Começo de vida sacerdotal na cidade
12.
Chegamos à cidade de Goa, a seis de Maio do ano de 1542. Partimos no fim de
Fevereiro de Moçambique. As [outras] cinco naus, de mediado Março partiram18,
das quais, a principal se perdeu: a gente quase toda se salvou. Perdeu-se
perto de terra19. Era nau muito rica. Trazia muitas mercadorias. Era nau de 700
toneladas e mais. Aqui em Goa fiz pousada no hospital 20. Confessava e
dava a comunhão aos enfermos que aí estavam. Eram tantos os que vinham
confessar-se que, se estivesse em dez partes [re]partido, em todas elas teria
quem confessar.
16
Xavier aportou em Suk, na costa nordeste da ilha.
17
Cf. BROU, Saint François Xavier I 120-123; BECCARI, Rerum Aethiopicarum
scriptores X 48.
18
Partiram a 20 de Março (SCHURHAMMER, Quellen 984).
19
A nau Santiago naufragou perto do Rio das Cabras, entre Versova e Baçaim. Os
náufragos viram-se obrigados a invernar em Baçaim.
20
O hospital real de Goa foi fundado em 1510 por Albuquerque para os doentes
portugueses. No dia 12 de Março de 1542, no sétimo dia da chegada de Xavier,
foi confiado à Irmandade da Misericórdia «por ver a grande desordem e mau
regimento que se tinha na cura dos enfermos». Em 1593 foi substituído por novo
edifício, cujas ruínas ainda se conservam.
Depois de
cumprir com os enfermos, confessava, pela manhã, os sãos que me vinham
procurar; e, depois do meio dia, ia à cadeia confessar os presos, dando-lhes
alguma ordem e inteligência, primeiro, do modo e ordem que haviam de ter para
confessar-se geralmente. Depois de ter confessado os presos, tomei [conta de]
uma ermida de Nossa Senhora, que estava perto do hospital21, e aí comecei a
ensinar aos miúdos as orações, o credo e os mandamentos. Passavam muitas vezes
de trezentos, os que vinham à doutrina cristã22. Mandou, o senhor Bispo, que
pelas outras igrejas se fizesse o mesmo, e assim se continua agora, onde o
serviço, que a Deus Nosso Senhor nisto se faz, é maior do que muitos pensam.
13. Com muito
amor e vontade dos desta cidade, habitei aqui todo o tempo que estive. Nos
domingos e festas, pregava naquela ermida de Nossa Senhora, depois do almoço,
aos cristãos da terra, um artigo da fé. Ia tanta gente que não cabia na ermida.
E depois da pregação, ensinava o Pai-nosso, Ave-Maria, o Credo e os
Mandamentos da lei. Aos domingos, ia fora da cidade dizer Missa aos enfermos do
mal de S. Lázaro23: confessei-os e dei-lhes a comunhão, a todos os que naquela
casa havia; preguei-lhes uma vez; ficaram muito amigos e devotos meus.
[*Para
cumprir votos de pobreza, vivia no hospital - Vimos já como Xavier trabalhava na
salvação das almas e pela glória de Deus na cidade de Goa. Pode-se avaliar,
pois, os cuidados afetuosos que ele prodigalizava aos leprosos pelas palavras
escapadas do seu coração: "Eu não fiz mais do que repetir a palavra de
Deus àqueles desgraçados, que as acolheram com avidez e tive a consolação de me
ver por eles estimado". Todo o poder da sua voz, auxiliado pela sua amável
e terna caridade, se patenteia naquelas palavras. Os leprosos achavam-se
encantados, haviam-no amado desde que o ouviam, e estavam ávidos por o ouvirem.
O vice-rei fez-lhe
vivas instâncias para conseguir a honra de o ter no seu palácio; o nosso Santo
recusou com afabilidade e firmeza, como costumava fazer, respondendo a D.
Martim Afonso
- Vós não
querereis, estou certo, ver-me infiel ao meu voto, senhor; permiti, pois, que
eu não tenha outra morada que não seja a dos pobres.
- Obrigais-me
sempre a ceder, meu querido Padre, respondeu-lhe o vice-rei com expressão de
pesar; ide. pois para o hospital, já que não posso impedir-vos, mas orai por
mim e pelos meus que privais duma grande consolação.
E Xavier foi para
o hospital! Estranha habitação para um Núncio Apostólico!
