Saudação milagrosa
ao irmão jesuíta - Entretanto chegava
Francisco Xavier a Lisboa, e não obstante todas as instâncias de Pedro, foi
pedir hospitalidade onde Simão Rodrigues a recebia, no hospital de
Todos-os-Santos. O Padre Rodrigues, doente dumas febres intermitentes, esperava
o acesso no momento em que o seu querido irmão Xavier se apresentou na sua
presença: a alegria de o receber, e a natural virtude do nosso Santo foram mais
eficazes que todos os remédios até então empregados: abraçando o seu santo
amigo, o Padre Rodrigues sentiu-se curado e a febre não lhe voltou mais. Os
dois amigos achavam-se separados desde longo tempo e por isso foi mútua a
alegria de se tornarem a ver.
Eis o que escreveu o Padre Francisco Xavier à
Companhia de Jesus, em Roma; ouçamo-lo na narração que faz das suas impressões
e do acolhimento que recebeu do rei. Dá-se ali a conhecer melhor, pela
expressão dos íntimos sentimentos que patenteia.]
Simão Rodrigues recupera da febre quartã à chegada de Xavier.
Disposições de muitos para o serviço de Deus
3. No dia em
que cheguei a Lisboa, achei Mestre Simão5, que naquele mesmo dia esperava a
febre quartã. Com a minha vinda, foi tal o prazer que recebeu, e foi tanto o
meu com o seu, e juntados ambos os prazeres causaram tal efeito, que deitaram
fora a quartã de tal maneira que, nem naquele dia nem noutro o tomou a febre.
Isto há já um mês. Ele está muito bom e faz muito fruto. – De cá vos faço saber
que há muitas pessoas devotas nossas. Tantas que temos muito trabalho em não
poder cumprir com todas, por serem elas pessoas de qualidade e por não termos
[nós] tempo.
4. Cá há
muitas pessoas boas, que vivem com desejos de servir a Nosso Senhor, se houvesse
quem as ajudasse, dando-lhes alguns Exercícios Espirituais6 para porem em obra
o bem que, de dia para dia, adiam em fazer. Na verdade, por depressa que
comecem os homens a fazer o que sabem ser bom, hão-de dar conta, querendo bem
reparar nisso, que tardam em pô-lo por obra. Este conhecimento inteiro ajuda a
muitos a despertar e a não achar paz onde não a há, principalmente aqueles que,
contra toda a razão, procuram trazer Nosso Senhor aonde que eles desejam, não
querendo ir aonde Deus Nosso Senhor os chama, deixando-se guiar mais por suas
desordenadas afeições que pelos bons desejos que neles habitam. Destes é de ter
mais compaixão que inveja, vendo-os caminhar tanto costa arriba e por caminho
tão difícil e perigoso e, em paga de tantos trabalhos, virem a parar num fim
tão trabalhoso.
Conversa dos Padres com o Rei e a Rainha, aos quais informam sobre a
nascente Companhia de Jesus
5. Passados
três ou quatro dias depois que chegámos a esta cidade, o Rei mandou-nos chamar
e recebeu-nos muito benignamente. Estava ele só com a Rainha, numa sala, onde
estivemos mais de uma hora com eles. Perguntaram-nos muitos pormenores acerca
do nosso modo de proceder e do modo como nos conhecemos e nos juntámos e
quais foram os nossos primeiros desejos, e [também acerca] das nossa
perseguições em Roma. Muito gostaram de saber como se manifestou a verdade e de
termos levado tanto a coisa avante que viesse a conhecer-se a verdade do que
nos imputavam. Deseja muito Sua Alteza ver a sentença que se deu em nosso
favor7. Todos cá se edificam de que tenhamos levado tanto a coisa avante até
que se desse a sentença. Tanto se edificam que lhes parece que, se a coisa não
se fizesse como se fez, nunca faríamos fruto nenhum. Ao parecer dos de cá,
nunca coisa melhor fizemos que resolvê-lo por sentença e que se visse a
verdade. O Rei e a Rainha mostraram-se muito contentes connosco, ao ficarem ao
par das nossas coisas. No fim de toda a conversa, Sua Alteza mandou chamar a
sua filha a Infanta8 e o seu filho o Príncipe9, para que os conhecêssemos e
deu-nos parte dos filhos e filhas que Nosso Senhor lhe tinha dado, dos que se
lhe morreram e dos que estão vivos10.
5
Simão Rodrigues.
6
Retiro de «exercícios espirituais», segundo o conhecido método de S. Inácio
(Trad. portug.: INACIO DE LOYOLA, Exercícios Espirituais, A. O., Braga, 1999 –
cf. n.1).
7
Sobre a perseguição romana de 1538 pode ver-se TACCHI VENTURI II 153-169. A
sentença pronunciada pelo governador B. Conversini em 18 de Nov. 1538
encontra-se em MI Scripta I 627-629.
8
D. Maria.
9
D. João, nascido em Évora em 1537, falecido em Lisboa em 1554 (F. ALMEIDA,
História da Igreja em Portugal II 371).
10
Além destes dois, D. João III tinha estes filhos: Afonso (nascido em 1526,
morreu na infância), Isabel (nascida em 1529, morreu na infância), Beatriz
(nascida em 1530, morreu na infância), Manuel (nascido em 1531, morreu em
1537), Filipe (nascido em 1533, morreu em 1539), Dionísio (nascido em 1535,
morreu em 1537), António (nascido em 1539, morreu em 20 de Janeiro de 1540). Destes,
mais dois filhos ilegítimos: Eduardo (nascido em 1521, morreu em 1543) e
Manuel, que morreu na infância (Ib. 370-371).
Recomendam aos Padres que confessem os moços fidalgos da corte
6. Assim o Rei
como a Rainha, mostraram-nos muito amor. Recomendou-nos muito Sua Alteza,
naquele mesmo dia em que falámos com ele, que confessássemos os moços fidalgos
da sua corte, porque o Rei fez uma constituição na sua corte, que todos os
moços fidalgos se confessem de oito em oito dias. Recomendou-nos muito que olhássemos
por eles, dizendo-nos Sua Alteza que, se de moços conhecerem e servirem a Deus,
quando forem grandes darão muito boa estimação; e que, sendo eles quais devem
ser, a outra gente baixa tomará exemplo deles e, assim, se reformarão os
seculares do seu Reino: tem por certo que, reformados os nobres, grande parte
do seu Reino será reformada. Coisa é muito para maravilhar e para dar muitas
graças a Nosso Senhor, ver quão zeloso da glória de Deus Nosso Senhor é o Rei e
quanto é afeiçoado a todas as coisas pias e boas. Todos os da Companhia lhe
devemos muito, pela boa vontade que nos tem, assim a todos os daí como aos de
cá. Disse-me o Embaixador, que falou com o Rei depois de ele ter falado
connosco, que lhe disse o Rei, seu senhor, que gostaria muito de nos ter cá a
todos os que somos da Companhia, ainda que lhe custasse parte da sua fazenda.
Alguns procuram reter os Padres em Portugal
7. Procuram
cá, muitas pessoas conhecidas nossas, impedir a nossa partida para as Índias11,
parecendo-lhes que faremos cá mais fruto em confissões, conversas em
particular, Exercícios Espirituais, administração de sacramentos, exortação das
pessoas à confissão e comunhão frequentes e pregações, do que se fôssemos para
as Índias. Procura o confessor do Rei(12) e o pregador13 que não vamos, senão que
fiquemos cá, dizendo que faremos mais fruto.
[Mas] coisa é
para maravilhar o fruto que dizem que havemos de fazer nas Índias. Isto dizem
pessoas que estiveram lá muitos anos, por verem a gente muito preparada para
receber a fé de Cristo Nosso Senhor. Dizem que, se este modo de proceder tão
remoto de qualquer espécie de avareza tivermos lá, como o temos aqui, não
duvidam que em poucos anos converteremos dois ou três reinos de idólatras à fé
de Cristo, quando em nós virem e conhecerem que não buscamos outra coisa senão
a salvação das almas. Grande é a esperança que aqui nos dão, os que estiveram
muitos anos nas Índias, do fruto que lá havemos de fazer em serviço de Deus
Nosso Senhor.
Os Padres procuram companheiros aptos para a missão na Índia.
Esperanças que têm
8. Aqui, muito
procuramos encontrar alguns clérigos que, unicamente por serviço de Deus e
salvação das almas, queiram ir para as Índias connosco. Parece-nos,
presentemente, que em nenhuma coisa podemos aqui servir mais ao Senhor, que em
buscar alguma companhia. É que, sendo uma dozena de clérigos, todos de uma
mesma vontade e querer, não será menos senão muito o fruto que havemos de
fazer. Aqui já se vão descobrindo alguns. Um clérigo, conhecido nosso de
Paris14, prometeu-nos ir connosco, e morrer e viver como nós, e ir com os
mesmos desejos que vamos. Este, cremos que será muito certo, porque tem dado
muitas provas de si. Há outro, de epístola15, que em breve será clérigo, que se
oferece de muita vontade.
Além deste, está
um doutor médico, muito conhecido nosso de Paris16, que já prometeu ir conosco
e somente usar da medicina segundo vir que o ajuda a salvar as almas e a
trazê-las ao conhecimento de seu Criador e Senhor, e não por interesse
temporal. Sempre procuramos e muito olhamos por juntar-nos com pessoas
apartadas de toda a avareza. E não nos contentamos com que sejam apartadas de
avareza, mas até de toda a aparência de avareza, de tal sorte que ninguém possa
suspeitar de nós que andamos buscando mais o temporal que o espiritual.
11
Entre elas, Bento Ugoccioni (MX I 216).
12
Frei João Soares de Albergaria, OESA.
13
Parece referir-se a Fr. Francisco de Villafranca, OESA, então pregador principal
da corte e confessor da Rainha. Nascido em Toledo em 1474, morreu em Lisboa em
1555. Sobre ele tratam J. ANTONIO, Flos Sanctorum Augustiniani I (Lisboa 1721);
RODRIGUES, Hist. Além dele, pregavam também na corte, como refere Barros, Frei
Soares (Compilação de várias obras de J. de Barros, Lisboa 1785, p. 207) e Frei
Luís de Montoya (Corpo Diplomático Português V 136).
14
Nome desconhecido. Talvez Gonçalo de Medeiros, o qual, porém, não era ainda
clérigo (cf. MX; RODRIGUES, Hist.).
