
Baçaim, dois; em Socotorá, quatro; em Goa, muitos mais2, sem contar os
indígenas do colégio.
Todos estes
lugares estão muito longe de Goa: Maluco, a mais de mil léguas; Malaca, a
quinhentas; o Cabo de Comorim, a duzentas; Coulão, a cento e vinte cinco;
Baçaim, a sessenta; Socotorá, a trezentas. Em todos estes lugares há Padres,
como está dito, a quem prestam obediência os
1 Os alunos eram 50, mas não jesuítas (Doc. Indica I
442).
outros da Companhia, como o Padre
António Criminali no Cabo de Comorim. E este, crede-me, pai meu, que é grande
servo de Deus e aptíssimo para esta região: é muito amado de cristãos, mouros e
gentios; mas, especialmente, é de louvar a Deus o amor que lhe têm os que lhe
estão em obediência.
Destino de Cipriano para Socotorá e de Lancillotto para Coulão.
Esperanças na possível vinda de Simão Rodrigues para a Índia
5. O Padre
Cipriano está em Socotorá, para onde teve de partir quase ao fim da sua vida. A
ilha é de vinte e cinco léguas. É toda de cristãos que ficaram abandonados por
muito tempo: têm só o nome de cristãos e nada mais. Descendem, segundo dizem
eles mesmos, dos cristãos que fez S. Tomé apóstolo. Praza a Deus Nosso Senhor
que, com a ida do Padre Cipriano, se façam bons cristãos. A terra não tem
alimentos naturais3 e é muito fragosa, áspera e trabalhosa; mas, nem por isso
deixou de ir Mestre Cipriano muito consolado, parecendo-lhe que, mesmo com os
seus sessenta anos, há-de fazer grande serviço a Deus4.
6. O Padre
Nicolau Lanciloto vai agora para Coulão5, que está a vinte e cinco léguas de
Cochim, e onde há ordem para fazer um colégio. Far-se-iam muitos nestas partes,
se Mestre Simão viesse para cá e, com ele, muitos da Companhia, para pregar e
atender à conversão dos infiéis e outros para confessar e dar Exercícios
Espirituais, sobretudo dando favor o Rei. Nos lugares onde estão estes Padres,
eu sou pouco necessário.
Frei Vicente e o seu colégio de Cranganor
11. A cinco
léguas desta cidade de Cochim, há um colégio muito gracioso que fez um Padre da
Ordem de S. Francisco, chamado Frei Vicente, companheiro do Bispo, que está
sozinho nestas partes. Os dois são muito amigos da Companhia. Há cem estudantes
naturais da terra neste colégio, que está numa fortaleza do Rei. Este Frei Vicente
é muito meu amigo e disse-me que a sua intenção era deixar este colégio à nossa
Companhia. Pelo que me rogou que escrevesse a vossa Caridade acerca do seu
desejo e que lhe pedisse um sacerdote da Companhia para que lesse no colégio
gramática aos de casa, e nos domingos e festas pregasse aos do povo daquela
fortaleza e, juntamente, aos do colégio. Nos arredores dele há muitos cristãos
do tempo de S. Tomé apóstolo, em mais de sessenta lugares: os estudantes
daquele colégio são filhos dos primeiros cristãos.
Há nesta
fortaleza duas igrejas: uma, de S. Tomé e, a outra, de S. Tiago. Para elas
desejam grandemente que vossa Caridade lhes conseguisse indulgência plenária de
Sua Santidade duas vezes ao ano.
TRECHO DA CARTA 73, 1549, COCHIM
72
AO PADRE INÁCIO DE LOYOLA (ROMA)
Cochim, 14 de Janeiro 1549
Dum resumo em latim, feito em 1596
/ Terceira via
A graça e caridade de Cristo
Nosso Senhor seja sempre connosco. Amen.
Pai meu nas entranhas de Cristo
único
António Criminali é superior da Missão do Cabo de Comorim, muito
estimado pelos companheiros e pelos cristãos
1. Três cartas
muito longas e quase idênticas1 vos mandei por meio de Mestre Simão2. António
Criminali está no Cabo de Comorim com mais seis da Companhia. É deveras um
homem santo e como nascido para cultivar estas terras: varões como este, que
tanto abundam aí, desejo que envieis muitos para cá. É superior dos que se
acham em Comorim e muito querido dos cristãos indígenas, pagãos e maometanos. O
amor que lhe têm os seus súbditos está acima de toda a ponderação.
Cipriano, apesar da idade, vai fundar Missão em Socotorá com três
jesuítas
2. O Padre
Cipriano, entrado já em anos, parte para a ilha de Socotorá. Sairá a fins de
Janeiro e levará consigo três da Companhia: um sacerdote e os restantes
coadjutores. A ilha de Socotorá tem de redondeza cerca de vinte e cinco léguas.