Encontro
com o Bispo: singeleza mutua - Como o arcebispo de Goa devia ter conhecimento da
amplitude dos poderes de Francisco Xavier, o Santo apresentou-se, logo que
chegou, no seu palácio arquiepiscopal, entregou-lhe os breves do Soberano
Pontífice e prostrando-se a seus pés, pediu-lhe a sua bênção e autorização para
exercer o santo ministério nos países submetidos à sua jurisdição.
O arcebispo, D.
João de Albuquerque, um dos mais santos prelados daquela
época, encantado da angélica expressão do nosso Santo, levantou-o imediatamente
e o abraçou com um sentimento de afeição de que ele próprio se admirava mais
tarde, falando da impressão que a vista do Santo apóstolo nele havia produzido.
Os historiadores
de S. Francisco Xavier são unânimes sobre o efeito atrativo da sua presença
desde o momento em que se encarava. Compreende-se isto mui facilmente.
Querendo Deus
fazer dele o conquistador pacífico de inúmeros povos, concedera-lhe tudo quanto
pode encantar e atrair. As suas conquistas não deviam ser de Estados, mas sim
de almas; devia possuir o império dos corações para neles estabelecer o reino
de Jesus Cristo, recebera em abundância tudo quanto devia facilitar aquela
conquista, a mais difícil de todas, e Deus, fazendo reunir a todos aqueles dons
a sua graça toda-poderosa, nada havia que pudesse resistir ao apóstolo que
escolhera.
A beleza, que o
mundo nele tanto admirara, adquirira uma expressão inteiramente celeste, desde
que Xavier foi todo de Deus; a atração que inspirava nada tinha de humana; era,
uma impressão misturada de respeito, de admiração e de disposição para se ceder
à influência e à ascendência que se faziam sentir.
Tinha tão somente
o cuidado de chamar a si os corações que desejava conquistar e todos corriam
para ele imediatamente.
O arcebispo de Goa
beijou respeitosamente os breves do Soberano Pontífice, e devolvendo-os a
Xavier disse-lhe:
"Um núncio
apostólico e enviado imediato do Vigário de Jesus Cristo não carece de receber
dos outros a sua missão. Usai livremente dos poderes que a Santa Sé vos deu e
estai seguro de que se carecerdes da autoridade episcopal para os manter, ela
nunca vos faltará".
Os sentimentos que
o santo Núncio inspirou tão subitamente no coração do arcebispo, cresciam à
proporção que este mais de perto o conhecia, e fizeram estabelecer entre eles a
mais íntima união, que serviu prodigiosamente de auxílio aos desígnios e bons
resultados que o nosso Santo conseguiu no serviço e glória de Deus.
Reavivar
o catolicismo na Índia -
Conquanto a cidade de Goa fosse católica desde a conquista, notava-se que o
espírito do Cristianismo estava ali bastante enfraquecido.
Os portugueses,
atraídos às Índias pela cobiça, não reconheciam obstáculos à sua ambição; todos
os meios eram lícitos para aumentarem a sua fortuna, e, como de ordinário
acontece, a sede das riquezas, arrastava-os a toda a sorte de crimes. Faltava a
ciência ao clero de Goa, e era por isso nula a instrução do povo. Era chegado o
tempo de se cumprir a profecia do Padre Pedro da Covilhã, era chegado o tempo de
ser enviado por Deus o seu "vaso de eleição" àqueles países
longínquos onde os católicos só serviam- de obstáculo à propagação da fé!
Este estado de
coisas tornava a chegada do Santo muito mais apreciável aos olhos do arcebispo,
cujo maior desejo era o de secundar o seu zelo por todos os meios possíveis.
Contristado profundamente o apóstolo por ver abandonados
os sacramentos por aqueles que tinham maior necessidade de se aproximar deles,
porque estavam em contacto contínuo com os idólatras e maometanos, julgou dever
começar a sua missão pelos portugueses.
Para atrair as
bênçãos divinas sobre a sua importante empresa, entregava-se à oração a maior
parte da noite, não concedendo ao repouso senão três ou quatro horas, e mesmo
isto estendido no chão junto dos doentes do hospital e levantando-se todas as
vezes que eles fizessem o menor movimento, como o vimos praticar no hospital de
Moçambique.
Depois de algumas
horas de ligeiro sono, de ordinário interrompido, por vezes, voltava às
orações, e ao raiar da aurora oferecia a santo sacrifício. Era tão vivo o seu
fervor no altar, tão abundantes as lágrimas que vertia, que impressionava em
extremo, os assistentes:
“Sinto uma
sensação tão extraordinária e agradável quando ajudo à missa ao Santo
Padre", dizia Antônio Andra, soldado português, que quisera podei
ajudar-lhe todos os dias.