15
Deve referir-se a um subdiácono, cujo nome se desconhece.
16
Dr. Lopo Serrão, nascido na diocese de Évora, é mencionado juntamente com João
Codure entre os «jurados» da Universidade de Paris no dia 20 de Outubro 1534
(Acta Rectoria Universitatis Parisiensis, Bibl. Nat. Paris, Mss. Lat. 9953,
3r). Lá mesmo fez Exercícios Espirituais sob a orientação de Fabro (Xavier-doc.
7,5). Nenhum destes três foi com Xavier para a Índia.
Preparam-se para começar a pregar
9. O Rei falou
a um Bispo, que muito nos ama17, e a um confessor seu18, para que pregássemos.
Nós, adiando por alguns dias, para primeiro entrar pelas coisas baixas, não
mostramos vontade de querer pregar, ainda que todos os que nos conhecem não
desejam outra coisa. Sua Alteza mandou-nos chamar um dia e, depois de muitas
coisas passadas, disse-nos que gostava que pregássemos. Então nos oferecemos de
muita vontade para o fazer, assim por lhe obedecer como pela esperança que
temos em Cristo Nosso Senhor que nos há-de favorecer, para que possamos fazer
algum fruto nas almas. Começaremos, deste domingo que vem a oito dias, e não
será de menos que façamos algum fruto, ao ver como os desta cidade nos são
afeiçoados. O que a Nosso Senhor muito rogamos é que aumente a fé daqueles que
de nós têm alguma expectativa ou opinião. E pela opinião que de nós têm,
confiamos muito em Deus Nosso Senhor que, não olhando a nós mas à fé dos que
nos desejam ouvir, nos há-de dar saber e graça para que possamos não só
consolá-los, mas também dizer o que for necessário ou útil à salvação das
[suas] almas.
Saudação final
De Lisboa, a
23 de Julho do ano 1540
Por todos
estes vossos no Senhor caríssimos, FRANCISCO
17
Parece falar de D. Ambrósio Pereira, OESA, bispo titular de Ruskoi (Trácia),
coadjutor do Arcebispo de Lisboa. Sobre os dados incertos da sua vida, cf.
RODRIGUES I/1, 285, n. 2.
18
Fr. João Soares.
[A humildade de Francisco Xavier convencia-o que
alguém influenciava no ânimo do rei; não acontecia porém assim. O rei,
encantado pelo bem que os dois Padres haviam já feito, tanto à corte como à
cidade, desejava ardentemente retê-los, e o seu confessor assim como o seu
capelão eram do mesmo parecer. Ele desejava até que Xavier habitasse no paço, e
lhe fizera preparar um aposento que o nosso Santo recusara, preferindo mil
vezes o hospital onde, podia estar junto dos doentes pobres e do Padre
Rodrigues, e onde podia mais livremente servir a Deus.
O rei queria também que os Padres comessem à sua
mesa; porém eles preferiram continuar esmolando o pão de cada dia, e sobretudo
conservar a liberdade de seguir a regra, à qual haviam feito voto de serem
fiéis até à morte.]
7
AOS PADRES INÁCIO DE LOYOLA
E PEDRO CODÁCIO (ROMA)
Lisboa, 26 de Julho 1540
Autógrafo de Xavier,
em castelhano
A graça e amor de Cristo nosso
Senhor seja sempre em nossa ajuda e favor.
Pede o Breve de confirmação da Companhia de Jesus e o manualzito dos
«Exercícios Espirituais» para os mostrar ao Rei. Grandes desejos do Embaixador
de receber cartas dos primeiros companheiros jesuítas
1. Depois de
ter escrito muito longamente de tudo o de cá1, aparecerem algumas coisas que
nos esquecemos de escrever, entre as quais se contam as que se seguem. Se o
Breve referente a toda a Companhia já tiver sido expedido2, enviai-nos uma
cópia, porque o Rei e os que nos são afeiçoados gostarão de o ver, assim como a
sentença que o governador deu a nosso favor3. Os Exercícios4 pediu-os o Rei,
com desejo de os ver. Se nos enviásseis uma cópia dos corrigidos5,
parecendo-vos, também Sua Alteza gostará de os ver, pois está muito bem com
toda a Companhia. Parece que todos os serviços lhe devemos, pelo acrescido amor
que nos tem.
Recebemos duas
cartas vossas, ambas muito breves: uma, escrita a 8 de Junho e a outra, no
primeiro dia de Maio. O senhor Embaixador6 gostará de receber alguma carta
vossa. Algumas que lhe tendes escrito, recebidas no caminho de Roma a Portugal,
sabei que as tem guardadas7. Se não puderdes escrever, fazei que as cartas que
escreve Estrada8 as possamos mostrar ao Embaixador, e nelas fale dele.
1
Xavier-doc. 6.
2
Lit.: Despedido. Trata-se da aprovação pontifícia da Companhia de Jesus, ocorrida
dois meses depois desta carta pela Bula «Regimini militantis Ecclesiae»,
27.Set.1540.
3
Sobre esta sentença, cf. Xavier-doc. 6.
4
Cópia do manualzito dos Exercícios Espirituais de S. Inácio, que só foi impresso
em 1548.
5
Cf. Epp. Mixtae I 25; 29.
6
D. Pedro de Mascarenhas.
7
O Embaixador recebeu uma carta de Inácio em Bolonha. A sua resposta está
editada em MX II 134. Mas no arquivo da família Mascarenhas não se conserva
hoje nenhuma carta de Inácio.
8
António de Estrada (Strata), S.I.
Os Padres dão Exercícios Espirituais a algumas pessoas e preparam
outras para isso
2. Agora,
neste momento, estamos a dar Exercícios a dois licenciados em teologia: um,
muito famoso pregador9 e o outro, mestre de um irmão do Rei: do infante dom
Henrique10. Com outras pessoas de qualidade fazemo-nos desejar, crendo que
quanto mais os desejarem fazer, mais aproveitarão em fazê-los. Coisa é para
louvar a Deus Nosso Senhor, a de ver muitos que se confessam e comungam.
Vejam em Roma se Francisco de Estrada deve fazer os estudos em
Coimbra. Oportunidade de ali fundar Colégio e noutros lugares alguma Casa
própria
3. Vede o que
vos parece de Francisco de Estrada vir para a universidade de Coimbra, porque
não faltará cá, para ele e para outros, o necessário para os seus estudos11.
Como a gente de cá é muito bem inclinada a todas as coisas pias e boas, não
duvidamos que em breve se fará cá, nesta universidade, algum colégio. Nós, com
o andar do tempo, não deixaremos de falar ao Rei sobre uma casa de estudantes.
Para isso seria necessário sabermos a vossa intenção acerca da maneira que se
há de ter, e de quem os há-de governar e o regulamento que hão-de ter para
crescerem mais em espírito que em letras, para que, quando falarmos ao Rei, o
informemos do modo de viver que hão-de ter os que estudarem nos nossos
colégios. De tudo isto escrevei-nos longamente.
Não vemos
dificuldade para que cá se edifique uma casa de colégio e outras das nossas.
Muito gostariam os de cá fazer-nos casas, se houvesse pessoas para as habitar.
[*Humildade: “que
não seja feita a minha vontada, mas a de Deus” - A sua vida tão mortificada, tão humilde, tão perfeita
fazia a admiração geral, e quando se comparava com o que Francisco Xavier havia
sacrificado, redobrava a admiração pela sua pessoa, e o rei encontrava sempre
calorosas aprovações quando expunha os seus desejos de o conservar em Lisboa.
Xavier, conquanto ambicionasse sempre a missão
das Índias não mostrava contudo nenhuma preferência, e esperava que Deus
dispusesse de si segundo a sua vontade. Escrevia então o seguinte ao seu
prezado Padre Inácio:]
Incertezas da partida para a Índia
4. O Bispo,
nosso amigo12, disse-nos que o Rei não está de todo resolvido a enviar-nos para
as Índias, parecendo-lhes que não menos serviremos cá a Nosso Senhor que lá.
Contestaram13 dois Bispos, parecendo-lhes que de nenhum modo devemos cá ficar,
mas ir para as Índias, parecendo-lhes que alguns reis havemos de converter.
Nós sempre nos
esforçamos por buscar companhia, e creio que não nos há-de faltar, à medida que
se vão manifestando. Se ficarmos, faremos algumas casas, os que ficarmos. Para
ficarem, apareceriam mais que para irem. Se formos, e Deus Nosso Senhor nos der
alguns anos de vida, faremos, com a ajuda de Deus, algumas casas entre os
índios e negros.
Pede, contudo, alguns poderes e instruções para agregar companheiros na
Índia
5. Se o Breve
que se refere a toda a Companhia não estiver despachado, fazei que nos dêem
licença de edificar casas da nossa profissão entre infiéis. Tanto se ficarmos
cá, como se formos para as Índias, por amor e serviço de Deus Nosso Senhor,
escrevei-nos o modo e ordem que havemos de ter em fazer companhia, e isto muito
por longo, pois estais ao par do nosso pouco talento. E se não nos ajudais, por
falta de não saber negociar deixar-se-á de acrescentar o maior serviço de Deus
Nosso Senhor.
De Lisboa a 26
de Julho, ano [1540
Por todos
estes vossos, FRANCISCO]
(Postscrito da mão do doutor L. Serrão): Eu sou um
doutor médico, [chamado M. Lopo] Serrão, que fiz os Exercícios em Paris com
Mestre Pedro Fabro. Dado que pouco me aproveitei neles, agora, se Deus quiser,
farei aqui, com os Irmãos, as eleições para ir para a Índia. Por amor de Nosso
Senhor, roguem a Deus por mim, para que me faça bom médico nas coisas
espirituais e, nas temporais, enquanto isso me ajuda às espirituais. - SERRÃO,
DOUTOR14
9
Talvez Fr. Luís de Montoya, OESA, um dos pregadores da corte e dos primeiros
fautores da Companhia de Jesus (Epp. Mixtae II 672-673) nascido em Belmonte
(Cuenca) em 1497, admitido na Ordem dos Agostinhos em 1514, falecido em Lisboa
com fama de santidade em 1569 (SANTIAGO VELA V 589-597; Corpo Diplomático
Português V 136).
