Trabalhos da vida missionária e correspondentes consolações. Pede
instruções sobre o modo de proceder e notícias. Sente-se instrumento inútil.
Conclusão
15. Os
trabalhos de tão longa navegação, o cuidado de muitas enfermidades espirituais
não podendo homem cumprir com as suas, a habitação de terra tão sujeita a
pecados e idolatria, e tão trabalhosa de habitar pelas grandes calmarias que há
nela, tomando-se estes trabalhos por quem se deveriam tomar, são grandes
refrigérios e matéria para muitas e grandes consolações. Creio que, os que
gostam da cruz de Cristo Nosso Senhor, descansam andando nestes trabalhos e
morrem quando deles fogem ou se acham fora deles. Que morte é, tão grande,
viver deixando a Cristo, depois de tê-lo conhecido, para seguir opiniões e
afeições próprias! Não há trabalho igual a este. E, pelo contrário, que
descanso, viver morrendo cada dia, por ir contra nosso próprio querer, buscando
não as coisas que são nossas mas as de Jesus Cristo26! Por amor e serviço de
Deus Nosso Senhor vos rogo, Irmãos caríssimos, que me escrevais, muito
longamente, de todos os da Companhia; porque, já que nesta vida não espero mais
ver-vos face a face, seja ao menos em enigmata27, isto é, por cartas. Não me
negueis esta graça, dado que eu não seja merecedor dela. Recordai-vos que Deus
Nosso Senhor vos fez merecedores, para que eu, por vós, muito mérito e refrigério
esperasse e alcançasse.
Do modo que
tenho de ter com estes gentios e mouros, aonde agora vou, escrevei-me muito
longamente, por serviço de Deus Nosso senhor; pois, por meio de vós, espero
que o Senhor me há-de dar a entender o modo que cá tenho de ter em convertê-los
à sua santa fé. As faltas que, neste meio, resposta destas não tiver, espero em
Nosso Senhor que, por vossas cartas, me hão-de ser manifestadas, e no futuro
emendar-me. Neste meio, pelos méritos da santa Madre Igreja, em quem eu minha esperança
tenho, cujos membros vivos vós sois, confio em Cristo Nosso Senhor que me há-de
ouvir e conceder esta graça: que use deste inútil instrumento meu, para plantar
sua fé entre gentios. Porque, servindo-se sua Majestade de mim, grande confusão
seria para os que são para muito, e acrescentamento de forças para os que são
pusilânimes. E ao ver que, sendo eu só pó e cinza28 e, mesmo nisto, do mais
ruim, presto para ser testemunha de vista da necessidade que cá há de
operários, servo perpétuo seria, de todos aqueles que a estas partes quisessem
vir para trabalhar na amplíssima vinha do Senhor29.
Assim cesso,
rogando a Deus Nosso Senhor que, por sua infinita misericórdia nos junte em sua
santa glória, pois para ela fomos criados; e cá, nesta vida, nos acrescente as
forças para que, em tudo e por tudo, o sirvamos como ele manda e sua santa
vontade nesta vida cumpramos.
(aos companheiros de Roma, carta 15, De
Goa, a 20 de Setembro, ano de 1542
Vosso
inútil irmão em Cristo, FRANCISCO DE XABIER
[*Esta carta em que a alma do nosso
Santo se abre tão completamente. Vê-se ali até que ponto leva a sua abnegação e
o esquecimento de si próprio, o ardor do seu zelo pela glória de Deus e pela
salvação das almas, assim como aquela brilhante sede de sofrimentos que lhe faz
ver a ausência da vida na ausência da Cruz.
Vê-se mais que,
para ele, o não sofrer era o mesmo que não se achar ligado a Jesus Cristo, e
neste caso prefere a morte. Toda a sua vida, todos os seus trabalhos, todas as
fadigas do seu nobre apostolado nas Índias serão a conseqüência dos admiráveis
sentimentos que enriquecem a sua alma, e que ele exprime tão enèrgicamente nas
páginas que se acabam de ler.]
26 Fil. 2,21. / 27 Cf. 1Cor 13,12. / 28 Cf. Gen 18,27. / 29 Cf. Mt 9,37.
[*Profecia
cumprida com Xavier -
Um intrépido navegante, cujo nome célebre para Portugal se tornou também
célebre para todo o mundo, Vasco da Gama, nunca empreendia uma viagem de longa
duração sem se fazer acompanhar dos socorros da religião; levava sempre consigo
o seu confessor.
Naqueles tempos de
verdadeira fé, que foram tidos como de morta ignorância e de algum tanto de
barbárie, via-se geralmente, por mais sábio que alguém fosse, ninguém viver e
morrer sem sacramentos; não temiam, é certo, serem taxados de jesuitismo quando
praticavam a religião na qual se gloriavam de haver nascido; e contudo os
jesuítas só existiam então no pensamento de Deus.
Vasco da Gama, na
sua primeira viagem das descobertas, em 1497, chegara até à península daquém do
Ganges; explorava a costa do Malabar, e acrescentava a glória que se ligava ao
seu nome, quando o seu confessor lhe foi arrebatado pelos índios com alguns dos
seus companheiros.
Foi a 31 de julho
que os selvagens fizeram um mártir de D. Pedro da Covilhã, religioso da Ordem
da Trindade para a Redenção dos Cativos. Ligaram-no a uma árvore e crivaram o
seu corpo de numerosas flechas. Enquanto seu corpo escorria em sangue, o santo
mártir fez ouvir palavras proféticas que os seus companheiros acolheram
piedosamente, e que foram fielmente consignadas na sua volta, nas Memórias da
Biblioteca dotei de Portugal e nos manuscritos da História da Ordem da Redenção
dos Cativos, em Lisboa, e sempre conservadas.
"De aqui
alguns anos, - disse Pedro da Covilhã, enquanto as flechas indianas choviam
sobre o seu corpo e aí se enterravam dilacerando-o-, de aqui alguns anos,
nascerá na Igreja de Deus uma Ordem de clérigos que terá o nome de Jesus. Um dos seus primeiros Padres, conduzido pelo Espírito Santo,
penetrará até as mais longínquas terras das Índias Orientais, das quais a maior
parte abraçará a fé cristã pelo ministério deste pregador evangélico".
Esta predição, que
Portugal esperava ver realizada, não teve o seu completo efeito senão cinquenta
anos mais tarde. O ilustre fundador da santa Companhia de Jesus, nascido em
1491, tinha apenas seis anos no tempo em que Pedro da Covilhã anunciava nas Índias o
"pregador evangélico" que devia para ali levar a fé; este mesmo
pregador, Francisco Xavier, só devia vir ao mundo nove anos depois, em 1506 e
às Índias só no ano de 1542.]
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