Em seguida à missa
ia o nosso Santo dar os bons dias aos doentes dos hospitais, aos quais
abraçava, prestando-lhes alguns cuidados è falando-lhes de Deus, que era
conhecedor de todos os sofrimentos, assim como abraçava e tratava os leprosos
com a mesma dedicação e a mesma ternura e caridade.
Depois de ter
mendigado para eles alguns alimentos mais delicados do que aqueles que de
ordinário lhes davam, considerava-se muito feliz por lhes levar com que
pudessem satisfazer os seus desejos; então o seu rosto angélico irradiava
alegria e abraçava mais uma vez os seus pobres queridos agradecendo à bondade
divina pela consolação que experimentava.
Concluídos estes
trabalhos, visitava os presos, e dali, com uma campainha na mão, percorria as
ruas da cidade, convidando e mesmo suplicando aos chefes de família a mandarem
seus filhos è seus escravos à instrução que ia administrai-lhes:
"Fiéis
cristãos, dizia ele com a- mais penetrante expressão, fiéis cristãos, mandai
vossos filhos e vossos escravos, a fim de que eles aprendam a santa doutrina de
Jesus Cristo! -Eu o suplico, mandai-os pelo amor de Deus".
As crianças
corriam a cercar o Santo Padre, logo que ouvissem a campainha; beijavam-lhe as
mãos, testemunhavam-lhe as mais ternas e afetuosas carícias, e o seguiam à
medida que ele ia passando por suas casas, de modo que os primeiros que a ele
se juntavam acompanhavam-no a dar a volta à cidade, e assim chegava à igreja
escoltada por alguns centos de crianças.
Era belo, era
comovedor ver-se aquele jovem Padre assim cercado daquelas inocentes crianças
que lhe tributavam tão grande amor como natural veneração. Todas elas recebiam
a instrução com igual vontade e a repetiam a seus pais. Iam até fazer-lhes
observar quanto o seu procedimento estava em oposição com os preceitos da
religião, o que ocasionava sérias reflexões aos pais.
Quando chegavam à
necessidade de fazer respeitar a autoridade paternal, sentiam a importância de
não dar lugar às insubordinações dos filhos, pelos exemplos contrários às
lições que lhes faziam receber. A necessidade e mesmo obrigação de manter os
filhos nos limites do dever, levou os pais a cumprirem eles próprios, os seus e
a correrem para junto do santo apóstolo, que lhes administrou instrução
especial e onde os pobres pecadores se desfaziam em lágrimas.
Vimos já, na carta
do nosso Santo, que ele só não podia satisfazer às confissões, que tão
numerosas eram elas; em seis meses a cidade achava-se transformada a ponto de
se não poder reconhecê-la. Todos queriam confessar-se a Xavier, a fé voltara
viva e fervorosa, era, finalmente, uma regeneração completa.
O vice-rei, que
tão extremosamente estimava o Santo Padre, dava os mais belos exemplos e
secundava com todo o seu poder o zelo apostólico de Xavier. Uma vez por semana
acompanhava-o na visita dos hospitais e das prisões, dando a todos os doentes e
encarcerados esmolas e consolações.
Goa tornara-se uma
cidade santa.
D. Miguel Vaz,
vigário geral do arcebispado, disse um dia a Xavier, quando este lhe
significava o desejo que tinha de estender as suas conquistas
- Meu Padre, a
costa oriental, desde o cabo Comorim até à Ilha de Manaar, oferece um vasto
campo para satisfazer o vosso zelo. É um povo de pescadores chamados Paravás,
constantemente inquietados pela invasão dos Mouros e que, tendo sido socorridos
contra eles pelos portugueses, se fizeram baptizar para agradar e satisfazer os
seus protetores; mas têm de cristãos só o nome, nada sabem do Cristianismo e
solicitam instrução e luz.
- Eu para ali
parto, caro senhor!...
- Aquela pobre
gente acha-se muito disposta a receber a luz do Evangelho, e vós podeis ali
fazer maravilhas com o zelo que vos anima; porém devo prevenir-vos, meu Padre,
que é aquele o país o mais pobre que se conhece. Estrangeiro algum tem ainda
podido resignar-se a estabelecer-se ali. Os mercadores só para lá vão,
anualmente, na época da pesca das pérolas; devo ainda acrescentar que os
calores são ali intoleráveis para os europeus.