10
D. Henrique, irmão de D. João III, nascido em 1512, administrador da Arquidiocese
de Braga em 1533, seu Arcebispo em 1539, Arcebispo de Évora em Set. 1540, de
Lisboa em 1564, cardeal desde 1545, Rei em 1578-1580, falecido em 1580;
História de Portugal II 430-460). O nome deste mestre do Infante ignoramo-lo.
11
Francisco de Estrada (Strata), S.I., nascido em Dueñas (Palencia) pelo ano de
1519, admitido à Companhia de Jesus em Roma em 1538, morreu em Toledo em 1584
(ASTRAIN, Historia de la Compañia de Jesus en la Assistência de España I 204;
TACCHI VENTURI, Storia della Compagnia di Gesù in Italia II 223-225. Em
Fevereiro de 1541 foi enviado a completar os seus estudos em Paris; daí, a
Lovaina e, finalmente, em 1544, a Coimbra.
12
Provavelmente D. Ambrósio Pereira, de que se falou no Doc. 6.
13
Lit.: instaron. Segundo TELLES e FRANCO, o infante D. Henrique queria enviar os
Padres para a Índia. Mas RODRIGUES (Hist. I/1, 259, n.3) baseado em sólidas
razões acha falsa esta opinião. Talvez se trate antes de D. Diogo Ortiz de
Vilhegas, bispo de S. Tomé e, no ano de 1540, capelão da capela real.
14
Sobre ele, ver Xavier-doc. 6.
8
A MARTÍN DE AZPILCUETA
Lisboa, 28 de Setembro 1540
Autógrafo de Xavier, em castelhano
IHUS
Mui reverendo
senhor1
Agradece cartas recebidas
1. Recebi duas
cartas de v. mercê desde que estou nesta cidade, e todas elas cheias de amor e
caridade para comigo2. Cristo Nosso Senhor, por cujo amor se moveu a
escrever-me, pague tanta caridade e vontade, pois eu, mesmo que o queira, não
posso cumprir a obrigação que [lhe] devo, nem corresponder à muita vontade que
me tem. Conhecendo a minha fraqueza e, isto pela bondade divina, quão inútil
sou para tudo, depois de ter tido de mim mesmo algum conhecimento, ou ao menos
uma sombra dele, procurei pôr toda a minha esperança e confiança em Deus, ao
ver que eu a ninguém dou as devidas graças. Isto grandemente me consola: que
poderoso é Deus para dar por mim, à santa alma de v. mercê e a outras semelhantes,
larguíssima remuneração e prémio.
Deseja informar o doutor por palavra sobre o Instituto da Companhia de
Jesus
2. Para dar
conta das minhas coisas, sobretudo do meu instituto de vida3, muito gostara que
se oferecesse ocasião de nos vermos, porque ninguém neste assunto o poderia
informar melhor do que eu. Praza a Deus Nosso Senhor, entre muitas mercês que
de sua divina Majestade tenho recebido, fazer-me esta: que nesta vida nos
vejamos, antes de o meu companheiro e eu partirmos para as Índias. Então
poderei dar inteira conta do que v. mercê por suas cartas me pede, pois por
carta, para evitar prolixidade, não se pode fazer comodamente. Quanto ao que
v. mercê por sua carta diz – que, segundo é costume dos homens, se dizem muitas
coisas sobre o nosso instituto de vida – pouco importa, doutor egrégio, ser
julgados pelos homens, sobretudo por aqueles que julgam duma coisa antes de a
conhecer.
Recomenda-lhe o portador da carta
3. O portador
da presente, que é Brás Gomes4, deseja ser mui servidor de v. mercê e seu
discípulo. Ele é muito meu amigo e eu dele. Da minha parte lhe suplico que, se
as minhas súplicas podem algo com v. mercê – e podem muito por vossa
amabilidade – aceite uma tão inteira vontade que ele lhe tem, desejando
servi-lo e ser seu discípulo. Além de que, em recebê-lo por seu, fará serviço a
Nosso Senhor, a mim me fará mui assinalada mercê em tomá-lo a seu cargo acerca
do estudo, pois é pessoa que deseja empregar a sua juventude em boas letras. E
a isto veja v. mercê a obrigação que tem, uma vez que Deus Nosso Senhor lhe deu
tão amplíssimo talento em letras: e não só para ele, mas para muitos através
dele.
Nosso Senhor esteja sempre em
nossa guarda. Amén.
De Lisboa, a
28 de Setembro, ano 1540.
Vosso em
Cristo enquanto viver, FRANCISCO DE XABIER
(1)
Martin de Azpilcueta y Jaurequízar, conhecido como doutor Navarro, celebérrimo
professor de Direito civil e canónico, nasceu em Barasoáin (Valdorba, Navarra)
em 1492. Cónego dos regulares de S. Agostinho de Roncesvalles, ensinou com
geral aplauso nas universidades de Cahors, Salamanca e, nos anos de 1538-1555,
também em Coimbra. Morreu em Roma em 1586. Quanto ao parentesco com Xavier,
note-se que o pai do doutor Navarro era Martín de Azpilcueta , que era filho de
Miguel de Azpilcueta. Ora, um irmão deste Miguel era João, o qual foi pai
doutro Martín, que foi o pai de Maria de Azpilcueta, mãe de Xavier (CROS, Doc.
Nouv. II 10r-v).
(2)
Martín de Azpilcueta, neto dum irmão do doutor Navarro e seu herdeiro,
testemunhava assim em 1614: «Quando o Padre Xavier foi para Portugal, o Dr.
Martín de Azpilcueta Navarro era Lente da cátedra de prima na universidade de
Coimbra, em Portugal, e teve notícia, por uma carta dum comerciante de Navarra,
de que o dito Padre Francisco Xavier tinha chegado àquele reino… e escreveu o
dito Dr. Navarro uma carta ao Rei D. João, queixando-se muito que o dito P.
Xavier não o fosse ver a Coimbra… e que suplicava a Sua Alteza lhe mandasse que
fosse a Coimbra… e que depois, quando fosse jubilado, iriam os dois juntos, tio
e sobrinho, para as Índias» (MX II 672).
(3)
O Dr. Navarro, posteriormente amigo sincero da Companhia de Jesus, ao princípio
teve alguns preconceitos contra ela, como ele mesmo confessa em 1550:
«Concordava com os preconceitos de muitos sobre este vosso instituto de vida».
(4)
Fr. Bernardo da Cruz, reitor da universidade de Coimbra, em carta de 11 de
Setembro de 1543, escrita daquela cidade para D. João III, entre os novos bacharéis
canonistas da universidade nomeia em sétimo lugar este Brás Gomes: «7. Um Brás
Gomez, creo que natural de Santarém, mancebo segun dizem bem docto e virtuoso e
de quem se esperava muito; mas nom lhe socedeo bem na lição» (TdT CC 1-73-117).
Não confundir com Braz Gomes, S.I., nascido na Vidigueira em 1536 e professor
em Coimbra em 1559-1560.
9
AOS PADRES PEDRO CODÁCIO E INÁCIO DE LOYOLA (ROMA)
Lisboa, 22 de Outubro 1540
Autógrafo de Xavier, em castelhano
[*Renovação de fé
em Lisboa com Xavier e Rodrigues - A cidade
de Lisboa achava-se já transformada, devido ao abençoado ministério dos dois
santos jesuítas; e o rei cada vez mais satisfeito nutria maiores desejos de
conservar estes apóstolos com o fim de fazer reviver a fé e a piedade em todo o
reino.
A santa vida dos missionários atraiu-lhes
discípulos que se ofereceram a segui-los até às Índias, e Xavier,
considerando-se feliz por encontrar jovens decididos a secundar o seu zelo,
escrevia a Santo Inácio:]
A graça e amor de Cristo Nosso
Senhor seja sempre em nossa ajuda e favor.
Cresce o número de companheiros em Lisboa
1. Pela muita
pressa do correio, é-nos forçoso escrever com brevidade1. De cá vos fazemos
saber que estamos com muita saúde e nos vamos acrescentando, pois já somos seis,
todos conhecidos de Paris2, a não ser Dom Paulo e Manuel de Santa Clara. Praza
a Nosso Senhor dar-nos graça para aumentar o seu Nome entre gentes que não o
conhecem.
Trabalhos sacerdotais
2. Aqui, com o
vosso favor daí, Deus Nosso Senhor faz-nos mercê de o servir, pois o fruto que
aqui se faz excede o nosso poder, saber e entender: as confissões são tantas, e
de pessoas de qualidade, que nos falta tempo para atender a todos. O infante D.
Henrique, inquisidor mor deste reino, irmão do Rei, recomendou-nos muitas
vezes que olhássemos pelos presos da Inquisição, e por isso os visitamos todos
os dias e os ajudamos a conhecer a mercê que Nosso Senhor lhes faz em detê-los
lá. A todos juntos, fazemos-lhes uma prática todos os dias e, em exercícios da
primeira semana3, não pouco se vão aproveitando. Dizem-nos muitos deles que
Deus Nosso Senhor lhes fez muita mercê em os trazer ao conhecimento de muitas
coisas necessárias para a salvação das suas almas.
O Rei envia cartas de recomendação da Companhia ao Papa e ao seu
Embaixador em Roma
3. Nos dias
passados, enviamo-vos cartas do Rei para o Papa e para o seu Embaixador4 a
recomendar as nossas coisas como as suas próprias5: para cartas de recomendação
dos desta corte, já não temos necessidade de intercessores. Se não fosse por
causa da morte do infante D. Duarte6, teria escrito Sua Alteza outra vez a Sua
Santidade, e ao cardeal Santiquatro7, e a todas as outras pessoas que aí, com a
sua intercessão, vos podem fazer favor. Está o Rei tão recolhido que ninguém
lhe fala em negócios: sentiu muito a morte de seu irmão, o Infante. Passados
alguns dias, [já] faremos que escreva a todas essas pessoas que nos fazeis
saber.
Pede um rescrito para que o candidato M. G. Medeiros possa receber
ordens sacras fora de têmporas; e também para ele mesmo poder conceder, a seis
clérigos, licença de rezar pelo novo Breviário. Urge o envio do Breve
respeitante à Índia
4. Um
estudante de Paris decidiu-se a ficar connosco: chama-se Mestre Gonçalo
Mederes8, e não é clérigo. Por serviço de Deus Nosso Senhor, enviai-nos um
despacho para que, em três festas, possa receber todas as ordens, para se
tornar clérigo antes de irmos para as Índias; e também licença para seis
clérigos, de poderem rezar pelo breviário novo: isto para que nós [mesmos], a
seis, possamos dar a tal licença dos que hão de ir connosco para as Índias9.
