Ângelo vai
contar-nos, ele mesmo, como a divina Providência o levou ao conhecimento do
Cristianismo e ao desejo de abraçá-lo.
PAULO ÂNGELO,
PRIMEIRO CRISTÃO JAPONÊS AOS PADRES E IRMÃOS DA COMPANHIA DE JESUS EM ROMA
Goa, 27 de
Novembro de 1548.
Que a paz e a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo sejam convosco! Amem.
Já que foi do agrado daquele que me criou procurar-me como a ovelha
perdida no meio das trevas, para me chamar à luz do seu Evangelho arrancar-me
das prisões da morte e dar-me a liberdade e a vida, julgo-me obrigado a
recorrer a vós todos para render a sua divina Majestade ações de graças
proporcionadas aos grandes favores com que a sua misericórdia infinita se
dignou agraciar-me.
Compenetrado e confundido pela minha incapacidade, peço-vos, meus
queridíssimos irmãos, que suprais a minha indignidade, e para vos convencer
dela, vou expôr-vos aqui os meios extraordinários pelos quais o Pai celeste me
conduziu ao grêmio da Igreja do seu Filho único e muito amado.
Estando ainda no Japão, há já alguns anos, e perseguido por inimigos
pessoais que conspiravam contra a minha vida, refugiei-me num convento de
bonzos.
Um navio português veio ao mesmo tempo fundear no porto, próximo do qual
se achava situado aquele convento.
Era precisamente o navio de Álvaro Vez que outrora conhecera, e que se
apressou em oferecer-me um asilo a bordo; porém, como os seus negócios o
demorariam naquele ancoradouro por muito tempo, para a minha segurança teve a
bondade de escrever a um dos seus amigos que estava num porto muito afastado,
rogando-lhe que me recebesse.
Munido daquela carta, despedi-me de Álvaro, e parti imediatamente para o
porto em que devia encontrar Fernando Álvares, a quem era dirigida a
recomendação de que eu era portador. Cheguei ali de noite, e por engano remeti
a carta a Jorge Álvares, capitão dum outro navio, que me recebeu com amizade,
dizendo-me que me levaria consigo e me apresentaria ao reverendo Padre
Francisco Xavier, seu amigo íntimo. Consenti nisso.
Durante a viagem, quer fosse para me familiarizar com a idéia de ver o
Padre e inspirar-me de antemão estima e afeição por ele, quer fosse para me dar
algumas noções do Cristianismo, Jorge, encaminhava sempre a conversação para Xavier,
para as suas virtudes suas grandes ações e efeitos maravilhosos da sua palavra.
Em resultado disso, concebi dois ardentes desejos: o primeiro de
conhecer pessoalmente o ilustre e santo personagem, cujas virtudes e encantos
me eram exaltados em termos tão magníficos, e o segundo de estudar seriamente
uma religião que produz homens tão perfeitos.
Achava-me já tão convencido da verdade daquela religião, que me teria
deixado batizar logo que cheguei a Malaca, se o senhor vigário geral não
tivesse rosto no meu casamento um obstáculo àquela graça, por isso que não me
devia ser permitido, depois de batizado, viver com uma mulher idólatra.
Causou-me isso um grande desgosto, mas a este desprazer se acrescentou um outro
não menos pungente.
Não desanimar nas dificuldades: tente
denovo - Eu viera ver o Padre Xavier e ele achava-se ausente! A porta da
Igreja era-me fechada, e aquele que teria podido acalmar e adoçar a minha dor
não estava ali!
Desconsolado, desanimado, resolvi voltar para o Japão: a monção era
favorável embarquei em um navio que devia deixar-me num porto da China,
distante somente duzentas léguas da minha pátria. Cheguei àquele porto e ali
encontrei um barco que partia para o Japão; passei para ele, e fazendo-se à
vela em seguida, contava tornar a ver o meu país com seis ou sete dias de
navegação.
Mas Aquele que governa tudo e que dirige as coisas de modo que fiquem
cumpridos os seus desígnios, me levou de novo ao ponto donde tinha partido, por
meios que só d'Ele são conhecidos.
A vinte léguas das costas do Japão (= a 120 km), uma tempestade das mais
violentas ameaça-nos dos maiores perigos durante quatro dias, e acaba por
lançar-nos sobre as costas da China, que havíamos deixado.
O perigo que eu acabava de passar, trouxe-me muito sérias reflexões.
Achava-me fatigado, inquieto, ralado de remorsos, quando vejo dirigir-se para
mim Álvaro Vaz Foi grande a sua surpresa por me encontrar na China, quando me
supunha em Malaca.
Contei-lhe as minhas aventuras, e o perigo pelo qual acabava de passar e
de escapar-me; achava-me ainda todo molhado e coberto de espuma do mar.