Despedidas
para nova missão além da Índia: com os pobres Paravás - Mas eu espero que Deus me dará as
necessárias forças para lhes resistir, senhor, respondeu Xavier. Quando ele me
enviou às Índias, conhecia os diversos climas; deposito pois toda a minha
confiança n'Aquele que me mandou, e vou partir.
O santo apóstolo
deixou D. Miguel Vaz e foi pedir o consentimento do vice-rei, que quis retê-lo
e mandar o Padre Paulo de Camerini para as Costas dos Paravás; mas teve de
ceder à firmeza de Xavier, na qual julgava ouvir a voz de Deus. Em seguida deu
o nosso Santo as suas instruções aos dois Padres que deixava em Goa;
despediu-se afetuosamente dos seus doentes e leprosos, prometendo voltar para
os ver; abraçou-os e abençoou-os derramando lágrimas pela sua compungente dor
recomendou-lhes que obedecessem à voz dos seus irmãos como à sua própria, que
amassem a Deus sobre todas as coisas, que orassem por ele e pelo bom resultado
da missão que ia empreender, prometendo-lhes lembrar-se deles todos os dias no
santo altar.
Os soluços
interromperam por vários vezes o caritativo Padre, que, depois de ter recebido
deles as mais sinceras e consoladoras promessas separou-se dos seus queridos
doentes, ouvindo ainda de longe os gritos de consternação que a sua partida
arrancava aos seus corações.
Igual cena se
renovou em cada prisão, e o coração de Xavier estava dilacerado!
Concluídas todas
as despedidas, foi ele receber a bênção episcopal e embarcou, a 17 de Outubro
de 1542, levando consigo Francisco Mancias e dois jovens indígenas, discípulos
do colégio de Goa.
O vice-rei quis
oferecer-lhe muitos presentes; porém ele não aceitou senão uns sapatos e um
sobretudo de peregrino, de fazenda das mais ordinárias. Quanto às provisões de
boca, foi absoluta, como do costume, a sua recusa; não quis dever o seu
sustento senão à caridade da equipagem.]
Próxima partida para o Cabo de Comorim com alguns clérigos indígenas,
esperando lá pelos companheiros
14. Agora me
manda o senhor Governador para uma terra, onde todos dizem que tenho a fazer
muitos cristãos. Levo comigo três, daquela terra: dois, são de epístola e
evangelho, sabem a língua portuguesa muito bem, e mais da sua natural; o
outro, não tem senão ordens menores24. Creio que havemos de fazer muito serviço
a Deus Nosso Senhor. Em vindo Micer Paulo e Francisco de Mansilhas de
Moçambique, disse-me o senhor Governador que logo os mandaria para onde eu vou
[agora], que é a 200 léguas de Goa. Chama-se, a terra para onde vou, o Cabo de
Comorim25. Há-de prazer a Deus Nosso Senhor que, com o favor e ajuda das vossas
devotas orações, não olhando Deus Nosso Senhor aos meus infinitos pecados,
dar-me sua santíssima graça para que cá, nestas partes, muito o sirva.
notas:
notas:
21
Teixeira, que vivia em Goa desde 1551, chama-lhe «igreja de Nossa Senhora do
Rosário» (MX II 843). Era uma igreja votiva, prometida a Nossa Senhor em 1510
(CORREA, l.c. II 151), edificada em tempos de Albuquerque em 1511 (Goa 38; 260)
e aplicada a igreja paroquial em 1544. O edifício actual foi construído em
1544-1549
22
Donde se induz que, naquela altura, já Xavier tinha feito o Catecismo Breve
(Xavier-doc. 14).
23
O hospital S. Lázaro para os leprosos foi construído por António Camacho,
quando era Governador Lopo Vaz de Sampaio, entre 1526-1529 (Goa 38; 260).
Estava situado perto da Rua da Carreira dos Cavalos, para lá do colégio de S.
Paulo. As ruínas ainda hoje existem (SALDANHA, História de Goa II 191-192).
24
Os três seminaristas eram de Tuticorim (Xavier-doc. 19,1): dois, já diáconos, o
Gaspar e o Manuel, foram ordenados sacerdotes em fins de 1544 (Xavier-doc.
45,2).
25
O Cabo de Comorim, em sentido amplo, abrangia todo Sul da Índia: do lado
oriental, a costa da Pescaria e, do lado ocidental, a costa de Travancor.
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