Mortificações


Auxílio no hospital em Veneza na Itália
Porém a viagem para Roma não podia também ser desde logo efetuada, e nesta contrariedade distribuiu-os pelos diversos hospitais de Veneza, cabendo o dos incuráveis (leprosos) a Xavier.
Para se poder avaliar os progressos que o nosso Santo havia já feito, sob a direção de Santo Inácio, recordemo-nos do que ele era no colégio de Santa Bárbara, quatro anos antes, e vejamo-lo agora no hospital dos incuráveis, quando lhe disseram que existia, numa sala vizinha, um doente com uma úlcera tão repugnante, que era necessário uma coragem sobre-humana para se poder aproximar dele.
Nunca, até então, o elegante Francisco pudera ver uma úlcera; tinha por esta espécie de doença um tal horror instintivo, que o fazia fugir imediatamente; porém era já, outro, tornara-se um homem novo; via-se por tal modo transformado que ouvindo falar do doente, que todos evitavam, o seu semblante irradiou-se de alegria.
Reconhece que era esta a ocasião de vencer uma repugnância que lhe parecia invencível, mas da qual esperava triunfar com o auxílio de Deus.
O seu presado mestre, Inácio, muitas vezes lhe dissera: "Francisco, lembrai-vos que se não adianta no caminho da virtude, senão quando se tenha triunfado de si próprio! É tão rara a ocasião para um grande sacrifício, que não se deve deixar escapar!"
Era esta, pois, para Xavier uma daquelas ocasiões que ele não devia deixar passar. Pediu para ver o doente; aproximou-se imediatamente dele, cheio de força e de coragem... Porém o cheiro que exalava e ele sentia, fez-lhe tal repugnância que lhe pausou uma grande comoção e vacilou nauseado!... Era chegado o momento de triunfar de si mesmo para dar um passo mais na renda da virtude, segundo a máxima do seu santo amigo.
Firme neste pensamento, vai desenvolver toda a generosidade do seu caráter: por maior que seja o sacrifício ele o fará.
Xavier cai de joelhos ao lado do doente, abraça-o carinhosamente, fala-lhe de Deus, consola-o e anima-o, em mau italiano, é verdade, mas com tão caridosa expressão que se tornou muito mais eloqüente do que o poderia ser na mais apurada linguagem. Descobre imediatamente o membro ulcerado... A repugnância cresceu!... Porém o jovem Santo quer triunfar a todo o preço, porque sabe que o combate se dá sob as vistas de Deus!
Aproxima o seu belo rosto do membro purulento e empalidece... a natureza revolta-se... Xavier sente-se desfalecer... Apressa-se, por isso, a levar os seus lábios para a hedionda chaga! Beija-a! e para ir mais longe... chupa-a!!!
Deus esperava esta última vitória.
Xavier considera-se então mais feliz por ter triunfado de si, do que havia sido até ali pelos seus brilhantes feitos do mundo. 

