80. virtudes do missionário

Trabalhos da vida missionária e correspondentes consolações. Pede instruções sobre o modo de proceder e notícias. Sente-se instrumento inútil. Conclusão
15. Os trabalhos de tão longa navegação, o cuidado de muitas enfermidades espirituais não podendo homem cumprir com as suas, a habitação de terra tão sujeita a pecados e idolatria, e tão trabalhosa de habitar pelas grandes calmarias que há nela, tomando-se estes trabalhos por quem se deveriam tomar, são grandes refrigérios e ma­téria para muitas e grandes consolações. Creio que, os que gostam da cruz de Cristo Nosso Senhor, descansam andando nestes trabalhos e morrem quando deles fogem ou se acham fora deles. Que morte é, tão grande, viver deixando a Cristo, depois de tê-lo conhecido, para seguir opiniões e afeições próprias! Não há trabalho igual a este. E, pelo contrário, que descanso, viver morrendo cada dia, por ir contra nosso próprio querer, buscando não as coisas que são nossas mas as de Jesus Cristo26! Por amor e serviço de Deus Nosso Senhor vos rogo, Irmãos caríssimos, que me escrevais, muito longamente, de todos os da Companhia; porque, já que nesta vida não espero mais ver-vos face a face, seja ao menos em enigmata27, isto é, por cartas. Não me negueis esta graça, dado que eu não seja merecedor dela. Recordai-vos que Deus Nosso Senhor vos fez merecedores, para que eu, por vós, muito mérito e refrigério esperasse e alcançasse.
Do modo que tenho de ter com estes gentios e mouros, aonde agora vou, escrevei-me muito longamente, por serviço de Deus Nos­so senhor; pois, por meio de vós, espero que o Senhor me há-de dar a entender o modo que cá tenho de ter em convertê-los à sua santa fé. As faltas que, neste meio, resposta destas não tiver, espero em Nosso Senhor que, por vossas cartas, me hão-de ser manifestadas, e no fu­turo emendar-me. Neste meio, pelos méritos da santa Madre Igreja, em quem eu minha esperança tenho, cujos membros vivos vós sois, confio em Cristo Nosso Senhor que me há-de ouvir e conceder esta graça: que use deste inútil instrumento meu, para plantar sua fé en­tre gentios. Porque, servindo-se sua Majestade de mim, grande con­fusão seria para os que são para muito, e acrescentamento de forças para os que são pusilânimes. E ao ver que, sendo eu só pó e cinza28 e, mesmo nisto, do mais ruim, presto para ser testemunha de vista da necessidade que cá há de operários, servo perpétuo seria, de todos aqueles que a estas partes quisessem vir para trabalhar na amplíssima vinha do Senhor29.
Assim cesso, rogando a Deus Nosso Senhor que, por sua infinita misericórdia nos junte em sua santa glória, pois para ela fomos cria­dos; e cá, nesta vida, nos acrescente as forças para que, em tudo e por tudo, o sirvamos como ele manda e sua santa vontade nesta vida cumpramos.
(aos companheiros de Roma, carta 15, De Goa, a 20 de Setembro, ano de 1542
Vosso inútil irmão em Cristo, FRANCISCO DE XABIER

[*Esta carta em que a alma do nosso Santo se abre tão completamente. Vê-se ali até que ponto leva a sua abnegação e o esquecimento de si próprio, o ardor do seu zelo pela glória de Deus e pela salvação das almas, assim como aquela brilhante sede de sofrimentos que lhe faz ver a ausência da vida na ausência da Cruz.
Vê-se mais que, para ele, o não sofrer era o mesmo que não se achar ligado a Jesus Cristo, e neste caso prefere a morte. Toda a sua vida, todos os seus trabalhos, todas as fadigas do seu nobre apostolado nas Índias serão a conseqüência dos admiráveis sentimentos que enriquecem a sua alma, e que ele exprime tão enèrgicamente nas páginas que se acabam de ler.]

26 Fil. 2,21.             /            27 Cf. 1Cor 13,12.           /         28 Cf. Gen 18,27.                  /            29 Cf. Mt 9,37.
[*Profecia cumprida com Xavier - Um intrépido navegante, cujo nome célebre para Portugal se tornou também célebre para todo o mundo, Vasco da Gama, nunca empreendia uma viagem de longa duração sem se fazer acompanhar dos socorros da religião; levava sempre consigo o seu confessor.
Naqueles tempos de verdadeira fé, que foram tidos como de morta ignorância e de algum tanto de barbárie, via-se geralmente, por mais sábio que alguém fosse, ninguém viver e morrer sem sacramentos; não temiam, é certo, serem taxados de jesuitismo quando praticavam a religião na qual se gloriavam de haver nascido; e contudo os jesuítas só existiam então no pensamento de Deus.
Vasco da Gama, na sua primeira viagem das descobertas, em 1497, chegara até à península daquém do Ganges; explorava a costa do Malabar, e acrescentava a glória que se ligava ao seu nome, quando o seu confessor lhe foi arrebatado pelos índios com alguns dos seus companheiros.
Foi a 31 de julho que os selvagens fizeram um mártir de D. Pedro da Covilhã, religioso da Ordem da Trindade para a Redenção dos Cativos. Ligaram-no a uma árvore e crivaram o seu corpo de numerosas flechas. Enquanto seu corpo escorria em sangue, o santo mártir fez ouvir palavras proféticas que os seus companheiros acolheram piedosamente, e que foram fielmente consignadas na sua volta, nas Memórias da Biblioteca dotei de Portugal e nos manuscritos da História da Ordem da Redenção dos Cativos, em Lisboa, e sempre conservadas.
"De aqui alguns anos, - disse Pedro da Covilhã, enquanto as flechas indianas choviam sobre o seu corpo e aí se enterravam dilacerando-o-, de aqui alguns anos, nascerá na Igreja de Deus uma Ordem de clérigos que terá o nome de Jesus. Um dos seus primeiros Padres, conduzido pelo Espírito Santo, penetrará até as mais longínquas terras das Índias Orientais, das quais a maior parte abraçará a fé cristã pelo ministério deste pregador evangélico".

Esta predição, que Portugal esperava ver realizada, não teve o seu completo efeito senão cinquenta anos mais tarde. O ilustre fundador da santa Companhia de Jesus, nascido em 1491, tinha apenas seis anos no tempo em que Pedro da Covilhã anunciava nas Índias o "pregador evangélico" que devia para ali levar a fé; este mesmo pregador, Francisco Xavier, só devia vir ao mundo nove anos depois, em 1506 e às Índias só no ano de 1542.] 

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