Toda ela é habitada de cristãos que, por carecer de sacerdotes católicos desde
há muitos anos, não o são senão de nome. Dizem-se descendentes dos cristãos
evangelizados por S. Tomé apóstolo. Espero que, com o trabalho de Cipriano e
dos seus companheiros, reformarão as suas vidas.
Apesar de a
ilha ser muito estéril e pobre de alimentos e bastante áspera e trabalhosa,
Cipriano, já sexagenário, vai para lá muito contente, com esperanças de dar
glória a Deus e expiar ao mesmo tempo os extravios da sua juventude. E ainda
que ao princípio se escusava com a sua avançada idade, incapaz de suportar
trabalhos, depois declarou que, em caso de necessidade, iria com gosto.
Lancillotto é superior da Missão de Coulão, e está a construir um
colégio. Deseja que Simão Rodrigues venha para a Índia com mais companheiros e
poderes especiais do rei a favor das missões
3. Nicolau
Lancillotto, embora achacoso, encontra-se mais aliviado, e está em Coulão,
cidade de clima são, distante de Cochim umas trinta léguas, e preside ao
colégio da Companhia que lá se está a construir. Aliás, muitas casas da
Companhia se levantariam nestas partes se, como vos escrevi anteriormente,
viesse para cá Mestre Simão com grandes poderes do Rei e um bom número de
companheiros, dos quais seis ou sete fossem pregadores e os restantes
servissem para ouvir confissões, dar Exercícios Espirituais e atrair à fé de
Cristo os gentios: mas todos eles, gente provada e experimentada. Escrevi
também ao Rei para que mande Mestre Simão com poderes não só para abrir
colégios, mas também para favorecer os naturais da terra, tanto cristãos como
gentios, que se converteriam facilmente se fossem ajudados.
TRECHO DA CARTA 73, 1549, COCHIM
Abertura de nova missão em Socotorá e maneira de libertar dos mouros a
ilha
5. Para
Socotorá vai este ano Cipriano, com um Padre de Missa e dois leigos. Está
naquela ilha um mouro, o qual forçosamente senhoreia aquela ilha de Socotorá
contra toda a razão e justiça, sem ter nenhum direito mais de forçosamente a
ter. Agrava muito os cristãos, tomando-lhes o seu e suas filhas, tornando-as
mouras, e outros muitos males. Devíeis fazer com Sua Alteza, por serviço de
Deus e descargo de sua consciência, que mandasse deitar fora os mouros daquela
ilha9. O que sem nenhum gasto pode fazer, mandando aos da armada que vão ao
Estreito10 que, à vinda, quando voltam do Estreito, lancem fora aqueles mouros,
que estão em Socotorá junto à praia – que podem ser, por todos, uns trinta
mouros, numa casita à maneira de fortaleza – e não consentem aos da terra terem
nenhumas armas e os têm em muito grande cativeiro.
6. Por amor de
Nosso Senhor, provede como estes cristãos, tristes e coitados, saiam de
cativeiro, pois tiranicamente são senhoreados pelos mouros! Em oito dias, os
podem deitar fora da terra, quando voltam do Estreito e vão tomar água naquela
ilha. É piedade grande, ouvir as lástimas destes cristãos de Socotorá. Faz
agora seis anos que passei por Socotorá, e tive piedade grandíssima de ver as
perseguições que, dos mouros da costa da Arábia, padecem. Isto tudo está na
vontade do Rei, sem se fazerem nenhuns gastos. Martim Afonso de Sousa, senhor
que foi da Índia11, pode dar verdadeira informação a Sua Alteza, de quão
tiranicamente aqueles mouros senhoreiam aquela ilha e como, sem fazer nenhum
gasto, pelas armadas que vão ao Estreito se podem destruir aqueles mouros,
derrubando aquela casita que têm à maneira de fortaleza. – Porque todos os da
Companhia vos escrevem do fruto que, com a ajuda de Nosso Senhor, nestas partes
fazem, por isso me remeto a todos eles.
Jesuítas que não fazem muita falta na Europa fariam muito fruto nas
missões. Na Índia não se formam jesuítas
7. Dareis
ordem de modo que, todos os anos, venham alguns da Companhia que sejam, os mais
deles, sacerdotes de Missa. E assim, escrevereis a Roma e a outras partes, onde
haja pessoas da Companhia, que enviem a Coimbra alguns sacerdotes de muita
mortificação e muitas experiências, os quais não têm talento ou letras para
pregar ou fazer lá colégios. De maneira que, naquelas partes, não fazem míngua
e cá, nestas, se forem e tiverem virtudes de muita humildade e mansidão e
outras virtudes, podem fazer muito serviço a Deus Nosso Senhor na conversão dos
infiéis – assim como em Malaca, Maluco, Cabo de Comorim e Japão, ou ir ao
Preste(*Abissínia) – até que no colégio de Coimbra houvesse muitos que tivessem
acabado seus estudos.