Ofereceu-me de novo o seu navio e convenceu-me a tentar ainda a viagem para
Malaca.
Lourenço Botelho uniu-se a ele, e ambos me asseguraram que eu ali
encontraria o Padre Francisco Xavier, que ele me consolaria de todos os meus
desgostos e sofrimentos, que me instruiria, me batizaria, me poria no seminário
de Goa e me faria ir depois para o Japão com os Padres da sua Companhia.
Segui os seus conselhos e voltei com eles a Malaca. A primeira pessoa
que vi quando desembarquei, foi Jorge Álvares! Experimentamos grande alegria
por nos tornarmos a ver, e no mesmo instante ele me levou à catedral, onde o
Padre Xavier abençoava um casamento. Depois da cerimônia, o capitão
apresentou-me a ele, dizendo-lhe quem era e por que vinha.
Atento e com os olhos fixos no Padre Xavier, vi o seu amável semblante
expandir-se numa grande e santa alegria. Depois voltando-se para mim olhou-me
ternamente, falou-me com tanta doçura e testemunhou-me tão grande afeto, que me
cativou o coração, e julguei-me muito feliz por ver a minha extrema ternura tão
completamente correspondida! Na sua comovedora voz, e na doce expressão,
reconheci a divina Providência, admirei o seu poder, e adorei os seus
impenetráveis decretos!
Preparação do ateu a evangelizador em terra
pagã - O Padre Xavier destinou-me desde logo para o seminário de Goa; mas
não permitindo a sua visita aos cristãos de Comorim acompanhar-me, enviou-me
antes dele, no navio de Jorge Álvares. Ele seguiu-nos de perto, porque nós
chegamos no dia 1 de Março, e ele a 4 ou 5 do mesmo mês [essa data pode ser 20
de março, segundo alguns pesquisadores]. Parecia que os ventos e o mar se
combinavam para satisfazer os meus desejos.
Eu suspirava por ele e suspirava ao mesmo tempo pelo batismo, e os meus
votos foram bem depressa cumpridos. Ele chegou; a minha instrução concluiu-se
no colégio, fui batizado na manhã do Pentecostes, com os dois domésticos que me
haviam acompanhado do Japão.
É esta a minha história. Espero que com a graça de Jesus Cristo, Senhor
e Criador, de todas as coisas nosso Redentor, que sofreu e morreu na cruz para
nos salvar, ela reverta não somente em meu proveito pessoal, mas também em
glória de Deus, na propagação da fé e em honra de toda a Igreja.
Quanto a mim julgo-me bem recompensado de todos os meus sofrimentos!
Gozo do maior bem que jamais ousava esperar. Cada dia a fé enche a minha alma
de nova luz; a verdade e a santidade do Evangelho desenvolvem-se cada vez mais
a meus olhos; os benefícios com que tenho sido favorecido, aqueles que
constantemente recebo as alegrias, as consolações de que a minha alma se acha
cheia, tornam-me palpável, para assim dizer, o que eu não podia entrever.
Parece-me que adquiri uma vida nova, novas faculdades, e, finalmente,
que Deus me criou de novo. Aprendo o que me ensinam com uma rapidez que me
admira e me confunde. Foi-me necessário tão poucos dias para eu ler e escrever
em língua portuguesa, que a aninha inteligência parece um prodígio que me faz
espantar.
Decorei textualmente palavra por palavra, toda a explicação do Evangelho
de São Mateus que o Padre Cosme de Torres me repetiu por duas vezes, e
traduzi-a em língua japonesa.
O Padre Xavier propõe-se ir para o Japão e promete associar-me aos seus
trabalhos.
Orai, meus irmãos! rogai a Deus que se digne abençoar-nos. Pedi para mim
um reconhecimento, uma gratidão proporcionada aos benefícios que tenho
recebido! eles são tão grandes que Deus se verá, para assim dizer, obrigado a
dar-me forças para sofrer a morte confessando o seu santo nome, para não me
deixar na necessidade de ser ingrato.
O meu coração diz-me que não morrerei sem ter visto no Japão um colégio
da vossa Companhia para o progresso da fé e para glória de Deus, pela qual eu
sou, meus Padres, vosso servo.
Paulo de Santa-Fé.
Depois do seu batismo, pedira Paulo Ângelo a Xavier permissão para usar
o apelido de Santa-Fé, em memória do colégio onde encontrara a felicidade;
autorizado pelo santo apóstolo adotou aquele nome e não o deixou nunca.
Um dos seus domésticos chamou-se João e o outro Antônio; eles imitavam
perfeitamente seu amo no fervor da sua piedade e na prática de todas as
virtudes cristãs.