quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

S. Francisco Xavier e o Estado Português da índi





Como foi referido, o Estado Português e a Companhia de Jesus iniciam em 1541, uma colaboração que tem por objectivo evangelizar a Índia. A partida poder-se-ia pensar que esta comunhão de objectivos iria levar a uma sintonia na acção entre o Estado Português na índia e a Companhia de Jesus. Contudo, a linha comum que liga a Coroa portuguesa e a Companhia de Jesus é, por vezes, muito ténue porque enquanto a Coroa portuguesa quer subordinar as necessidades das comunidades cristãs aos seus interesses, os missionários da Companhia querem salvar as almas dos nativos. O contacto com a realidade indiana vai fazer ver a Francisco Xavier que o bem estar da comunidade cristã, passa bem mais longe dos interesses do poder temporal português do que ele pensava aquando da sua partida para a índia.
Numa das cartas que escreve da Índia, Xavier afirma que a missionação não é coincidente com os interesses dos portugueses. Francisco Xavier começa por referir a ausência de portugueses nas zonas mais pobres e escreve que em Tuticorim «no abitam portugueses, por ser la tierra muy estéril en extremo y paupérrima» Para Francisco Xavier os portugueses estão unicamente nas regiões ricas, ora este posicionamento dos portugueses não coincide com a actividade evangelizadora dos jesuítas, que muitas vezes se expande para regiões economicamente muito pobres. Como escreve Francisco Xavier «En estas ciudades [Cochim e Goa] ay todolas cosas en abundancia, como em Portugal, porque son pobladas de portugueses (...) hay muchos médicos y medicinas, lo que no ay donde no habitan portugueses como donde andamos Francisco Mansillas y yo».
Rapidamente, Xavier passa da simples observação desta situação a uma efectiva crítica da separação entre a prática do Estado e aquilo que devia ser a resposta deste às exigências da missionação dos nativos.
Numa Carta a D. João III, com a data de 26 de Janeiro de 1549, S. Francisco Xavier escreve que «V.A. nom hé poderoso na Imdia pêra acrecemtar a f é de Christo e hé poderoso pera levar e possuir todas as riquezas temporais da Imdia. Perdoai-me V.A., que tam craro lhe falo». Segundo o Padre João de Lucena «em toda a costa da Pescaria, eram os pobres cristãos maltratados dos oficiais de el-rei, sem respeito do padre Francisco, cujas lembranças e repreensões podiam já menos com eles que a própria cobiça.(...) Em Goa eram favorecidos os brâmanes (casta que controlava muitos templos pagãos) e tão desamparados os que se convertiamcomo se estivera à nossa conta poupar a gentilidade e não dilatar a Igreja». E Francisco Xavier escreve indignado «dos aggravos que fazem a esses cristãos [da costa da pescaria], assim os gentios como os portugueses, não posso deixar de sentir dentro em minha alma, como he razão. Estou j á tão acostumado a ver as offensas que nestes christãos se fazem e não os poder favorecer, que é muito uma magoa que sempre commigo tenho». As críticas ao poder temporal português concretizam-se, frequentemente, nas queixas do comportamento de oficiais do Estado: «o mao tratamento que os capitães e feitores fazem aos que novamente se convertem avendo-os elles de ajudar, são imcomportabiles hé casy hum género de martírio ter paciência e ver destruir o que com tanto trabalho tem ganhado».
O poder temporal, que devia ser o principal sustentáculo da evangelização torna-se no seu principal obstáculo. Por isso Xavier procura que o trabalho dos missionários não seja confundido com o poder temporal português. A atuação do Estado é muitas vezes prejudicial para a «pregação do evangelho, porque na índia, os mouros, (...) publicamente pregavam e pregam que não tratamos da religião senão para haver o Estado. E entre os japões e chins é coisa sabida que com nenhuma outra nos faz o Demónio mais guerra, (...) não são eles [os missionários] espias nem conselheiros, nem por qualquer via ministros dos vizo-reis e capitães nas matérias das conquistas e governo e que, quanto for possível creiam de nós os infiéis, que só queremos deles as almas para Cristo e não as terras para a coroa de Portugal (...) Com esta tenção, o padre-mestre Francisco não deu nunca em suas cartas avisos nem alvitres nem pareceres para descobrimentos de ilhas, e entradas de reinos, crescimento de rendimentos ou fazendas reais, mas todo o negócio que teve com os governadores da índia foi sempre (...) sem nenhum respeito aos poderes temporais do Estado que, sobre não estar à sua conta, ele não havia que não podia ir bem, indo mal ao da religião».