Por amor de Nosso Senhor: que com toda a brevidade possível nos envieis o nosso
despacho do Breve para as Índias, porque o tempo se vai já acercando! Esperamos
em Deus Nosso Senhor que havemos de fazer muito fruto.
1
No dia 22 de Outubro de 1540, Afonso Fernandes, correio régio, partiu com esta
carta para Roma (Corpo Dipl. Português.
2
Os seis aludidos eram provavelmente estes: Xavier, Simão Rodrigues, Micer
Paulo, Manuel de Santa Clara, Gonçalo de Medeiros, Francisco Mansilhas. Este
último é, de facto, mencionado por Xavier como «companheiro» em Março de 1541;
mas, se é de crer Sebastião Gonçalves, já tinha sido conquistado por Simão
Rodrigues, antes da chegada de Xavier (RODRIGUES, Hist. I/1, 255-256). Não
sendo assim, o sexto seria talvez o Dr. Serrão.
3
Cf. Exercícios Espirituais de S. Inácio de Loyola, n. 23-90.
4
Cristóvão de Sousa.
5
Por essa altura, S. Inácio andava empenhado em obter cartas de recomendação de
toda a parte, para conseguir a aprovação papal da Companhia de Jesus.
6
D. Duarte, irmão do Rei, nasceu em Lisboa em 1515 e aí morreu no dia 20 de
Outubro de 1540 (F. ALMEIDA, H. de P.).
7
Antóni Pucci, florentino, bispo de Pistoia, feito cardeal em 1531 com o título
dos Santos Quatro Coroados, donde lhe veio o nome. Era o protector de Portugal
junto da cúria romana. Morreu em 1544 (GULIK-EUBEL, Hierarchia Catholica Medii).
8
Gonçalo de Medeiros, o primeiro a entrar na Companhia de Jesus em Portugal,
nasceu em Mesão Frio (Trás-os-Montes) e morreu em Lisboa em 1552 (RODRIGUES,
Hist. I/1, 255). Nas Acta Rectoria Universitatis Parisiensis, no ano 1526, é
mencionado entre os jurados (Bibl. Nat. Paris, Mss. Lat. 9951, f. 156v).
9
Trata-se do Breviário, composto pelo cardeal Quiñones e aprovado por Paulo III.
Foi impresso pela primeira vez em Roma em 1536: para cada dia, designa apenas
três leituras. Pelo Doc. 18, sabemos que Xavier obteve a licença aqui pedida.
Dos estudantes que irão estudar em Paris e da fundação de colégio em
Coimbra
5. Fazei-nos
saber o que aqui podemos fazer acerca dos que foram e hão de ir para Paris
estudar e a resposta às cartas que vos escrevemos, acerca do de Estrada10 ou
de outro, para fazer alguma casa de estudantes na universidade de Coimbra,
porque aqui temos muito favor e autoridade para obras pias. De tudo nos fazei
saber, para que aqui, com parecer vosso, negociemos o que vos parecer mais
convir para louvor de Deus.
Esta, servirá de carta; e a de
Mestre Simão, de folhazita [anexa], dada a muita pressa do correio11.
De Outubro a 22 de 1540
(Por mão de Simão Rodrigues):
Vosso irmão em nome dos dois, MESTRE SIMÃO
[*Era chegado o momento de se tomar uma
resolução imediata. D. João III reuniu o seu conselho e pediu-lhe a opinião sobre
este objecto, depois de ter feito conhecer a sua, ou antes o seu grande desejo
de reter os dois apóstolos.
À exceção do infante Henrique, todos os
conselheiros foram da opinião do rei; e anunciou-se aos Padres que não sairiam
do reino, onde prestavam tão grandes serviços.
Qualquer que fosse a dor de Francisco Xavier,
submeteu-se às ordens do soberano como à voz da Providência e continuou os seus
trabalhos. Não se queixou nem mesmo ao seu Padre Inácio, limitando-se a
expor-lhe somente os factos com a humildade e submissão habituais, e aguardou a
sua decisão.]
10
Francisco de Estrada.
11 Vê-se que, pela pressa do correio, não houve tempo
para a folhazita anexa, e que Rodrigues se contentou com pôr na carta a
despedida e a assinatura.
______________
[*Esperança do tio
de Xavier em vê-lo - A primeira cadeira de
teologia, na Universidade de Coimbra, era ocupada por um sábio professor de tão
grande reputação, que perdera no público o seu nome de família, e só era
conhecido em todo
Portugal pelo do país em que nascera: chamavam-lhe o doutor
Navarro. Estudara na França, em Cahors, e depois na
Universidade de Tolosa, onde recebeu os seus graus e em seguida exerceu o
professorado com brilhante distinção. Daquela cadeira havia ele sido chamado
para a primeira de Coimbra; porém conservava uma constante recordação de
reconhecimento pela França, confessando que tudo quanto sabia o havia adquirido
em Tolosa.
Esta cidade devia orgulhar-se, porque o doutor
Navarro, tão recomendável pela sua elevada piedade e grandes virtudes, como
pela sua ciência e pelas obras que deixou, era irmão de D. Maria, a piedosa e
veneranda castelã de Xavier e portanto tio materno do nosso Santo.
Martinho de Azpilcueta soubera da chegada de seu
sobrinho a Lisboa, assim como da reputação de santidade que adquirira na corte
e na cidade, e as bênçãos que Deus se dignava derramar sobre o seu ministério.
Satisfeito com estas notícias, o doutor Navarro escreveu a Xavier pedindo-lhe
que viesse a Coimbra e não recusasse esta consolação ao único irmão de sua mãe.
Xavier testemunhou a Martinho o seu
reconhecimento pela afeição que lhe exprimia na carta que recebera e lhe
respondeu que não podia abandonar os seus trabalhos apostólicos; que ele o
tornaria a ver no Céu donde não se separariam jamais.
Martinho, convencido de que as suas instâncias
não influiriam em seu sobrinho, escreveu ao rei rogando-lhe que ordenasse a
Xavier que fizesse uma viagem a Coimbra, donde ele não podia sair por aqueles
tempos; oferecia-se, para obter aquele favor, a dar duas lições a mais, sem
aumento de honorários, uma de Direito Canônico, outra de Teologia mística, e
comprometia-se até a acompanhar seu sobrinho às Índias, a fim de ali se dedicar
com ele à conversão dos infiéis.
Xavier, pelo seu lado, conjurou o rei para que lhe
não desse uma ordem com a qual a sua consciência se assustava, e o príncipe,
desejando ser-lhe agradável, respondeu negativamente.
Francisco Xavier escreveu então a seu tio
convencendo-o a que não pensasse na viagem às Índias, cujas fadigas e trabalhos
a sua, avançada idade não poderia suportar.
"Eu teria acabado ali os meus dias, diz D.
Martinho no seu Manual, se Xavier, por causa da minha idade, me não tivesse
julgado incapaz de suportar as grandes fadigas da sua missão, e se ele me não
tivesse pedido, na sua partida, que me consolasse da sua ausência coxas a
esperança de nos vermos no Céu".
Este santo Padre, cônego regular de Santo
Agostinho, era venerado pela sua piedade, suas mortificações e sua grande
caridade. Morreu em Roma, na idade de 85 anos, e foi enterrado na igreja de
Santo Antônio dos portugueses, no Campo de Marte.]
10
A MARTÍN DE AZPILCUETA (COIMBRA)
Lisboa, 4 de Novembro 1540
Autógrafo de Xavier, em castelhano
Mui nobre e reverendo senhor:
Felicita-o pelas suas boas obras e magistério e anima-o a perseverar.
Promete escrever ao Prior de Roncesvalles
1. Com uma
carta de v. mercê, escrita a 25 de Outubro, a minha alma recebeu tanto gozo e
consolação que, depois da sua vista, desejada por mim já há muitos dias, coisa
nenhuma me podia dar mais descanso que1 saber dos seus trabalhos e ocupações
tão santas, como são, em obras de piedade, em ensinar aos que só desejam saber
para com isso servir a Cristo Nosso Senhor. Não lhe tenho aquela compaixão que
teria se pensasse que o amplíssimo talento, que Cristo Nosso Senhor lhe deu,
não o emprega como fiel servo, tendo por certo que o prémio do trabalho será
maior que a fadiga de o ter ganhado, quando «sobre muita coisa for constituído,
aquele que no pouco for fiel2». E se trabalhos se lhe oferecem no presente em
ler alguma lição a mais do que é costume, uma coisa3 lhe deve dar forças para
com muita vontade aceitar semelhantes trabalhos: ver que algum [ou outro] dia
deixou de pôr os que devia, em empregar o seu muito talento em letras. E os
que gostamos do seu bem, gozamos muito de ver que assim paga dívidas passadas,
não », sobretudo ». se fiando nos seus herdeiros: com efeito4, muitos penam no
outro mundo por ter-se remetido demasiado aos seus testamenteiros. E «horrenda
coisa é, cair assim nas mãos do Deus vivo5«para dar contas da administração6
2. Praza a
Deus Nosso Senhor, a quem tão liberalmente aprouve dar a v. mercê tantas letras
para as repartir com outros, que [também] v. mercê seja assim liberal em as
repartir com aqueles que só desejam saber para, com isso, ao Criador e Senhor
de todas as coisas servir. E, tendo a sua glória diante, e aumento dela
desejando, lhe dará o Senhor forças. E assim se fará, Doutor egrégio, que na
outra vida venhamos a ser companheiros nas consolações, se nesta formos
companheiros nas penas7.
Ao senhor
Prior de Roncesvalles8 escreverei, como v. mercê mo manda, pelo senhor
Francisco de Motilloa9, quando para Navarra partir, que será daqui a 20 dias.
Quanto ao mais, remeto-me para o nosso encontro, o qual será quando menos
pensar, pois o amor que pelas suas cartas me mostra tão crescido, me obriga a
que nesta parte lhe seja obediente10. Eu, porém, calo o meu vínculo de amor com
v. mercê: o Senhor, o único que penetra os segredos de nós ambos, sabe quão
íntimo me é v. mercê.