Portanto, deveis enviar a estas
partes pessoas sacerdotes, que não fazem falta em Roma nem em outras partes
onde estão colégios da Companhia, por não terem talento ou letras para pregar
ou edificar colégios, porque estes tais farão muito [mais] serviço a Deus Nosso
Senhor nestas partes que lá. Dai ordem de modo que todos ao anos envieis
pessoas a estas partes: é que, os que cá entram na Companhia, não são para
andar fora dos colégios, por não terem letras nem virtudes nem espírito para
que possam logo andar fora, na conversão dos gentios. Para isto, se requerem
muitos anos de mortificação e de experiência, como bem sabeis.
Louva o colégio dos franciscanos em Cranganor e pede indulgências para
as suas igrejas
8. A cinco
léguas de Cochim, numa fortaleza do Rei, que se chama Cranganor13, está um
colégio mui formoso, que fez Frei Vicente, companheiro do Bispo, no qual há
cerca de cem estudantes, filhos dos que descendem dos cristãos que fez S. Tomé,
que cá chamam cristãos de S. Tomé. Há sessenta lugares destes cristãos e, perto
destes lugares, está este colégio, coisa muito formosa e para ver, assim o
sítio do colégio como onde estão os cristãos. O Padre Frei Vicente tem feito
muito serviço a Deus nestas partes. Ele é muito amigo meu e de todos os da
Companhia. Deseja muito ter um Padre da nossa Companhia, que saiba gramática,
para ensinar os estudantes do colégio e fazer alguma pregações, assim aos do
colégio como aos do lugar, aos domingos e festas. Por amor de Nosso Senhor: que
o consoleis quanto puderdes, enviando-lhe este Padre para estar com ele no
colégio à sua obediência!
9
Não era essa a política portuguesa com os povos no Oriente (cf. Xavier-doc.
17,6).
10
Refere-se ao estreito de Bab-el-Mandeb.
11
Governador nos começos da vida missionária de Xavier. Já em 1544 expusera ao
Rei o conselho de Xavier com este parecer: «Este Xeque de Socotorá é rei de
Caixem. Nós em toda a costa da Arábia não temos outro nenhum porto de amigo
senão aquele, nem onde se possa acolher um navio de portugueses com tempo… É
muito acometido dos turcos e muito ameaçado deles que deixe a nossa amizade…
Não está o tempo disposto para se poder fazer isto que V. A. manda… Se V. A. cá
tivesse quinze ou vinte mil homens juntos, então poderia mandar estas coisas
assim absolutamente». O Vigário geral Miguel Vaz muitas vezes pediu o mesmo. O
Rei mandou a D. João de Castro que ajudasse os cristãos de Socotorá, mas «de
maneira que o Turco, cujos vassalos são, não infeste esses mares com suas
armadas». Os turcos eram tão agressivos que em 1549 o Governador teve de enviar
uma armada de oito naus para defender deles a estratégica fortaleza de Ormuz
(CORREA
9. Em
Cranganor há duas igrejas: uma, da invocação de S. Tiago; outra, da invocação
de S. Tomé. Os cristãos de S. Tomé têm muita devoção à igreja de S. Tomé. A outra,
que é da invocação de S. Tiago, está dentro do colégio do Padre Frei Vicente.
Deseja ele muito ter, nestas igrejas, algumas indulgências para consolação dos
cristãos e acrescentamento da devoção. Para isto vos roga muito, por serviço de
Deus, que, pela via de Roma ou pela via do Núncio que está em Portugal, lhe
impetreis estas graças: que na vigília de S. Tiago com seu dia e oitavas, todos
os que lá forem, confessados e comungados, ganhem indulgência plenária; e assim
também, na vigília de S. Tomé com seu dia e todas as oitavas, os que visitarem
a casa de S. Tomé de Cranganor ganhem indulgência plenária, confessados e
comungados ou verdadeiramente contritos das suas culpas e pecados. Por amor de
Nosso Senhor: que consoleis Frei Vicente com as indulgências para aquelas
igrejas, e acerca do Padre da nossa Companhia que pede para o colégio! Não digo
mais, senão que Nosso Senhor nos ajunte na sua glória. Amen.
De Cochim, a
20 de Janeiro ano de 1549
Vosso em
Cristo caríssimo Irmão, FRANCISCO
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