Aliás, Francisco Xavier, por vezes parece querer monopolizar para a Companhia de Jesus o contacto com os nativos, defendendo, por isso, um gradual afastamento do Estado nas relações com a população indígena: «Tão longe, enfim, estava o padre-mestre Francisco de ajudar nem servir aos ministros do rei na sujeição dos naturais da índia, que para livrá-los das vexações que por ela padeciam pediu por suas cartas ao rei libertasse os novamente convertidos de toda a jurisdição de feitores e capitães. E este foi o principal ponto sobre que lhe escreveu no ano de quarenta e nove».
Numa esclarecedora carta datada de 11 de Setembro de 1544, Xavier mostra-se indignado pela falta de tacto do poder temporal português na relação com os reinos indígenas, estas não estão reguladas de forma a tornar estável o progresso da missionação. Perante a incapacidade do poder temporal, Francisco Xavier começa por revelar uma certa indignação perante a prepotência do poder português para com a população nativa: «Agora me vierão três gentios, homens d'el-rey com queixumes que hum português prendera em Patanão hum criado deste príncipe de Iniquitribim [aliado dos portugueses] (...) se alguma cousa lhe dever esse gentio, que venha diante deste príncipe a requerer justiça e que não alevantem a terra mais do está alevantada: por causa destes nós nunca fazemos mais.(...) Parece-me, deixarei de hir ver a el-rey (...) esta gente está agastada, por causa que assim os deshonrão e os prendem em sua terra (...) porque, assim como parecera mal que hindo hum gentio donde estão os portugueses, se aprendessem lá hum portuguez estando lá o capitão e o trouxessem à sua terra firme, assim estes lhes parece mal prender hum portuguez a hum homem em sua terra delles e leva-llo ao capitão; tendo elles justiça na tierra e estando de paz» .
Duas conclusões se podem tirar da leitura deste extracto. Em primeiro lugar parece estar presente uma certa indignação pela forma como uma civilização estrangeira pretende impor um modelo de justiça eventualmente estranho à noção de justiça da população indígena. A segunda conclusão que se pode retirar da leitura desta carta de Francisco Xavier, é de que o conceito de justiça é subvertido em função das contingências da missionação. Xavier não está preocupado com o fato daquele nativo ter cometido um crime, para o jesuíta, o mais grave da situação é que o progresso de cristianização naquele reino pode estar comprometido com a prisão do criado do príncipe. Para demonstrar como o conceito de justiça está subordinado à evangelização, numa outra carta a Francisco de Mansilhas Xavier escreve que «A Cosme de Paiva [oficial regi a udareisa dezencarregar a conciencia dos muitos roubos que ." > Costa tem feito, e dos males e mortes de homens que por muia sua cobiça se fizerão em Tutucorim; (...) E assim lhe direis da minha parte, que o avizo que tenho de escrever a El-Rey suas malfeitorias, e ao Senhor Governador para que o castigue, e ao infante Dom Henrique, que por via de Inquizição castigue aos que perseguem aos que se convertem a nossa santa ley e fé». Agora, neste caso particular, Francisco Xavier j á defende o exercício da justiça, porque a prisão de Cosme de Paiva é essencial para o progresso da missionação. É curiosa a relação da Companhia de Jesus com o poder temporal.
Ainda que nas cartas de Xavier, e em historiografias de jesuítas, se defenda uma separação da atividade da Companhia de Jesus das ações da Coroa portuguesa, não se dispensa a existência do poder civil. Há, claramente, uma noção utilitária do Estado Português. Através da leitura da correspondência de Francisco Xavier, e das Histórias de Lucena e Sousa, nota-se que é na proteção a missionários e neófitos (novos cristãos) que o poder temporal justifica a sua autoridade sobre as populações. A presença do poder temporal português era tanto mais importante quanto «importava, também, saberem os príncipes infiéis que tinham os cristãos na índia quem os defendesse e tomasse de suas afrontas e vexações a devida satisfação» . Imediatamente após um ataque dos muçulmanos aos cristãos da costa da pescaria Francisco Xavier «escreveu ao governador Dom Estêvão, ele houve a armada de socorro e se embarcou nela com outros sacerdotes, a qual foi de tanto efeito que, em poços dias, os mouros ficaram castigados, a terra pacífica, os paravás senhores absolutos da pescaria, que por antigo direito era sua».