Vale, doctor egregie, e ame-me
como costuma.
De Lisboa, a 4
de Novembro, ano 1540
Humilde servo
de v. mercê no Senhor, FRANCISCO DE XAVIER
1
Lit.: e.
2
Cf. Mt 25,21.
3
Lit.: isto.
4
Lit.: pois.
5
Hebr 10,31.
6
Cf. Lc 16,2.
7
Cf. 2Cor 1,7.
8
D. Francisco de Navarra, nascido em Tafalla em 1498, de nobre estirpe, ligado
por amizade às famílias dos Xavier e dos Azpilcueta, Prior do convento de
Roncesvalles em 1518-1542, Bispo diocesano de Ciudad Rodrigo (1542) e Badajoz
(1545), Arcebispo de Valencia em 1556, morreu em Torrente em 1563.
9
Francisco de Motilloa, senhor do palácio Zubiza, parente de Xavier, comerciante
opulento na cidade de Pamplona, onde deixou uma fundação para Missas na igreja
de S. Saturnino
10 Já não se puderam encontrar.
[Mudanças de
planos, enfim as Índias - Santo Inácio de
Loiola havia comunicado ao Papa a resolução do rei de Portugal com respeito aos
dois missionários, e o Papa deixara ao rei a liberdade de dispor dum e doutro
como julgasse mais conveniente para a glória de Deus.
Inácio escreveu então a Xavier pedindo-lhe que
obedecesse às ordens do rei como vindas de Deus e se conservasse em Portugal.
Humilhou-se profundamente o nosso Santo com a
leitura daquela carta. Até então esperava que Deus faria resolver de outro modo
o seu querido superior; hoje reconhecia que era julgado indigno do grande
apostolado que desde tão longo tempo era o objeto de seus votos; submeteu-se,
pois, e redobrou de zelo nos trabalhos do seu ministério em Lisboa.
Poucos dias depois, Pedro de Mascarenhas veio
procurá-lo, e lhe disse
- Caro Padre Francisco, as vossas malas estão
feitas?
- Sempre o estão, senhor; para onde devo ir?
Estou pronto a obedecer às ordens de Sua Alteza.
- Muito bem! meu Padre, preparai-vos para uma grande
missão!
- Eis-me aqui, senhor.
- Às Índias! meu caro Padre, às Índias!
- Às Índias, senhor?... Eu?
Vós, sim, Padre Francisco Xavier! O rei faz-vos
embarcar com Martim Afonso de Sousa!...
Xavier ficou satisfeitíssimo; lágrimas de
alegria e reconhecimento inundavam o seu rosto, que naquele momento tinha uma
expressão mais celeste ainda que de ordinário. Abraçou D. Pedro com
enternecimento, e Pedro cheio de admiração por um tão grande zelo e dedicação,
agradecia a Deus, no íntimo da sua alma, por conceder às Índias um apóstolo de
tamanho valor e de uma santidade tão eminente.
Xavier não lhe perguntou absolutamente nada
sobre aquela mudança nas intenções do rei. Ele ia evangelizar os idólatras,
partia para as missões mais longínquas e mais perigosas; o seu zelo pela glória
de Deus não via outra coisa, não tinha outro fim, e ele julgava-se portanto
completamente feliz:
Decisão de Inácio – Pedro disse-lhe: Não me perguntais, meu Padre, como foi que
o rei tomasse uma resolução tão contrária aos seus desejos?
- Basta-me, senhor, saber que Deus tenha
manifestado a sua vontade. Sou tão feliz em partir para as Índias!
- "Eu quero, porém, que vós saibais tudo;
estou mesmo encarregado de vo-lo dizer.
O Padre Inácio escreveu-me encarregando-me de
propor ao rei a deixar ficar o Padre Rodrigues em Portugal e a enviar-vos para
as Índias. Quando o rei leu a carta do Padre Inácio, viu nela uma ordem de
Deus, e fez o sacrifício que lhe. era pedido.
Eis aqui, pois, meu caro Padre, o que ocorreu e
que fez com que eu pudesse trazer-vos uma nova que vos torna feliz e nos
aflige, conquanto rendamos graças a Deus por dar às Índias um apóstolo do vosso
mérito.
Embarcareis a 7 de Maio próximo com o
vice-rei".
Xavier, exultando de felicidade, escreveu
imediatamente ao Pai da sua alma, como ele chamava a Santo Inácio, e alguns
dias antes do seu embarque dirigiu uma longa carta à Companhia de Jesus em
Roma, com o fim de lhe dar conta do seu apostolado em Portugal, das suas
esperanças no das Índias e dos sentimentos que ocupavam completamente a sua
grande e bela alma.
Carta de
agradecimento de Xavier a Inácio - Esta
carta faz conhecer tão exuberantemente a ternura de coração, a extrema
humildade e ardente zelo do nosso Santo, que não nos podemos dispensar de a
transcrever:]
11
AOS PADRES INÁCIO DE LOYOLA E JOÃO CODURI (ROMA)
Lisboa, 18 de Março 1541
Autógrafo de Xavier, em castelhano
IHUS.
A graça e amor de Cristo nosso
Senhor seja sempre em nossa ajuda e favor.
Alegra-se do bom estado da Companhia e dos trabalhos dos companheiros
1. Recebemos
as vossas cartas, de nós muito desejadas, com as quais gozaram tanto as nossas
almas quanta a obrigação que temos de saber, quer da saúde de toda a Companhia,
quer das ocupações tão santas e pias em que todos vos ocupais, a saber: em
edificar, tanto espirituais casas como materiais, para que os presentes e os
que hão de vir1, tendo meios necessários para trabalhar na vinha do Senhor2, possam
levar por diante o que tão em serviço de Nosso Senhor está começado. Praza a
Nosso Senhor que a nós, ausentes apenas em corpo mas presentes em espírito3,
agora mais do que nunca nos dê a sua santa graça para vos imitar, pois dessa
maneira nos mostrais o caminho para servir a Cristo Nosso Senhor.
O Rei decidiu erigir duas casas da Companhia em Portugal
2. De cá vos
faço saber que4 o Rei, parecendo-lhe bem o nosso modo de proceder, tanto pela
experiência que tem do fruto espiritual que se faz, como por esperar [ainda]
maior quantos mais formos, está resolvido a fazer um colégio e uma casa para os
nossos, a saber, os da Companhia de Jesus. Para os edificar, ficam cá três:
Mestre Simão, Mestre Gonçalo5 e outro sacerdote douto em cânones6. E outros
muitos se vão descobrindo para entrar na Companhia. Tomou o Rei muito a peito
e deveras fazer estas casas. Todas as vezes que o temos visitado, nos tem
falado sempre disso, sem nós nunca lhe termos falado, nem por nós nem por
terceiras pessoas. Só por sua única e pura vontade se moveu a querê-las
construir. Este Verão, na universidade de Coimbra, construirá o colégio; e, a
casa, penso que na cidade de Évora. E creio que vai escrever a Sua Santidade,
para que lhe envie alguns ou algum da Companhia para estes princípios, para que
ajudem Mestre Simão. O Rei, ao ser tão afeiçoado à nossa Companhia, e desejar o
aumento dela como um de nós, e tudo só por amor e honra de Deus Nosso Senhor, a
nós faz-nos sentir obrigados por Deus a ser-lhe perpétuos servos, parecendo-nos
que, a uma vontade tão crescida, [mostrada] em obras tão cumpridas, se não
reconhecêssemos a obrigação que temos aos que ao serviço de Deus Nosso Senhor
assim se assinalam, diante do acatamento divino cairíamos em grande falta. Por
isso, nas nossas orações e indignos sacrifícios, sentimos7 tanta obrigação, que
pensaríamos cair em pecado de ingratidão se, nos dias que vivermos, nos
esquecêssemos de Sua Alteza.
Micer Paulo8 e
um outro, português9, e eu, partimos esta semana10 para as Índias. E segundo a
muita disposição que há naquelas terras para converter almas, pelo que nos
dizem todos os que por lá andaram muitos anos, esperamos em Deus Nosso Senhor
que havemos de fazer muito fruto.
1
Por altura de 1 de Fevereiro de 1541 Inácio e seus companheiros mudaram--se
para uma casa alugada, «frontero a Santa Maria della Strada apresso Santo
Marco, in Roma» (Fabri Mon. 80; cf. TACCI VENTURI, Le case abitate in Roma).
2
Cf. Mt 20,1.
3
Cf. 1 Cor 5,3.
4
Liter.: como.
5
Gonçalo de Medeiros.
6
Manuel de Santa Clara.
7
Liter.: conhecemos.
8
Micer quer dizer meu Senhor. Tinha sido, antigamente, um título honorífico da
coroa de Aragão e, no sec. XIX, ainda se aplicava, por exemplo, aos letrados e
legistas, nas ilhas Baleares. Micer Paulo, é o Padre Paulo Camerte ou de
Camerino. Nasceu em Camerino. Já sacerdote, entrou na Companhia de Jesus em
Roma em 1540, para ir com Simão Rodrigues para a Índia. Embarcou com Xavier em
7 de Abril de 1541 e, em Goa, trabalhou primeiro no colégio de S. Paulo, do
qual veio a ser reitor quando passou para a direcção da Companhia. Na ausência
de Xavier para o Extremo Oriente, ficou a Superior das missões da Índia. Morreu
em Goa em 1560. (RODRIGUES, Hist. I/1, 230-231 264; SCHURHAMMER, Ceylon 97;
Serapeum 19 (1858) 181).
9
Francisco Mansilhas, depois companheiro de Xavier na Costa da Pescaria (Índia),
ordenado sacerdote em Goa em 1545, despedido da Companhia de Jesus em 1548,
falecido piedosamente em Cochim em 1565 (SCHURHAMMER, Ceylon 97).
10
Por causa de ventos contrários e da guerra que se preparava no norte de África,
a frota só pôde partir a 7 de Abril de 1541 (Epp. Broeti 521; cf. EX, Xavier-doc.
15,2).
Sua próxima partida para a Índia com dois companheiros
3. Envia-nos o
Rei muito favorecidos11. E recomendou-nos muito ao Vice-Rei12 que neste ano
vai para as Índias, em cuja nau vamos nós. Este mostra-nos muito amor: tanto,
que até da nossa embarcação ele não quer que outro se encarregue senão ele. E
das coisas necessárias para o mar [ele] se encarregou de prover-nos [chegando]
até a pôr-nos à sua mesa. Estas particularidades vos escrevo, apenas para que
saibais que, com o seu favor, muito fruto podemos fazer entre aqueles reis
gentios, pelo muito crédito que um Vice-rei tem naquelas terras.