PEDINDO ESMOLA
Pelos fins da Quaresma daquele ano (de 1537) partiram de Veneza os discípulos de Inácio de Loiola , entre eles Francisco Xavier, com destino a Roma. Tiveram uma jornada longa e bem penosa; andaram sempre a pé e pedindo esmola, que muitas vezes lhes era negada.
"Caminharam durante três dias ao longo da borda do mar, para se dirigirem a Ravena, sem poderem obter um bocado de pão, sequer. Depois dos sofrimentos e fadigas passadas em Veneza, era isto demasiado para os não extenuar completamente; alguns de entre eles caíam por não poderem dar um passo mais, e isto causava o maior desgosto aos companheiros."
"A umidade da estação, que era excessivamente chuvosa, expunha-os também a contínuas incomodidades: depois de se molharem durante todo o dia, passavam muitas vezes as noites em pleno ar, e consideravam-se felizes quando encontravam uma pouca de palha para lhes servir de cama e se cobrirem!"
"Como não tinham dinheiro para pagarem a passagem dos rios, viam-se na necessidade de deixarem aos barqueiros, umas vezes uma velha faca, outras um tinteiro ou qualquer coisinha do seu uso, e muitas vezes até parte dos seus pobres vestuários."
"Numa destas ocasiões em que se viram embaraçados por não poderem satisfazer um barqueiro descontente e impertinente, um deles, que não era ainda sacerdote, viu-se forçado a deixar o seu breviário em hipoteca, além de ficarem os seus companheiros em reféns."
"De volta, com o preço exigido, os desembarcou e percorreu a cidade de Âncona esmolando para desempenhar o seu breviário."
"...Muitas vezes tiveram de percorrer grandes distâncias com água até à cintura e mesmo até ao peito. 
"Em Ravena tiveram os peregrinos viajantes um momento de repouso, porque foram recebidos no hospital, mas não lhes deram senão um só leito. Três de entre eles, mais fatigados. do que os outros, deviam ser preferidos; e quando notaram a repugnante indecência das roupas da cama, decidiram utilizar-se dela mais por penitência do que por necessidade." 
"descobri na grande praça (de Ancona na Itália) um dos nossos, (Francisco Xavier) que, molhado e de pés descalços, se dirigia às mulheres do mercado pedindo-lhes, ora uma fruta, ora alguns legumes. Parei a observá-lo, e recordando-me da nobreza do seu nascimento, das riquezas --que ele havia abandonado, dos seus grandes talentos naturais, da vastidão de seus conhecimentos adquiridos e das virtudes que tanta importância e consideração lhe teriam dado no mundo, senti-me por tal modo impressionado que me reconheci indigno de ser companheiro de tais homens". 
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JEJUM DE 40 DIAS
Retorno a Veneza e Ordenação de Xavier - Depois desta audiência, voltaram os nossos viajantes a Veneza, onde Xavier retomou o seu servriço dos doentes pobres do hospital dos incuráveis. Ele e seus irmãos renovaram os seus votos perante o núncio do Papa, Jerónimo Varolli, arcebispo de Rosana, e pouco depois, a 24 de junho de 1537, foram conferidas as ordens sacras pelo arcebispo de Arbe, Vicente Nigusanti.
Considerando-se o nosso Santo muito feliz por poder trabalhar com mais eficácia ainda na salvação do próximo, revestido como se achava do caráter augusto que acabava de receber, desejava preparar-se por um longo retiro para a celebração da sua primeira Missa.
Um dia, depois de ter pregado na povoação de Monte Felice, a quatro léguas de Pádua, voltava a Veneza por um caminho diferente do que seguira na ida, para lá, quando descobriu uma. pobre cabana em ruínas completamente abandonada e cujas entradas estavam obstruídas pelos materiais amontoados... Dirigiu-se para ali, desembaraçou a porta da cabana e entrando viu que as paredes estavam fendidas e o tecto de colmo todo aberto, reconhecendo que estava desabitada e que a sua situação era completamente isolada:
- "Que bem estarei eu aqui, só e com Deus somente"! disse ele para si, com sensível demonstração de alegria."
E logo na manhã seguinte veio tomar posse da morada que escolhera a fim de se entregar ali, sob as únicas vistas de Deus, a todos os exercícios da mais rigorosa penitência, a um jejum diário e a contínuas orações.
Não saía da cabana senão para ir mendigar o seu pão nas proximidades; depois de ter obtido o necessário para não morrer de fome, voltava à sua solidão, martirizava o corpo e depois repousava por alguns momentos, deitando-se sobre aquele solo húmido e nu. Passou assim quarenta dias no gozo de consolações divinas e de sacrifícios contínuos do seu corpo.
Terminado o seu retiro, voltou Francisco para junto do seu amado mestre, então em Vicência, para onde foram chamados todos os seus irmãos, e teve a felicidade de celebrar os santos mistérios pela primeira vez, achando-se todos eles presentes, auxiliado das suas orações e dos seus votos. A sua comoção era tão forte, e corriam tão abundantemente as suas lágrimas, que os assistentes também as não puderam conter.

