SONHO
*De estudo acadêmico: fonte imparcial e crítica
Entre os retratos de milagres do altar de Salvador (*Catedral Basílica), há uma imagem que remete mais diretamente a uma das visões do santo, elemento importante junto à morte (e aos milagres) em sua hagiografia visual. A visão escolhida era uma bastante recorrente e era retirada das primeiras narrativas da vida de Xavier. Era um sonho que tivera em Roma no qual se via carregando um homem gigantesco e, ao acordar, estava com o corpo dolorido e cansado como se tivesse mesmo suportado o peso daquele imenso gentio. Difundido, a partir do relato do padre Diego Lainez pelo qual o santo dissera-lhe sentir moído por ter, em sonhos, levado um índio muito pesado às costas que não conseguia quase levantar, o sonho ganhou melhor forma e papel central no restante da hagiografia na escrita de Lucena (como de outros biógrafos que o seguiram). Contudo, Lucena adicionou elementos, qualificando o dito índio sonhado como que parecendo um etíope, isto é, africano: "Índio negro, como os da Etiopia".51 Na explicação de Lucena, a interpretação do sonho dizia ser aquela imagem a revelação de sua luta pela conversão dos gentios, no qual o Índio seria a própria figura das Índias, como se chamavam as possessões asiáticas dos portugueses, e palco no qual Xavier atuaria. Para Ines Zupanov, contudo, esse atributo (etíope) dado por Lucena e outros biógrafos portugueses poderia implicar uma tentativa de também incluir na visão a África, onde a missão jesuítica e o domínio português, na virada do século XVI para o XVII, passava por reveses.52 Se esse movimento fizer sentido, a descrição do sonho somada a sua interpretação faziam com que o sonho de Xavier abarcasse África, Ásia e América, todos os três a serem subjugados pelo Império Português e convertidos pelos jesuítas para maior glória de Deus.53 A partir dela, o sonho foi divulgado e foi vertido da letra para as tintas, porém muitas vezes permanecendo com essa dubiedade de como era o tal índio.
Devemos voltar um pouco, entretanto, e lembrar que o sonho do índio não apareceu nas séries de Regnartius nem de Reinoso, ainda que, em ambas, haja menção indireta a outro sonho, o dos trabalhos, também presente em Lucena. Xavier estava em Roma, trabalhando em um hospital "em seruiço dos enfermos", quando em uma noite seu colega de câmara, padre Simão, acordou com ele gritando enquanto dormia, "Mais, Mais, Mais".54Xavier só revelou o sentido da visão quando se despedia de Simão em Lisboa, ao embarcar para o Oriente:
Eu vi ali, ou em sonhos, ou velãdo (Deos o sabe) grãdissimos trabalhos, fadigas, & apertos de fomes, sedes, frios, caminhos, naufragios, treições, perseguições, & perigos, que se me offereciam polo divino serviço, & amor. E o mesmo Senhor me dava entam graça pera me fartar delles, & e lhe pedir mais, & muytos mais, com aquellas palavras, que ouvistes. E assi espero em sua divina bondade, que me comprirá liberalmente nesta jornada os offerecimentos, que ali me fez, & os desejos, que ali me deu.55
O capítulo no qual é narrado o sonho dos trabalhos, e também o do índio, trata de "Como Deos o [Xavier] escolheo pera a missam na India", indicando a importância da visão (seja sonho ou visão noturna, como dizia Xavier) na trajetória santa do missionário e que seu percurso se fundava em sofrimento, peregrinação, perigo.
Na série da sacristia de São Roque, em Lisboa, há, entre as 20 telas, uma na qual Xavier era retratado andando atrás de um cavalo no qual estava montado um homem de vestes e feições orientais (Figura 4).