Louvores ao novo Vice-rei da Índia que o acompanha
4. O Vice-rei
que neste ano vai para as Índias, já esteve nelas muitos anos13. É homem muito
de bem: essa fama tem em toda esta corte e, lá nas Índias, é mui quisto de
todos. Ele me disse, este outro dia, que na Índia, numa ilha só de gentios sem
mistura de mouros nem de judeus14, havíamos de fazer muito fruto e, ele, não vê
dificuldade em virem a fazer-se cristãos, o rei15 daquela ilha com os do seu
reino.
Esperanças de muitas conversões
5. Creio em
Deus Nosso Senhor, pela muita fé dalgumas pessoas que de nós têm algum apreço,
e [também] pela necessidade que têm dos nossos pequenos e fracos serviços
gentes que ignoram a Deus16 e prestam culto aos demónios, que não podemos
duvidar que, posta toda a nossa esperança em Deus, havemos de servir a Cristo
Nosso Senhor e ajudar aos nossos próximos, trazendo-os ao verdadeiro conhecimento
da fé.
Pede instruções para o modo de proceder com infiéis
6. Por amor e
serviço de Deus Nosso Senhor, vos rogamos que, para Março que vem, quando
partirem as naus de Portugal para a Índia, nos escrevais muito longamente sobre
as coisas que aí vos parecer acerca do modo que devemos ter entre os infiéis.
Porque, dado que a experiência nos há-de mostrar parte do modo que devemos
ter, esperamos em Deus Nosso Senhor que o mais, no que se refere à maneira como
o havemos de servir, há-de prazer a sua divina Majestade dar-nos por vós a
conhecer a maneira como o havemos de servir, como o tem feito até agora. E
temendo-nos do que costuma ser [real] e a muitos acontecer – que, ou por
descuido ou por não querer perguntar e aceitar de outros, costuma Deus Nosso
Senhor negar-lhes muitas coisas, as quais daria se, baixando os nossos
entendimentos pedíssemos ajuda e conselho, no que havemos de fazer,
principalmente àquelas pessoas por meio das quais aprouve a sua divina
Majestade dar-nos a sentir em quê, de nós, se manda servir – rogamo-vos,
Padres, e vos suplicamos uma e outra vez no Senhor17, por aquela nossa
estreitíssima amizade em Cristo Jesus, que nos escrevais os avisos e meios para
mais servir a Deus Nosso Senhor que aí vos parecer que devemos seguir, pois
tanto desejamos a vontade de Cristo nosso Senhor ser-nos por vós manifestada. E
nas vossas orações, além da costumada memória, outra mais particular vos
pedimos que tenhais, pois a longa navegação e o novo trato com gentios, com o
nosso pouco saber, pede mais e mais favor do que o costumado.
Intercâmbio de correspondência. Mostras de zelo apostólico do Rei
7. Das Índias
vos escreveremos mais longamente, pelas primeiras naus que de lá vierem,
dando-vos inteira informação das coisas de lá. Disse-me o Rei, quando dele me
despedi, que por amor de Nosso Senhor lhe escrevesse muito longamente acerca da
disposição que por lá haja para a conversão daquelas pobres almas, doendo-se
muito da miséria em que estão metidas e muito desejoso de que o Criador e
Redentor delas não seja perpetuamente ofendido por criaturas, à sua imagem e
semelhança criadas e a tanto preço compradas. É tanto o zelo que Sua Alteza tem
da honra de Cristo Nosso Senhor e da salvação dos próximos, que é coisa para
dar infinitos louvores e graças a Deus o ver um Rei que tão bem e piamente
sente das coisas de Deus: e tanto é assim que, se eu não fosse testemunha de
tudo como sou, não poderia acreditar no muito que nele vi. Praza a Deus Nosso
Senhor acrescentar-lhe os dias da sua vida por muitos anos, pois tão bem os
emprega, e é tão útil e necessário ao seu povo18.
11
Cf. SCHURHAMMER, Quellen 715 804.
12
Martim Afonso de Sousa, nascido em Vila Viçosa em 1500, gov. da Índia em
1541-1545, falecido em Lisboa em 1571.
13
1534-1539. / 14 Ceilão (SCHURHAMMER, Ceylon 98).
15
Bhuvaneka Bâhu, rei da cidade de Kôttê, ao qual Martim Afonso de Sousa tinha
libertado da tirania dos maometanos.
16
Cf. 1Tess 4,5. / 17 Cf. 1Tess 4,1.
18
Alusão ao que se diz de S. Martinho, na 5ª leitura do Breviário antigo (11 de
Novembro).
Frequência de sacramentos na corte
8. De cá vos
faço saber quanto esta corte está reformada: tanto, que participa mais de
religião que de corte. São tantos os que, sem faltar, de oito em oito dias se
confessam e comungam, que é coisa para dar graças e louvores a Deus. Estamos
tão ocupados em confissões que, se fôssemos o dobro dos que somos, teríamos
penitentes de sobra para nos ocupar o dia inteiro e parte da noite. E isto só
de cortesãos sem incluir outra gente. Os que vinham tratar de negócios à corte,
quando estávamos em Almeirim19, ficavam maravilhados de ver a gente que
comungava todos os domingos e festas, e eles, vendo o bom exemplo dos da corte,
faziam o mesmo. De maneira que, se fôssemos muitos, não haveria nenhum
negociante que primeiro não buscasse negociar com Deus que com o Rei. Por causa
das muitas confissões não temos tido ocasião de pregar. E, julgando servir mais
a Deus Nosso Senhor ocupando-nos em confissões que em pregações, por haver
muitos pregadores nesta corte, temos deixado de pregar.
Espera encontrar--se com os companheiros só na outra vida
9. Daqui não
há mais que fazer-vos saber, senão que estamos para embarcar. Terminamos
rogando a Cristo Nosso Senhor que nos dê a graça de nos vermos e juntarmos na
outra vida corporalmente, pois nesta não sei se jamais nos veremos, tanto pela
grande distância de Roma à Índia, como pela grande messe que lá há sem ter de
ir buscá-la a outra parte. E quem primeiro for para a outra vida e lá não
encontrar o irmão que ama no Senhor20, rogue a Cristo Nosso Senhor que a todos
lá na sua glória nos junte.
De Lisboa, a
18 de Março, ano 1541
Por todos
estes vossos dilectos no Senhor
FRANCISCO DE
XABIER
19
Durante o Inverno, a corte residia em Almeirim, perto de Santarém. Xavier e
seus companheiros acompanharam a família real. No dia 9 de Março o Rei voltou
à capital e a Rainha no dia 4 de Abril (SCHURHAMMER, Quellen).
20
Cf. Cant 3,4; 2Cor 2,13.
12
AOS PADRES CLÁUDIO JAYO E DIOGO LAÍNEZ 1(ROMA)
Lisboa, 18 de Março 1541
Duma cópia em castelhano, feita por 1666
Impossibilidade de o Rei de Portugal contribuir para a construção da
casa da Companhia de Jesus em Roma, por causa da guerra com os mouros
1. Acerca do
assunto com o Rei sobre a esmola para a construção da casa2, escrevo a Pedro
Codácio3 o que aí deve fazer. Para este Verão não vejo muita disposição, por
causa da grande guerra que se está a preparar em defesa contra os mouros, os
quais, segundo notícias que aqui chegam, vêm com grande poder4.
Pessoas que poderiam interceder junto dele para conseguir essa esmola
2. Aproveitaria muito que alguns cardeais,
amigos do Rei, escrevessem ao Rei sobre isso, informando-o de quão bem
empregada seria a esmola que, para a construção dessa casa, viesse a dar. Creio
que o cardeal Carpi5 é amigo do Rei, porque é muito amigo de D. Pedro6. As suas
cartas seriam de proveito, juntamente com as de Santiquatro7, assim como as de
outros cardeais que sentirdes ser amigos de Sua Alteza. Se se excusarem de
escrever ao Rei, ao menos que escrevam a D. Pedro, para que sobre isto fale ao
Rei, e tome cargo de fazer esta boa obra. E se o embaixador que está aí for
muito devoto da Companhia, aproveitaria que escrevesse ao Rei, informando-o da
necessidade que há do seu favor.
1
Nos começos de 1541, Inácio chamou a Roma os companheiros dispersos por Itália,
para que subscrevessem as Constituições e elegessem o Superior Geral. Entre os
convocados estavam também Jaio e Laínez, vindos respectivamente de Brescia e
Parma (POLANCO, Chron. I 90).
2
Inácio e os seus companheiros, a 19 de Agosto de 1540, tinham adquirido em
enfiteusis perpétuo um pequeno terreno junto à igreja de Santa Maria della
Strata (junto à actual igreja do Gesù), para aí construírem casa (TACCI VENTURI,
Le).
3
Perdeu-se esta carta. Sobre Codácio ver Xavier-doc. 5.
4
Os mouros cercavam já com numerosas tropas o castelo de Santa Cruz do Cabo de
Gué e encaminhavam-se também para Mazagão. D. João III teve de organizar
imediatamente a defesa contra os atacantes.
5
Rudolfo Pio, nascido em Carpi em 1499, bispo de Faenza em 1528-1544), criado
cardeal em 1536, morreu em 1564.
6
Mascarenhas. / 7 António Pucci.
Cartas que convém escrever a D. Pedro de Mascarenhas e ao Rei de
Portugal
3. Não deixeis
de escrever a D. Pedro Mascarenhas, porque, com as vossas cartas, é tanto o
prazer e consolação que recebe, que não saberia descrevê-lo. Eu vos certifico
que muito vos ama no Senhor. As vossas cartas tem-nas bem guardadas, e lê-as a
miúde, e não sem muita consolação e alegria da sua alma. Vendo quão vosso é,
sinto-me obrigado, nos dias em que eu viver, a ser todo seu.
Parece-nos cá,
salvo melhor parecer, que aproveitaria que escrevêsseis ao Rei a dar-lhe graças
pelo colégio e casa que quer construir para a Companhia8, porque aqui são muito
de cumprimentos. Sei que o Rei gostaria da vossa carta, a julgar pelo que D.