Doença de Xavier - Conquanto fosse naturalmente robusta a saúde de Xavier, não pôde resistir a tamanhas austeridades: alguns dias depois da primeira Missa adoeceu gravemente, e foi necessário tratá-lo como a um mendigo, porque ele queria viver e morrer na mais completa pobreza.
Levaram-no para o hospital, e ali, o nobre Xavier, o ilustre descendente dos antigos reis de Navarra, não obteve mais que metade dum leito! Foi colocado ao lado dum doente pobre que lhe era desconhecido...

Deus fazia-lhe expiar assim os sentimentos de orgulho e as ambições de glórias vãs que haviam por algum tempo alimentado a sua mocidade:.. mas derramava ao mesmo tempo tais consolações na sua alma, que Xavier, longe de recordar-se do que havia deixado, julgava-se feliz por ter um sacrifício mais a oferecer, e agradecia à divina Misericórdia que se dignava oferecer-lhe assim tão preciosas ocasiões. 
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Saúde abalada, mas ainda pregava - Esta vida de trabalhos, um jejum quase contínuo e outras austeridades de que nunca se dispensou, suportando as intempéries dum inverno excepcionalmente rigoroso era mais que suficiente para deteriorar a mais robusta saúde. Além disto, São Jerónimo revelara ao nosso Santo, por ocasião da sua doença em Vicência:
- Uma maior tribulação vos espera em Bolonha, onde passareis o inverno.
A tribulação profetizada, foi uma violenta febre intermitente, que, resistindo a todos os meios empregados para a combater, reduziu o nosso jovem santo a um grau de debilidade e de aniquilamento que fez recear pela sua vida. Isto produziu uma grande dor em toda a cidade de Bolonha onde ele havia convertido tantos pecadores, consolado tantos aflitos, reconciliado tantos inimigos e feita grande bem a todos!
Logo que as suas forças o permitiram, Xavier continuou a exercer o ministério da pregação, da confissão, da instrução das crianças, do cuidado dos doentes e dos presos, e tudo isto com a ardente febre que o devorava e os sofrimentos que a acompanhavam.
Porém chegou um momento em que a natureza sucumbiu: Abatido a ponto de não poder ter-sé de pé; mas sempre devorado pelo seu zelo religioso, arrastava-se até à porta da rua, sentava-se em um banco de madeira e ali se esforçava ainda em chamar os transeuntes à contrição dos seus pecados; pregava-lhes a necessidade da penitência, falava-lhes da misericórdia infinita dum Deus que morreu pela salvação do mundo.
Conhecido, amado e venerado, como era o nosso Santo, aquelas pregações, tanto mais eloqüentes quanto mais impossíveis pareciam no estado em que ele se achava, produziam maravilhosos frutos.
Cada pessoa que passava e ouvia a voz do venerando apóstolo, se aproximava imediatamente dele; cercavam-no, escutavam-no de joelhos, e muitas vezes os soluços dos seus auditores cobriam a sua voz quase extinta e que ele sustentava por um grande esforço. Algumas vezes extinguia-se-lhe completamente aquele jovem apóstolo, de trinta e dois anos apenas, conservava-se ali, aniquilado, débil, pálido e exânime como se a morte tivesse passado por ele!
Devotado à salvação das almas e querendo dedicar-se a este santo ministério até ao seu último suspiro, ali se deixava ficar, com a cabeça caída, o corpo apoiado à parede, esperando o momento em que a sua voz pudesse ainda por um instante secundar o seu zelo, que nenhum outro sofrimento podia enfraquecer; naquele estado, contudo, só a sua mista impressionava e produzia numerosas conversões. De noite ocupava-se de Deus e não dispunha senão de alguns momentos para dormir. 