Xavier, com uma auréola de luz, na parte inferior esquerda, aparecia com a mão em posição de bênção olhando para o cavaleiro que se virava para ele, enquanto no canto diametralmente oposto aparecia entre as nuvens a figura de Deus que, cercado de luzes, se inclinava em direção à Xavier. Essa disposição formava como que um triângulo, no qual a iluminação divina chegava à Xavier, santificado por uma auréola, diretamente de Deus criador e que a transmitia, humildemente de pés descalços, para o soberbo Oriental em cima de seu cavalo e que estava verticalmente abaixo da imagem divina. Para além da metáfora do trabalho catequético como intermediário da presença divina no mundo, havia um elemento que interessa aqui e que reforça a dimensão profética: da boca de Xavier saiam os dizeres "Mais, Mais". Aquela imagem era uma representação pictórica dos sonhos narrados por Lucena e lembravam pelo exemplo de seu irmão célebre o pregador de qual a sua missão e qual o objetivo de sua Ordem. A visão dormindo dos trabalhos futuros de Xavier consubstanciava-se numa iconografia da humildade que revelava, entretanto e por isso mesmo, a participação na Glória e Graça divinas.
O interessante dessa imagem em São Roque é que condensaria dois episódios, se a compararmos ao programa iconográfico estabelecido no ciclo de Regnartius: o dos trabalhos, presente na terceira gravura da série (numa imagem na qual Xavier segura a cruz rodeado por anjos, e a legenda informando que ele pedia mais), e o do percurso até Meaco, atual Quioto, que realiza na condição de lacaio de um nobre japonês, retratado na sétima gravura (na qual, à direita, anda descalço atrás de um homem de costas, com chapéu, montado num cavalo, à esquerda). A sétima gravura de Regnartius, mais até do que a terceira, tornou-se composição recorrente em diferentes séries. Aparece em alto-relevo no túmulo em Goa, de 16361637, construído a partir dos planos e desenhos do jesuíta italiano Marcelo Mastrilli; num livro de devoção, Cultus Sancti Francisci Xaverii, impresso após a morte de Mastrilli, em Viena, repleto de gravuras, que se seguiam a modo de emblema, cada uma apresentada sob um mote que indicava a virtude do santo com uma legenda explicando a cena, sendo que nesta se elogiava a paciência de Xavier; num ciclo de gravuras dos Países Baixos, da segunda metade do século XVII, reimpressa por diferentes gravadores; em azulejos no Hospital de Arroios, no século XVIII em Lisboa; no ciclo de 30 painéis a óleo do convento de La Merced, em Quito, pintados em meados do século XVIII.56
De qualquer modo, o sonho não é evidenciado em nenhum desses dois ciclos iniciais. Sequer o é, na verdade, pelo próprio relato de Xavier, que fica em dúvida, nas palavras de Lucena, se vira em "sonhos, ou velãdo". Podemos aqui pensar inicialmente que essa elipse da visão onírica (ainda que central na narrativa, pois sinal da eleição do santo para seu trabalho missionário no Oriente) tivesse a ver com o estatuto ambíguo que o sonho possuía. Ainda que canal de comunicação com o divino presente na Bíblia e reconhecido por Agostinho, Aquino e outros, o sonho era também uma das formas de visão mais simples e menos confiáveis. Como pertencia às visões imaginativas, mediada por imagens, e não às diretamente intelectivas, por pura inspiração, como as visões consideradas superiores, o sonho profético dependia das semelhanças e analogias das coisas corpóreas, o que implicava um véu entre o vidente e a revelação. Além disso, era muito suscetível aos delírios aleatórios das imagens soltas do discernimento durante o sono. Na classificação de Aquino, desenvolvida a partir da hierarquia de Agostinho, a visão onírica era o degrau mais baixo das visões proféticas propriamente ditas, logo acima das inspirações divinas que movem os instintos. Como explicado na Suma teológica, a visão tida durante o sono era inferior pois os sentidos dormentes não permitiam nem uma compreensão completa nem um discernimento real. O sono, por sua vez, como metáfora da morte, não primava com a ideia de vigilância e disposição requeridas a uma vida cristã.