Pedro lhe tem dito de vós. Podereis dizer na vossa carta que nós vos escrevemos
acerca do colégio e casa que em nome da nossa Companhia quer edificar, porque
até isto aproveitará para se dar mais pressa em fazê--las construir: sei que a
vossa carta há-de cá ser vista por muitos.
Possível ordenação sacerdotal de Francisco Mansilhas
4. De
Francisco Mansilha faço-vos saber que não tem ordens nenhumas. Lá na Índia há
um Bispo9; esperamos em Deus que lá se possa ordenar. O bom homem mais
participa de muito zelo, bondade e grande simplicidade, que de muitas letras.
Se Dom Paulo não parte com ele, com as muitas que tem, se Deus nosso Senhor não
nos ajuda, não será muito que, lá nas Índias, acerca de ordená-lo, nos vejamos
em que fazer. Ele deseja muito, se porventura lá [assim] não o ordenarem, que
lhe enviásseis uma dispensa para que, fora de têmporas, em três festas, se
pudesse ordenar a título de voluntária pobreza e suficientíssima
simplicidade10; e supra a sua muita bondade e santa simplicidade o que por
letras não alcança. Porque se tivesse conversado tanto com Bobadilla11 como
conversou com Cáceres12, talvez se lhe tivesse pegado mais de uma conversação
que da outra e, assim, não nos veríamos agora nestes trabalhos, porque içaria
as velas da Escritura em vez das de ciência13. Ele e micer Paulo muito
desejariam alcançar de Sua Santidade esta graça: que todas as vezes que dizem
Missa possam tirar uma alma do purgatório14.
Missas oferecidas pelo cardeal Guidiccioni
5. As Missas
que, pelo cardeal Guidación15, se disseram da nossa parte, são duzentas e
cinquenta, desde que partimos de Roma até agora. Praza a Deus Nosso Senhor que
nas Índias acabemos as que restam. Penso para mim uma coisa: é tanta a
consolação que acho em celebrar por Monsenhor reverendíssimo que, nos dias que
eu viver, tenho de celebrar por sua intenção.
Deseja saber se alguns amigos entraram na Companhia
6. Muito
desejamos saber, agora que está confirmada a nossa regra16, se aquelas pessoas
– que em amor muito lhes devemos, pela muita vontade que mostravam às nossas
coisas, com desejos de que se realizassem – entraram ou estão para entrar nela.
Tenho receio de que haja alguns que desejam achar paz não entrando nela; mas,
até que entrem, pode ser que não a achem. Não digo isto só por Francisco
Zapata17, porque não quero excluir o senhor Licenciado18, do qual receio que
não viva consolado seguindo palácios de Bobadilha.
Enfim, de
Diogo Zapatae de semelhantes a ele, não sei que dizer senão que o mundo, por
não se poder aproveitar deles, os há-de deixar; e terão depois muito que fazer
para achar quem os queira. Do senhor Doutor Iñigo Lopez19, tenho por muito
averiguado que deixaria de ter gosto em curar, se de todo se ausentasse algum
dia, de modo a não poder socorrer o estômago do Padre Iñigo20 e as maleitas21
22 23.
O Padre Araoz e outros que poderiam ir para a Índia
7. Não sei que
é: que, desde que o Rei ordenou que alguns de nós ficassem e outros fossem, não
consigo tirar do meu pensamento António de Araoz24, nosso caríssimo irmão,
parecendo-me que nos há de vir a ver nas Índias com meia dúzia de clérigos. E,
a vir ele com alguma companhia, mesmo que não tenham muitas letras, se tiverem
muito ânimo de acabar os seus dias ao serviço de Nosso Senhor e carecerem de
toda a espécie de avareza, parece-nos que se fará muito fruto com a vinda
deles. E ainda que neste ano não nos enviásseis nenhuns – entendo neste Março
que vem – senão deste a dois anos, ao ter resposta nossa das Índias, não
pensamos que se perderia coisa nenhuma; contanto que daqui a dois anos
enviásseis algum número. Olhai por isso como vos parecer, porque vos faço saber
que acredito que se há-de fazer muito fruto nas Índias, segundo todos os que lá
estiveram muitos anos nos dizem. De lá, das Índias, vos escreveremos muito
longamente, ao ter experiência das coisas de lá. Muito nos há-de ajudar o favor
do Vice-rei25, porque lá, com aqueles reis que têm paz com o Rei de Portugal,
tem muito crédito.
Pede graças espirituais e cartas cheias de notícias
8. Se algumas
graças espirituais vos parecer que lá nos podem ajudar para mais servir a Deus
Nosso Senhor, olhai por isso, se vos parece, para que daí no-las envieis. Ao
menos a de que possam receber ordens, os que para lá forem da nossa Companhia:
fora de têmporas, sem património e sem benefício [e apenas] com voto de pobreza
voluntária, e poder para legitimar. Quando nos escreverdes para as Índias,
escrevei-nos nomeadamente de todos, pois não há de ser senão de ano a ano. E
nessa [carta] muito longamente: que tenhamos que ler oito dias, que nós faremos
o mesmo.
De Lisboa a 18 de Março, ano 1541
Por todos estes vossos em Cristo
caríssimos irmãos, FRANCISCO DE XABIER
8
Em Coimbra e Évora.
9
Fr. João de Albuquerque, OFM, nascido em Albuquerque (Extremadura), entrou na
Ordem franciscana cerca de 1500, foi sagrado Bispo de Goa em 1538, morreu em
Goa em 1553 (SCHURHAMMER, Ceylon 138).
10
«Para os clérigos seculares, o título canónico para receberem as ordens sacras
é o título de benefício e, faltando este, o de património ou duma pensão… tem
de ser verdadeiramente suficiente. Nos clérigos regulares, o título canónico é
o título de pobreza»
11
Alude à facilidade que tinha Bobadilha em alardear Escritura (cf. Bobad. Mon.,
p. XII; EX Ep. 8a,3).
12
Diogo de Cáceres (cf. Xavier-doc. 2).
13
Lit.: revezando ciência. Cf. parecida expressão em Laínez, dia 22.Jan.1540 (Hist.
Soc. 67, 67v; Bobad. Mon.).
14
Faculdade de altar privilegiado, pessoa e quotidiano, como têm, por ex., os cardeais
(CIC 1917, can 239, § 1, 10).
15
Guidiccioni. A aprovação da Companhia de Jesus, feita de viva voz pelo Papa a 3
de Setembro de 1539, tinha de ser declarada e determinada por letras
apostólicas. Paulo III confiou este assunto sucessivamente a três cardeais: o
terceiro era Bartolomeu Gudiccioni, decididamente contrário à aprovação. Para
que desistisse de tão inflexível atitude, Inácio pediu aos seus sacerdotes que
celebrassem 3.000 Missas (TACCI VENTURI) e quis que o informassem das que iam
celebrando.
16
A fórmula do Instituto da Companhia de Jesus foi confirmada por Paulo III com a
Bula «Regimini militantis Ecclesiae» de 27 de Setembro 1540 (MI, Const. I 24-32).
Sobre a palavra «regra», ocorrente também na carta 20,14
17
Francisco Zapata, nascido em Toledo, sacerdote na cúria romana, acompanhou
como candidato à Companhia de Jesus os Padres Broet e Salmerón na expedição à
Irlanda (1541-1542). Entrou na Ordem em Roma, mas em 1547 saiu dela. Entrou
depois na Ordem de S. Francisco, onde perseverou eminentemente em virtude e
ciência.
18
Licenciado Cristóbal de Madrid, nascido em Daimiel (1503), foi para Roma (1540)
como teólogo do cardeal Cupis e lá entrou na Companhia de Jesus em 1555. Morreu
em Roma em 1573
19
Doutor Iñigo Lopez, clérigo da diocese de Toledo, médico, fez Exercícios
Espirituais em Roma em fins de 1537 ou princípios de 1538 sob a direcção de
Santo Inácio e ficou muito amigo da Companhia de Jesus. Morreu em 1549. 20
Inácio de Loyola sofria do estômago.
21
Lit.: merachia, palavra latina que não se encontra nos dicionários. Xavier
usa-a em tom de brincadeira com Bobadilha, que costumava dizer das suas doenças:
«costuma-se dizer que o sujeito da medicina é o corpo humano, menos o
bobadilhano» (Bobad. Mon, 631).
22
Diogo Zapata, membro da Confraria da Graça, (parece ter sido o quarto filho do
primeiro conde de Barajas, a quem Francisco de Holanda menciona nos seus
diálogos romanos, juntamente com D. Pedro de Mascarenhas e outros
contemporâneos de Xavier (FRANCISCO DE HOLANDA, Da Pintura Antigua, Porto 1918,
p.43).
23
Nas cartas daquele tempo, outros amigos e conhecidos dos jesuítas em Roma são
mencionados, como o Dr. Miguel Torres, António Zapata, Dr. Carrión, o
Licenciado Cavallar, etc. (Epp. Mixtae I 25 97; Epp. Broeti 268).
24
António de Araoz, S.I., nascido em Vergara (Guipúzcoa), entrou na Companhia de
Jesus em Roma (1539) e morreu em Madrid (1573). Foi o primeiro Superior
provincial da Companhia de Jesus em Espanha. A sua irmã de pai, Madalena de
Araoz, era esposa de Martín, irmão de Inácio de Loyola.
25 Martim Afonso de Sousa, governador da Índia.
[AS
DESPEDIDAS - AUDIÊNCIA REAL - O EMBARQUE
De mãos vazias numa
grande missão: Providencia Divina - Via-se
apinhado o porto de Lisboa; oficiais, soldados e marinheiros, iam e vinham da
praia para a cidade e vice-versa, com carregamentos consideráveis que conduziam
para a frota ancorada no porto. Tratava-se de prover de armamentos e víveres cinco
grandes navios e alguns galeões reais de que se compunha a frota, prestes a
partir para as Índias Orientais.
Solícito na execução das ordens que recebera do
rei, D. Antônio de Ataíde, conde da Castanheira, intendente da armada real,
veio procurar Francisco Xavier:
- Padre Francisco, lhe disse ele, o rei quer que
sejais abundantemente provido de tudo que desejardes para a viagem. Tende a
bondade, pois, de enviar-me uma nota 'dos objetos que devo embarcar para vós.