Neste contexto os critérios que definem um bom governador não são a sua competência militar nem diplomática, mas antes a sua política religiosa. Parece que Martim Afonso de Sousa se encontrava nesta categoria, porque segundo Xavier «sí su Santidat supiesse quanto acá el Senor Governador le sirve, agradecelle ya los servicios que acá haze pués tanto mira por sus ovejas, Y tan solicito es en vigilar sobre ellas que los ynfiéles, lupi rapaces, non devorent eas (...) que le de su sanctissima gratia para siempre preserverar en bién» .
Nas cartas de Xavier, para além das múltiplas referências relacionadas com a atividade missionária, encontramos passagens que nos dão a conhecer um Francisco Xavier mais distante da imagem do soldado cristão incansável na luta contra a idolatria. Muito longe das contínuas exortações que faz para que o missionário seja incansável na expansão da fé, estão manifestações de resignação com a situação existente. Em Maio de 1544 numa carta a Francisco de Mansilhas, que também trabalhava nos cristãos da costa da pescaria, Francisco Xavier escreve as seguintes palavras: «Rogo-vos muito que não vos agasteis por nenhuma cousa com essa gente tão trabalhosa, e quando vos virdes com muitas occupaçoens, e que a todos não podeis satisfazer, consolaivos fazendo o que podeis; e dai muitas graças ao Senhor (...)»  Numa outra carta afirma que «se não acabais com eles tudo o que quereis, contentai-vos com o que podeis, que assim faço eu» .
Noutras cartas essa resignação chega a dar lugar à frustração. Em Setembro de 1544 escreve: «por não ouvir estas couzas, e também por hir aonde dezejo à terra do Preste João, donde tanto serviço se pode fazer a Deos, Nosso Senhor, sem ter quem nos perigos, não será muito que tome aqui em Manapar hum tone [espécie de embarcação] e me vá» . Noutra carta, escrita mais tarde, em Novembro de 1544, diz: «Eu estou enfadado de viver, que julgo ser melhor morrer por favorecer a nossa ley e fé, vendo tantas offensas quantas vejo fazer sem acudir a ellas».
Finalmente uma alusão à importância da correspondência de S. Francisco Xavier para a estruturação da missionação jesuíta. A correspondência tem uma função basilar na atividade evangelizadora da Companhia. Como principal meio de comunicação, a carta é a forma pela qual os jesuítas se informavam mutuamente do progresso da missionação. Esta ampla comunicação entre os jesuítas, não se explica unicamente por uma razão prática.
Segundo João de Lucena «nasceu este santo costume de comunicarem os servos de Deus uns aos outros o que fazem por serviço do Senhor com a mesma Igreja e com o próprio Evangelho, não somente por seu nome, que quer dizer boa nova (...) mas porque j á quando os discípulos mandados por Cristo tornavam de o pregar, refere São Lucas que lhe contavam tudo quanto deixavam feito, donde tirou São Basílio a regra septuagésima que diz: os que por divino benefício fizeram algum bem devem fazê-lo saber aos outros para maior honra e glória de Deus».
O Padre João de Lucena acrescenta ainda, a este propósito, que «Conformando-se com o tal espírito que os sagrados apóstolos sem dúvida tomaram de Cristo nosso redentor, esta sua mínima Companhia nenhuma coisa é nela mais antiga que as cartas com que damos parte uns aos outros do que Nosso Senhor é servido obrar por seus, posto que indignos instrumentos. E, ainda que o autor desta Constituição, como todas as mais fosse nosso padre Inácio de Loiola de gloriosa memória, contudo entre as cartas de semelhantes argumentos, as primeiras que nós sabemos foram do padre-mestre Francisco escritas de Goa em Setembro do ano de quarenta e dois, que parece deram o exemplo à Constituição que muito depois fez o padre Inácio e introduziram o costume por toda a Companhia» .

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