Paralelamente, foi durante o século XVII que o sonho ganhou espaço como figura eficiente de explicação seja dos limites do conhecimento humano (Descartes) seja da transitoriedade da vida terrena e de seu caminho para a morte (Calderón, Shakespeare). O sonho era um lembrete constante de que as coisas vividas eram figurais, pois mero sinal da verdade sobrenatural, que seria enfrentada (eternamente) após a morte. A metáfora da vida como sonho, expressa no título de uma peça de Calderón, emblematizava uma cultura na qual a teatralidade e a farsa eram entendidas como figuras da transitoriedade e fugacidade do mundo terreno. Exatamente por seu estatuto contrário à vigília e pelo primado da imaginação, o sonho, na gramática tridentina e católica, ganhava força, em termos figurais, imagéticos e retóricos, como exemplo máximo do que era importante na vida (o verdadeiro despertar), e aviso moral do que deveria se evitar (as delícias mundanas). Ao mesmo tempo, se houvesse uma profecia, a visão dormindo ganhava estatuto divino (e de verdade, portanto), sem perder seu efeito
Hill: The Jesuit Institute of Boston College, 2006, p.37; TORRES OLLETA, Maria Gabriela. Redes iconográficas, p.560, p.729. Cf. RODRÍGUEZ G. DE CEBALLOS, Alfonso. Las pinturas de la vida de San Francisco Javier del Convento de la Merced de Quito: fuentes gráficas y literarias. Anales del Museo de América, n.15, p.89-101, 2007.
verossímil de mover e deleitar as audiências com os jogos engenhosos entre vigília, sono, sonho, despertar, e ensiná-las sobre o que importava de fato na existência humana - perseguir a transcendência divina. A indistinção e a conversibilidade entre uma visão em sonho ou acordada eram recorrentes nas hagiografias e na produção letrada seiscentistas, ora para dar maior certeza ao estatuto profético da visão, ora como dispositivo retórico-poético da transitoriedade da vida desperta. Se por um lado havia a busca em definir e separar os tipos de visão e em distinguir a verdadeira da falsa profecia, o embaralhamento e a indistinção entre sonho e visão eram eficazmente empregadas como figura da relação entre vida e morte mediada pela presença divina.57
Não nos parece descabido, nesse sentido, que cada vez mais os sonhos aparecessem nos ciclos e nas representações imagéticas do santo, reforçando, por vezes e agora positivamente, a indistinção entre visão acordada e dormindo descrita por Lucena. De inexistentes nos dois primeiros ciclos mais importantes, começam a ser presentes, enfatizando a visualização das cenas sonhadas, por meio dos índices das visões oníricas (o índio e os símbolos dos trabalhos). Nessa direção, vale notar que um outro sonho de Xavier pouco foi representado: aquele no qual demônios o tentam com uma imagem impura que machucam sua castidade, sua reação de repúdio é tão violenta que "aos primeiros acenos della a rebateo com tanta violencia de espirito, que lhe saltou das veas o sangue puro".58 Apesar do tema das tentações demoníacas (e sua resistência) ser recorrente nas hagiografias jesuíticas e ter certa veiculação imagética, por meio de gravuras , em especial a partir da série imagética da vida de Inácio, impressa em 1609 e desenhada por Rubens,59 uma das poucas imagens que localizamos da visão pecaminosa foi no livro Cultus Sancti Francisci Xaverii,60 que ao modo do Vitade Inácio, contava a vida de Xavier por imagens, mas com o objetivo mais explícito de dar elementos virtuosos para sua veneração.