Confesso-me infinitamente grato às bondades de
Sua Alteza, senhor; mas eu de nada careço.
- Meu Padre, as ordens do rei são formais; ele
insistiu fortemente para que nada faltasse a bordo, do que tiverdes desejado.
- Nada falta, senhor, quando se não carece de
nada; rendo-vos mil graças, vejo-me extremamente reconhecido pelo muito que
devo ao rei; porém devo muito mais à Providência, senhor, e vós não querereis,
por certo, que me desanime e duvide dela neste ponto!
- Muito bem, meu caro Padre, vós sois admirável!
permiti que vos diga que devo obedecer ao rei.
- Já o fizestes, senhor.
- Acrescentarei, meu Padre, que a Providência
não faz sempre milagres, e não acha que seria provocá-la embarcando-vos para
uma tal viagem sem a menor provisão pessoal?
- Ora pois! senhor, vou dar-vos uma pequena
relação de livros religiosos que será útil espalhar entre os portugueses das
Índias, que deles estarão privados, e vos pedirei para mim um fato de fazenda
grossa, pois que o frio é perigoso, segundo dizem, ao dobrai o cabo da
Boa-Esperança.
- Rogo-vos, meu Padre, fazei-nos o obséquio de
pedir mais do que isso! fazei-o pelo rei!
- Não sei o que mais possa pedir, senhor, pois
que eu de nada mais careço.
Servir e não ser
servido, eis a Santidade - Não podereis
servir-vos a ti mesmo, senhor, acrescentou impacientemente D. Antônio;
aceitareis pelo menos o criado que se vos der.
- Enquanto eu tiver estas duas mãos, senhor,
espero que Deus me fará a graça de permitir que me sirva a mim mesmo
- As conveniências exigem, meu Padre, que
tenhais ao menos um! Ides revestido de uma dignidade que não deveis aviltar; o
rei disse-me que partíeis na qualidade de núncio apostólico. Será conveniente
ver-se um núncio do Papa a lavar a sua roupa a bordo, e a preparar por si a sua
comida?
- Peço perdão, senhor, por não poder ceder às
vossas tão grandes instâncias; porém, tenho a intenção e mesmo vontade de me
servir e de servir os outros o mais possível e conto fazê-lo sem desonrar o meu
caráter. Quando não pratico o mal, não temo nem escandalizai o próximo, nem
menosprezar e rebaixar a autoridade de que 'a Santa Sé se dignou revestir-me...
Não nos iludamos, senhor; cifram-se nisto as misérias humanas, são idéias
falsas de decoro e de dignidade que tem feito à Igreja o mal que nós vemos!
Antônio
não insistiu mais; o tom enérgico de Francisco Xavier, conservando, contudo, a
sua extrema doçura, tinha ao mesmo tempo tão grande dignidade e tal nobreza,
que o intendente convenceu-se que uma natureza daquela têmpera nunca rebaixaria
em nada a autoridade que lhe estava confiada.
Francisco Xavier sabia impor o respeito
humilhando-se: é este o segredo dos santos em geral; porém ele parecia possuir
esse dom em maior grau do que os outros. Deus assim lho permitia, sem dúvida em
vista das inúmeras conquistas a que o destinava.
Núncio Apostólico e
recomendações do Rei de Portugal - O rei
desejou ver o nosso Santo antes da sua partida e lhe entregou, em mão própria,
quatro breves do Soberano Pontífice: um nomeava o Santo missionário núncio
apostólico; outro dava-lhe poderes amplos para estabelecer e manter a fé em
todo o Oriente; um terceiro recomendava-o ao rei David, imperador da Etiópia, e
o quarto a todos os príncipes soberanos das ilhas e da terra firme, desde o
Cabo da Boa-Esperança até além do Ganges.
Xavier recebeu aqueles breves das mãos do rei,
com o respeito devido ao Soberano Pontífice e à majestade real:
- Senhor, respondeu ele, eu me esforçarei por
sustentar o pesado fardo que Deus me impõe e os seus representantes sobre a
terra. A minha incapacidade é grande, mas Deus é todo-poderoso; deposito n'Ele
somente, toda a minha confiança.
- Examinai tudo, disse-lhe o rei; visitai todas
as fortalezas portuguesas, vede se Deus é ali servido, e dai-nos conta do que
há a fazer de melhor para se estabelecer o Cristianismo nas nossas novas
conquistas. Escrevei muitas vezes e extensamente acerca disto, não somente aos
ministros, unas diretamente à aninha pessoa. Recomendo-me às vossas orações,
meu Padre; orai também pela rainha, pelos infantes e por Portugal.
- Durante toda a minha vida, senhor, não me
esquecerei das bondades e obséquios com que Vossa Alteza se dignou honrar-me.
- E eu vos agradeço do bem que nos tendes feito
a todos, Padre Francisco; vejo-vos partir com dor!... mas é necessário obedecer
às ordens de Deus!
Chegara o dia do embarque. O Padre Paulo de
Camerini, italiano, e Francisco Mancias, português, que não era ainda
sacerdote, acompanhavam o nosso Santo às Índias. O Padre Rodrigues ia ser
separado do irmão que tanto prezava; mas o Padre Xavier ia sê-lo da Europa inteira,
desta parte do mundo onde deixava as suas mais caras, mais ternas e mais
preciosas afeições, e considerava-se feliz em oferecer a Deus um tão grande
sacrifício. Dissera muitas vezes:
"A ausência da cruz é a ausência da
vida".
Despedida e revelação
ao irmão jesuíta - O dia da partida para as
Índias era, pois, para a sua grande alma, um dia de excesso de vida. Simão
Rodrigues acompanhou-o até à ponte da São Diogo que o vice-rei devia comandar.
Nó momento da separação, o rosto de Rodrigues inundou-se de lágrimas; Xavier
torna a anão do seu amigo, aperta-a coxas afeição e diz a este seu irmão
querido:
"Meu querido Simão, eis as últimas palavras
que vos vou dizer, porque não nos tornaremos a ver mais neste mundo. Soframos
paciente e generosamente a dor amarga da nossa separação. Se nos conservarmos
bem unidos a Deus, achar-nos-emos sempre ligados como o estamos hoje e nada
haverá que possa romper a nossa união em Jesus Cristo ! Para
vos consolar, quero, ao deixar-vos, descobrir-vos um dos meus mais secretos
pensamentos e a maior das alegrias da minha alma.
"Lembrar-vos-eis, de certo, que numa noite,
no hospital de Roma, me ouvistes gritar: Ainda mais, Senhor! ainda mais! Muitas
vezes me perguntastes e me pedistes vos explicasse o motivo daquela exaltação,
e sempre respondi que preferia nada dizer. Ora pois! agora vo-lo direi, em
memória da confiança e da amizade que depositou no vosso coração de
irmão."
"Vi então, se em sonho ou acordado, Deus o
sabe, tudo quanto devia sofrer pela glória de Jesus Cristo. Nosso Senhor deu-me
naquele momento tamanha avidez pelos sofrimentos, que os que se me apresentavam
me pareciam insignificantes e eu ardentemente desejava mais. Era esta exaltação
da minha alma que me fazia gritar com transporte: Ainda mais! ainda mais! E
espero que a divina bondade me concederá nas Índias o que me fez ver em Itália,
e que os ardentes desejos que me inspirou ao coração serão imediatamente
satisfeitos!"
Os dois irmãos abraçaram-se em seguida e
separaram-se derramando copiosas lágrimas, mas lágrimas suaves como eram os
seus desgostos, doces e silenciosas como são as lágrimas dos Santos.
Francisco Xavier acabava de revelar toda a
grandeza e toda a energia da sua alma na consolação que deixava ao seu amigo.
Via-o pesaroso e aflito pela sua partida, pela idéia de o não tornar mais a ver
nesta vida, e de ficarem separados por uma distância que lhe parecia infinita:
Certeza do
sofrimento - "Consolai-vos, lhe disse
ele, eu vou sofrer e sofrer muito!".
Era esta a verdadeira consolação dada por um
Santo a um coração digno dele e capaz de o compreender! Repugnava à humildade
de Xavier fazer conhecera Rodrigues o que Nosso Senhor lhe havia descoberto;
era um sacrifício; porém a generosidade de Xavier era superior a todos os
sacrifícios. O seu magnânimo coração supõe no do seu amigo tanto amor por Jesus
Cristo como ele próprio nutria, outro tanto desejo de sofrer por ele, e de zelo
pela sua glória; supõe-lhe todos os sentimentos sobre-humanos que o animam, o
desligam da terra e o têm unido a Deus... repete-lhe:
"Consolai-vos, eu vou sofrer e sofrer
muito!"
E Rodrigues, bastante Capaz de apreciar e de
acolher aquela consolação, estende os braços para Xavier, aperta-o ternamente
ao coração, abraça-o sem poder responder-lhe, e deixa-o com o sentimento de não
ter sido julgado digno de o seguir para partilhar os seus trabalhos, os seus
sofrimentos e. os seus perigos.
O Padre Rodrigues deixou a São Diogo
dirigindo-se para terra, quando se deu o sinal; cada navio levantou ferro e a
frota aproou para o alto mar sob as vistas de Deus e o comando de Maninho
Afonso de Sousa, que quisera levar Francisco Xavier a bordo do navio em que ele
embarcava.
Era a 7 de Abril de 1541, dia aniversário do
nascimento do nosso Santo; entrava ele no trigésimo sexto ano.]
Depois de
longos meses de espera em Lisboa (Junho-Abril) Xavier embarca para a Índia a 7
de Abril de 1541, precisamente no dia em que fazia 35 anos. Por conveniência
para a Missão, entendeu-se que era melhor ficar Simão Rodrigues em Portugal a
preparar mais missionários para o futuro e ir apenas ele. Pensava ele que ia
apenas abrir caminho a novos missionários jesuítas. Mas, na despedida, com
grande surpresa sua, o Rei entrega-lhe 4 Breves pontifícios em que o Papa o nomeia
Núncio apostólico para todo o Oriente, lhe confere todos os poderes que para
isso necessita e o recomenda a todos os reis cujos países vier a visitar (cf.
Xavier-doc. 121).
Com ele, partiram apenas dois candidatos a jesuítas:
Micer Paulo Camerino, sacerdote italiano, e Francisco Mansilhas, colega de
estudos em Paris.
Nenhum comentário:
Postar um comentário