Embarque para a Índia - Servir e não ser servido, eis a Santidade - 
Não podereis servir-vos a ti mesmo, senhor, acrescentou impacientemente D. Antônio; aceitareis pelo menos o criado que se vos der.
- Enquanto eu tiver estas duas mãos, senhor, espero que Deus me fará a graça de permitir que me sirva a mim mesmo
- As conveniências exigem, meu Padre, que tenhais ao menos um! Ides revestido de uma dignidade que não deveis aviltar; o rei disse-me que partíeis na qualidade de núncio apostólico. Será conveniente ver-se um núncio do Papa a lavar a sua roupa a bordo, e a preparar por si a sua comida?
- Peço perdão, senhor, por não poder ceder às vossas tão grandes instâncias; porém, tenho a intenção e mesmo vontade de me servir e de servir os outros o mais possível e conto fazê-lo sem desonrar o meu caráter. Quando não pratico o mal, não temo nem escandalizai o próximo, nem menosprezar e rebaixar a autoridade de que 'a Santa Sé se dignou revestir-me... Não nos iludamos, senhor; cifram-se nisto as misérias humanas, são idéias falsas de decoro e de dignidade que tem feito à Igreja o mal que nós vemos!
 Antônio não insistiu mais; o tom enérgico de Francisco Xavier, conservando, contudo, a sua extrema doçura, tinha ao mesmo tempo tão grande dignidade e tal nobreza, que o intendente convenceu-se que uma natureza daquela têmpera nunca rebaixaria em nada a autoridade que lhe estava confiada.
Francisco Xavier sabia impor o respeito humilhando-se: é este o segredo dos santos em geral; porém ele parecia possuir esse dom em maior grau do que os outros. Deus assim lho permitia, sem dúvida em vista das inúmeras conquistas a que o destinava. 

No navio rumo a India
As regalhias que o Viçe-Rei oferecia a Xavier como comida e dormida no navio ele dava aos doentes e preferia a simplicidade de mendigar - As instâncias do vice-rei para fazê-lo comer à sua mesa foram sempre inúteis; durante toda a viagem, não obstante a sua dignidade de Núncio, Francisco não se sustentava senão dos alimentos que mendigava pelos passageiros.
Tendo o escorbuto atacado a equipagem, nas costas da Guiné, a caridade de Xavier manifestou-se com um zelo, uma assiduidade, uma dedicação prodigiosa. Os passageiros aterrados pela moléstia não se atreviam a aproximar-se daqueles que se achavam acometidos porque receavam o contágio... O santo apóstolo não se lembrava de si nem um só momento; ia de um doente a outro, distribuía por cada um os cuidados mais urgentes, prestava a todos, e sem distinção, os serviços mais repugnantes com a maior delicadeza, e consolava todos os corações procurando salvar as suas almas.
Tantas fadigas e tantas vigílias alteraram a saúde de Xavier, produzindo-lhe frequentes vômitos e uma debilidade extrema, sem contudo diminuir o seu zelo e paralisar a sua dedicação.
O vice-rei mandou pôr à sua disposição uma câmara maior e mais arejada; o nosso Santo fez remover para ali os doentes de maior perigo e lhes cedeu até o seu leito; ele estendia-se sobre o solo nu, ou subia ao convés e, apoiando a cabeça nas enxárcias, só descansava alguns momentos que a natureza imperiosamente exigia.
Quando o tratamento dos doentes absorvia todo o seu tempo, D. Martinho de Sousa fazia-o servir da sua mesa. Francisco Xavier aceitava tudo ansiosamente, pela felicidade de poder oferecer aos seus queridos convalescentes alguns alimentos mais delicados e mais fortes do que aqueles que lhes davam, e dos quais reservava uma parte para si. Esta troca trazia uma grande consolação ao seu espírito de mortificação e de humildade.
A heróica dedicação do nosso Santo fez-lhe conquistar, da parte da tripularão e dos passageiros da São Diogo, o cognome de Santo Padre, cognome que adotaram para ele todos os portugueses das Índias, e que lhe ficou para sempre até mesmo entre os índios. O amável Padre Xavier aceitava com a sua humildade e afabilidade habituais este testemunho de afetuosa veneração, cuja glória dava a Deus.