Diferentemente de Inácio que é atacado com punhos e paus pelos demônios musculosos enquanto permanece inerte na cama de sua cela, na gravura vienense, Xavier é retratado deitado no chão, ao pé do altar, fazendo um sinal com as mãos para afastar o diabo alado de feições femininas e seu companheiro de tentações sexuais, Eros, enquanto olha para o outro lado cuspindo sangue e com a cabeça em direção a um livro, que supomos ser a Bíblia. Enaltecem-se sua reação física a uma visão imaginária, causada por influxo maligno e exterior.61 Do mesmo modo, na visão dos trabalhos, ressalta-se seu grito, que foge ao campo do sonho pois ecoara no quarto despertando Lainez, e por fim, no sonho do índio, acorda com o corpo moído e magoado, efeito de ter carregado e lutado dormindo. Nos três sonhos - (1) em que aparecia lutando e carregando às costas um índio gigantesco (2) conhecendo as desgraças que sofreria em sua missão, mas mesmo assim pedindo "mais, mais, mais" e (3) sendo tentado pelo demônio com imagens pouco castas - a dimensão física, corporal era presente, não só confirmando o efeito dos sonhos e sua verdade, pois presente no mundo da vigília, dos despertos, mas também indicando o poder da imaginação e das imagens e o cuidado que se deveria ter - percepção e alerta presentes nos próprios Exercícios espirituais de Loiola. Aqui talvez encontremos uma hipótese para a preferência de representar visualmente o sonho do índio: mais do que os outros dois, a cena de Xavier carregando alguém nas costas traduzia melhor a relação entre imagem e corpo, e a necessidade de controlar ambos, fosse dormindo, fosse acordado. Entretanto, as formas de construir plasticamente essa visão foram as mais variadas, sem um padrão iconográfico recorrente, e, mais importante para o presente artigo, foram ficando mais comuns nas séries pictóricas ao longo dos séculos XVII e XVIII.
A primeira representação do sonho do índio que identificamos está num dos panfletos compostos para a divulgação dos feitos do jesuíta no Oriente, tanto como divulgação dos feitos exemplares para os jesuítas quanto antes ainda como esforço para sua beatificação. Nessa gravura de 1605, o retrato de Xavier ocupa o centro, com as mãos ao peito, iluminado pelos céus, sendo o retrato cercado por 14 quadrinhos representando cenas de sua vida, entre elas, o sonho.62 O episódio está, contudo, entre as quatro menores representações, colocada entre duas imagens maiores. Reapareceu somente em 1622, produzida em meio às festas de sua canonização, pela mesma ocasião da série de Regnartius. Figurava em local nobre, no óleo produzido, por Anthony Van Dyck para ser disposto na Igreja dos jesuítas em Roma, Il Gesù. Nesse óleo, como no folheto de 1605, a cena apresenta-se mais uma vez enquanto um detalhe, no canto inferior esquerdo de uma tela tomada também em sua maior parte por um retrato de Xavier, com as mãos ao peito, com raios vindos dos céus em sua direção, agora coroado por anjos por uma grinalda de louros e flores. No detalhe do sonho, visível em certa medida pela grande dimensão do quadro (3,46 x 2,14m), entretanto, o índio negro, etíope virara uma figura de um velho barbudo vestido à indiana, semelhante a um brâmane, sustentada por Xavier. Na leitura de Van Dyck, que deve ter sido informada e direcionada pelos jesuítas romanos, dada a importância não só do santo mas da igreja e do altar que ocupava em meio às festas em sua celebração, a classificação "índio" servia para qualquer uma das Índias, e mais do que isso, na sua tradução visual remetia ao Oriente, palco de atuação do então santificado "Apóstolo do Oriente". O óleo depois, em 1679, foi substituído no altar da Il Gesù pela imagem da morte de Xavier, pintada por Maratti. A mudança da cena do altar pode indicar duas coisas: o reforço da ideia do martírio e sua analogia com a imagem de Cristo (mais fortes do que a remissão ao sonho) bem como a inserção da presença americana na iconografia xavieriana, ao trocar a figura de um brâmane ou de um indiano por, entre outros, um homem com cocar de plumas a remeter ao mundo americano.
A partir de meados do século XVII, o "índio" asiático foi traduzido, muitas vezes, numa figura ameríndia, de pela avermelhada, portando cocar, por vezes, vestindo saiote de plumas. Aparece já dessa forma na gravura "Somnium Xauerii de subsidio Indis ferendo" do Imago primi saeculi Societatis Iesu (1640), impresso da Companhia, da província de Flandres por conta do centenário de fundação. Mais uma vez um volume que trazia imagem e texto em conjunto remetendo a uma composição emblemática, forma que se casava com uma concepção retórico-teológica de analogia entre palavra e figura. Baseava-se essa concepção num entendimento da imaginação como caminho (possível) para o entendimento e o discernimento, mas também para a tentação e a perdição, razão pela qual deveria ser regulada e controlada em todas as suas formas, escritas, orais ou visuais. Nesse volume, editado na prestigiosa casa Plantin-Moretus, as gravuras apresentavam além da alma (o mote) e o corpo (a imagem), o epigrama, os versos que amplificavam o mote e se espelhavam na imagem, muitas vezes apresentada em enigma ou de modo figural ou alegórico. Na gravura em questão, os versos abaixo perguntavam se devíamos acreditar nos sonhos, para em seguida dizer que aqueles sonhos de fé eram, em parte porque resultavam do amor de Xavier pelo outro a ser convertido e pela sua missão - matéria do sonho, pois aquilo que amamos nos vêm à noite. Agora, contrário à própria imagem, referia-se ao índio não só como negro (como em Lucena) mas como mouro, adicionando outro espaço e povo à ação missionária do jesuíta.63
O índio também foi retratado com signos americanos em 1694 pelo pintor polonês Jakob Potma no afresco da igreja jesuítica de Mindelheim (Figura 5), na Bavária, região de forte devoção ao santo jesuíta.
No afresco, Xavier leva nos ombros um ameríndio de cocar vermelho e de peito desnudo, e olha para frente, pois segue Cristo que carrega às costas uma ovelha e porta um cajado de pastor, lançando um olhar para trás em direção ao missionário jesuíta. Cercando ambos uma corte de querubins e, entre eles, acima, nos céus, e na metade da pintura, a pomba do Espírito Santo. A analogia entre a figura de Jesus como bom pastor e de Xavier como missionário é bastante clara visualmente, reforçando o duplo exemplo do santo, imagem de Cristo, e imagem a ser seguida. Isso era particularmente forte, em região e época, Sul da Alemanha do século XVII, que a figura de Xavier era utilizada pela Companhia em seus esforços de propagação da fé, elevando-se altares e mesmo igrejas em sua devoção, e que muitos noviços postulavam o trabalho nas missões (e desejavam o martírio) inspirados no sacrifício do jesuíta.64 Segundo Christoph Nebgen, as cartas indipetae, com os pedidos dos jovens para o geral da Ordem, postulavam seguir a vida do santo na Ásia e, assim, de modo duplamente figural, também imitar o exemplo pastoral e de sacrifício do próprio Salvador. Não pediam pela América - ainda que a trajetória de irmãos germânicos no Brasil fosse noticiada nas cartas edificantes - à qual remetia iconograficamente o índio suportado por Xavier. De certa maneira, o esforço do programa visual (que ecoava e completava um programa de festas, textos, sermões...) nos reinos alemães católicos era para transformar Xavier de santo do Oriente em "primer 'Santo Mundial'",65 e como parte desse esforço pode ser entendido o ameríndio de Potma - ou mesmo, ainda na cena da morte, a figura emplumada na cena de pregação de Xavier, no Altar-mor da Igreja de São Francisco Xavier, em Paderborn (1694/1696), bem mais ao norte da igreja bávara. Já na América em meados do século XVIII, é com essas características que foi pintado o índio do ciclo de Quito, no convento de La Merced. A composição, porém, mistura, do lado direito da tela, o interior da cela, onde Xavier sonhou e na qual aparece de pé com o índio agarrado às suas costas tendo um querubim acima mostrando as cruzes dos seus trabalhos (plasmando aqui outro sonho, que aparece, por sua vez, na tela anterior do ciclo), e, do lado esquerdo, o cenário de seus trabalhos: curiosamente, uma terra cercada por mar, na qual estavam ajoelhados ameríndios semi-nus emplumados venerando um anjo que apontava, por sua vez, para um navio que se aproximava da Costa.66
Também por volta de 1750, a representação que está na atual Catedral Basílica de Salvador ganhou outros contornos (Figura 6).