Xavier adoece mas não abandona os doentes - Tantos trabalhos e tantas fadigas influíram bastante na saúde, naturalmente tão forte, do nosso Santo.
Uma violenta febre maligna obrigou a que o sangrassem sete vezes em alguns dias, e os delírios constantes que o acometiam deram sérios cuidados. ' Conservava-se no hospital donde o haviam querido afastar desde a invasão da epidemia, mas onde ele insistira em ficar, não obstante o ar infeccionado que ali se respirava, respondendo a todas as instâncias
"Fiz voto de pobreza, quero por isso viver e morrer entre os pobres, mas nem por isso sou menos reconhecido pelo interesse e cuidados que me prodigalizam".
Todas as vezes que Francisco Xavier recusasse o que lhe ofereciam, sabia juntar tal firmeza à sua humildade, que não se podia esperar vencê-lo.
Logo que o Santo se viu pouco melhor da doença, voltou às suas vigílias e fadigas, arrastando-se, difícil e penosamente dum a outro leito para consolar e animar, ao menos com a sua benevolente palavra, aqueles que não podia servir como de antes. 

“Mesmo doente devo ser útil a Deus: diz nosso Santo” - Um dia, no acesso [retorno] da febre, viu que acabavam de conduzir para a enfermaria um marinheiro repentinamente atacado; não existiam leitos disponíveis, e por isso o haviam estendido sobre uma cama de palha, onde não tardaria a morrer. O apóstolo levanta-se, aproxima-se da cama do moribundo e quer falar-lhe da eternidade, cujas portas se iam abrir para ele. Naquele momento aparece o médico e aterrado pela idéia do perigo a que o nosso Santo se expõe, pede-lhe que desista da obra de salvação que intenta; mas vendo com pesar que ele o não atende, insiste, dizendo-lhe:
- "Permiti que vos observe, meu Padre, que ninguém aqui está mais perigosamente doente do que vós; deitai-vos, eu vos suplico! conservai-vos em repouso, ao menos até ao fim do acesso; nisto vai a vossa vida".
- "Obedecer-vos-ei pontualmente, caro doutor, eu vo-lo prometo, logo que tenha cumprido este dever imperioso do meu ministério; é uma alma a salvar, os momentos são preciosos e ele não tem um só a perder",
Desde logo fez Xavier transferir o moribundo, da cama em que se achava estendido e sem conhecimento, para o seu próprio leito; apenas o jovem marinheiro foi colocado. no leito do Santo Padre, recuperou os sentidos. Xavier, sempre heróico, deitou-se a seu lado, falou-lhe da sua alma e das misericórdias infinitas do Deus que o ia julgar; confessou-o chamou-o às disposições mais santas, e viu-o morrer com a consolação de o haver salvado.
Cumprido aquele dever, o Santo obedeceu como prometera, e deixou curar a sua febre sem repetir o que o médico julgava imprudente. 

NA ÍNDIA
Mortificações - Quantos mais prodígios operava Francisco Xavier, maiores eram as austeridades e mortificações a que se entregava. Sua alimentação era a dos mais pobres de entre os índios: arroz e água e nada mais.
Habitava uma miserável cabana de pescador, dormia no chão.
O vice-rei forçara-o a aceitar um colchão e um cobertor; Xavier vira um pobre deitado sobre folhas secas e lhe dera imediatamente o cobertor e o colchão. Não dormia senão três horas, e não lhe importava a dureza da sua cama para um sono de tão curta duração; não tinha ele a censurar-se de alguns excessos da sua mocidade? Viu-se como, nos arrebatamentos expansivos da sua alma, deplorava aqueles anos que toda a sua vida devia expiar por mortificações tais, que lhe parecia dever duvidar da salvação se não fossem completamente cumpridas. Não podia esquecer-se de que por alguns anos deixara de amar a Deus, a não ser de muito longe, para assim dizer, como o amam muitos cristãos, agora que o zelo da sua glória o abrasa e o devora. As fadigas, os sofrimentos, as privações, as humilhações, são os seus maiores desejos, porque tudo quanto ele sofria naquele apostolado tão penoso, era por Deus, e Deus sofrera tanto por nós!
Ele sofre para salvar as almas e Jesus Cristo deu todo o seu sangue pela salvação daquelas almas! Por isso o Santo apóstolo em nenhuma conta tinha tudo quanto fazia por Deus, e cada vez que os prodígios se multiplicassem nele, mais devedor se considerava. 