Menos do que um gigantesco índio, ou um homem em vestes brâmanes, Xavier carrega uma figura quase púbere, negra, de carapinha, e vestido com um trajo listrado. De índio etíope, de indiano, de ameríndio, aparece-nos no painel de Salvador um garoto negro. Retorno ao "negro como etíope" de Lucena? Pode ser, já que por etíopes eram chamados os africanos escravizados no Brasil. Contudo, aqui o personagem etíope não se vestia como um índio, com cocar e penas, como em imagens dos séculos XVII e XVIII nas quais se fez plasmar os elementos "índios" com os do negro "etíope", como nas gravuras de Imago Printi, 1640, da Vita S. Francisci Xavierii Soc. Iesu, de 1690, na América no óleo de Antônio de Torres, de 1720, na Casa Professa da cidade do México, ou, já em fins do século XVIII, na gravura do italiano Stefano Piale no livro do jesuíta Filippo Salvatori sobre os "Fatti più rimarchevoli" da vida do santo.67 No óleo mexicano, há uma remissão à composição presente na Vita de 1690, que deve ter possivelmente servido de modelo para Torres.68 Lá estão não só o africano com cocar e saiote de plumas, ainda que com uma sombrinha senhorial, mas também, ao fundo, separados num segundo plano por um rio da cena principal do sonho do santo, índios armados com arcos e flechas em torno das cabanas de sua aldeia. Novidade em relação às gravuras, aparece um anjo que olha para o jesuíta, com ele parece se comunicar e apontar, com sua mão direita, o caminho - oráculo que, aparecendo em sonho, reforçaria o caráter divino da mensagem vista dormindo. Na gravura italiana de 1793 (com a ordem já extinta), o índio negro, menos do que em posição hierática, parece de fato esmagar o jesuíta que mal consegue levantá-lo, dobrado que está perante o peso do "gigantesco indiano". Xavier, entretanto, ainda tem forças para tentar olhar para o alto e ver o anjo que carrega a multidão de cruzes, representando o outro sonho, o dos trabalhos, sobrepondo as duas visões como no óleo de Quito (e mesmo no livro de Lucena).
No painel baiano, entretanto, o "indiano" vinha trajado de modo similar às de representações dos escravos que circulavam à época, e se mostrava diminuto em relação ao jesuíta. Aqui, o menino pequeno sobre o ombro do santo talvez remeta à iconografia de São Cristovão. A sua legenda dizia que o santo carregou uma criança de uma margem à outra de um rio caudaloso, a criança ficava a cada passo mais e mais pesada, e o homem com aquele peso às costas preocupou-se pois poderia se afundar nas águas perigosas. Ao cruzar o rio, interpelou o menino sobre aquele peso que os colocara em perigo, e este revelou ser Cristo, e o peso que sentira era porque carregara não somente "o mundo sobre si, como carregou em seus ombros aquele que criou o mundo".69 O paralelo entre os episódios hagiográficos do sonho de Xavier e da travessia de Cristóvão é aqui forte (e o rio no óleo de Torres e na gravura da Vita de 1690 talvez sejam índice disso), talvez reforçando de outra maneira a analogia entre a visão onírica do santo jesuíta e a presença de Jesus. Entretanto a composição remete a outra representação visual do próprio episódio, em Goa. Na urna funerária de Xavier, na Igreja de Bom Jesus de Goa, entre as 32 cenas de sua vida em alto-relevo em prata, apresenta-se também o sonho do índio. Produzida entre 1636-1637, Xavier, com uma auréola, está ajoelhado, segurando sobre o ombro esquerdo um menino, seminu, coberto por panos, rezando. A composição, grosso modo, repete-se na capela dedicada ao santo, em um painel, no qual o garoto tem a tez mais escura que o santo.70 A semelhança com a imagem de São Cristóvão é novamente evidente, mas vale a pena observar que, em ambos os casos, a representação do menino lembra figuras devocionais de Buda, com a barriga, algo proeminente, a mostra, o cabelo curto, quase raspado (sobretudo no óleo), o que pode fazer pensar nas circularidades culturais e nas influências de repertórios visuais locais na confecção desses artefatos devocionais cristãos.71 Visto que até onde pudemos verificar esses são os três únicos exemplos dessa composição, talvez o irmão Francisco Coelho, suposto autor das pinturas do colégio da Bahia, tivesse tido algum contato, mesmo que indireto, com essas imagens de Goa. Isso não seria algo inaudito na circulação cultural no Império Português nem na dinâmica da Companhia.