Mortificação de Xavier por uma conversão (India ~1545)
 -  FRANCISCO XAVIER, depois de se ter combinado com Miguel Vaz, como vimos, embarcou para Cambaia, com o fim de obter do vice-rei a expedição que desejava contra o tirano de Jafanapatão.
Logo que entrou no navio, reconheceu um daqueles fidalgos portugueses cujos escândalos faziam a maior dor do seu coração, e não quis perder esta bela ocasião de ganhar para Deus uma das almas que eram em extremo nocivas à sua glória nas Índias.
Para render este homem  refaz-se o nosso Santo de todo o encanto do seu espírito, de toda a sua graça pessoal, de tudo; finalmente, quanto possuía de atrativo e sedutor, até ao entusiasmo.
O fidalgo português sente o encanto; procura a companhia do Padre Francisco, não pode passar sem ele, não se julga feliz senão junto dele. Mas cada vez que o apóstolo lhe fala da sua alma, não colhe mais que sarcasmos e ironias; porém insiste, ofendido contra uma impiedade que lhe sangra o coração. Xavier não desanima; quanto mais o pobre pecador mostra repugnância, mais o apóstolo lhe testemunha bondade e carinho.
O navio ancorou em Cranganor e os passageiros desembarcaram. Durante aqueles poucos dias de demora ali, o fidalgo não pôde resistir ao desejo de procurar a companhia do Padre Francisco, de passear com ele, de aproveitar; enfim, todas as ocasiões de gozar do prazer que lhe proporciona, a sua conversação.
Ao terceiro dia, passeavam eles juntos num denso palmar, quando inesperadamente Xavier, cedendo a uma inspiração divina, descobre-se até à cintura e bate em si tão rudemente com a sua disciplina, que rasga as carnes e o seu sangue corre abundantemente.
O português, que ao princípio olhara para ele com admiração, e mostrando-se abismado pelos violentos movimentos do Santo, solta gritos de horror logo que viu correr sangue.
- Meu Padre! Que fazeis! Suspendei!... Isso importa um verdadeiro suicídio!...
- Ah! meu caro senhor, vós não quereis compreender as minhas palavras! é por vás, é por amor à vossa querida alma! mas isto nada é comparativamente com o que eu deveria fazer. Custastes muito mais caro a Jesus Cristo, e a sua Paixão, a sua morte, todo o seu sangue, todo o seu amor não tem podido enternecei o vosso coração!...
Senhor acrescentou ele, deixando-se cair de joelhos e levantando para o céu os olhos cheios de lágrimas, Senhor! lançai a -vista sobre o vosso sangue adorável e não sobre o de um pecador como eu!...
- Meu Padre! meu Padre! eis-me aqui! exclama o fidalgo lançando-se aos pés de Xavier; suplico-vos que me confesseis aqui mesmo, não adiemos para mais tarde! não retardemos um só instante!
E fez uma confissão geral, prometeu viver cristãmente e foi fiel à sua palavra. Aquela conversão, tão difícil até ali, consolou e alegrou muito mais o coração do nosso Santo, porque dela esperava colher importantes resultados em benefício dos interesses da religião. 

Sete dias de jejum na semana Santa (1545, sul da Índia) - Na sua chegada a Nagapatão, encontrou Miguel Ferreira que acabava de fretar o seu navio, e que se achava prestes a partir para (São Tomé de) Meliapor. Xavier aproveita esta circunstância e embarca com  ele a 29 de Março, domingo de Ramos, com o fim de ir implorar as luzes divinas junto do túmulo de S. Tomé.
Somente no Sábado Santo, a pedido de Diogo Madeira, concordou em beber um pouco de água, na qual pediu que se fizesse cozer uma cebola. Este facto foi atestado por todo os passageiros.
Naquele mesmo dia, 5 de Abril, tornando-se melhor o tempo, puderam levantar âncora e voltar ao mar. 

NO JAPÃO
Depois de ter assim semeado sem colher durante um mês inteiro, resolveu-se a tomar o caminho de Meaco com os seus companheiros, pelos fins de Dezembro, por uma chuva miúda e nevada que não cessava senão para deixar cair o gelo mais espesso e duradoiro.
O inverno é tão rude e rigoroso no Japão, que as casas se comunicam por galerias cobertas sem sair à rua. Mas a coragem dos quatro viajantes é superior ao rigor da temperatura; ela vencerá denodadamente todos os obstáculos que se opuserem ao seu zelo.
O nosso humilde e intrépido Xavier, cujo exemplo animava os seus companheiros, empreende resolutamente, a pé, com o seu altar às costas, e sem fato de inverno, uma viagem de quinze dias de jornada em qualquer outra estação, mas cuja duração provável não se podia antever pelo tempo da neve, dos tufões tão violentos, tanto em terra como no mar.
Bernardo servia de guia e levava às costas as provisões de boca... Um saco contendo arroz torrado. Era aquele todo o recurso que possuíam para se reconfortarem das suas fadigas; e elas foram grandes naquela viagem!
Foram grandes para o corpo; foram grandes para o coração, e para a alma dos nossos heróis, mas a sua coragem não foi abalada.
Por todo o caminho se encontravam torrentes geladas; era necessário atravessá-las; escorregavam, caíam e feriam-se... Não importa! Levantavam-se, prosseguiam e chegavam à outra margem, tomando o Santo a mão aos outros três menos ágeis, conquanto mais novos do que ele.
Umas vezes enterravam-se ria neve até por cima dos joelhos: outras vezes também, depois de terem trepado penosamente os rochedos escarpados das altas montanhas, nas quais a neve era rija e gelada, desapareciam de repente, e iam parar ao fundo dum abismo, de onde não poderiam sair senão por milagre da divina Providência que velava por eles, não poupando nenhuma prova à sua fé.
Aquelas grandes fadigas influíram finalmente na saúde do nosso Santo: ele foi atacado de uma febre que o obrigou a deter-se por alguns dias em Facai; mas logo que se sentiu melhor, seguiu corajosamente o caminho de Meaco.
Em todas as cidades, em todas as aldeias que atravessava, ele anunciava um só Deus e Jesus Cristo seu Filho, por quem unicamente o homem pode ser salvo; mofavam dele. As crianças perseguiam-no gritando: Deus! Deus! Deus! Xavier repetia tantas vezes aquela palavra nas suas pregações, que as crianças a retinham como uma palavra estrangeira que haviam ignorado até então.
Não tendo a língua japonesa o equivalente à palavra Deus para exprimir a idéia de um poder soberano, o santo apóstolo pronunciava aquele nome em português; era tamanha a admiração dos japoneses, que se riam sem compreender.
Numa cidade em que ele se via escutado com mais atenção do que de antes, falou por mais tempo, explicou a necessidade de fugir ao vício e de praticar a virtude para ser salvo. Aquela estranha doutrina excitou o furor da multidão.
Lançam-se sobre o Santo, arrastam-no para fora dos muros da cidade, condenam-no a ser apedrejado, e ia-se já executar aquela cruel sentença, quando uma tempestade horrorosa, que ninguém havia previsto, rebentou tão violenta, que cada um fugiu precipitadamente a buscar um abrigo.
Francisco Xavier ficou só no meio daquela tormenta, agradecendo à adorável Providência que o livrara assim duma morte certa, para lhe dar tempo de levar mais além o nome de Jesus Cristo.

Contudo os nossos viajantes continuavam a sua jornada para Meaco, através de perigos constantemente renovados e de retardamentos e embaraços tais, que Bernardo, encarregado de dirigir a pequena caravana, muitas vezes enganado pela, neve de que o país estava coberto, se desnorteava completamente.

em construção...

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