Não somente na representação do "índio etíope" há peculiaridades no painel baiano; a figura de Xavier também foi retratada de maneira diversa do usual. Por alguns detalhes, as vestes e o cabelo que caracterizavam o jesuíta apresentam-se de outro modo. Se a barba permanece, se mostra hirsuta, mais longa do que costumeiro; a tonsura, se existente, está escondida sob um chapéu volumoso e alto, que não era usual na iconografia xavieriana, pois mesmo quando aparecia com chapéu era um barrete mais baixo.72 A figura lembra um outro jesuíta que esteve na China, Matteo Ricci (1552-1610), que conhecia a língua chinesa, ao contrário de Xavier, que nunca aprendera nenhuma língua asiática. Pelo seu conhecimento e pelo seu esforço de traduzir o cristianismo para o chinês, Ricci era representado em vestes orientalizantes, que adotara de fato nesse esforço de ser aceito para converter de dentro a China. Nas gravuras que o retratam, os trajes à maneira asiática eram completados por um chapéu, muito similar ao usado pelo Xavier da igreja de Salvador. Ambos, inclusive, já em inícios do século XVII, haviam sido postos lado a lado no frontispício da edição do relato da missão jesuítica na China de Matteo Ricci, impressa em Augsburg em 1615. A gravura da portada, feita pelo impressor Wolfgang Kilian, foi reproduzida em diferentes edições. Nela aparecem, ladeando o título e o mapa da China, Xavier à esquerda, com vestes de pregador, e Ricci à direita, trajado à chinesa, um de frente para o outro.73
Se, por um lado, a tez escura nos remete ao relato como narrado por Lucena, por outro, sua roupa lembra-nos dos escravos etíopes no Estado do Brasil, cuja capital (cabeça) era Salvador, ao mesmo tempo que o seu tamanho e o modo como é carregado assemelha-se à mesma cena retratada em Goa (além da homologia com São Cristovão carregando Cristo). Se as vestes negras e a barba permanecem similares a uma costumeira roupeta inaciana, fazendo com que qualquer jesuíta que assim se trajasse pudesse se identificar (e ser identificado), o chapéu grande, talvez orientalizante poderia remeter a um lugar específico do seu trabalho missionário. Essa aderência a modelos orientalizantes pode ser pensada a partir da circulação de peças, obras e modelos pictóricos entre as partes oriental e ocidental do Império Português entre os séculos XVII e XVIII. Mais do que isso, para além do gosto pelo exotismo das peças do Oriente, podemos entender sua presença na América como "objetos memoriais da grandeza pretérita de um império universal, estando ao mesmo tempo inseridas na justificação escatológica de dominação dos Braganças" após a expulsão quase total dos portugueses da Ásia (com exceção de Goa e Macau). Para além dos objetos em si, houve a incorporação de elementos orientalizantes nas igrejas e escolas dos jesuítas, em parte, também pela circulação de irmãos pelas partes do Império. Poucas décadas antes de se comporem os altares laterais dedicados a Xavier e Inácio, por exemplo, atuou na Bahia como pintor o jesuíta francês Carlos Bellevile que estivera entre 1698 e 1708 na China, tendo passado algumas vezes por Goa. Belleville na sua volta do Oriente acabou por ficar no Brasil, onde faleceu em 1730, tendo sido responsável pela introdução de orientalismos e chinesices no seminário de Belém em Cachoeira, no Recôncavo. De 1708 até 1730 foi o irmão pintor encarregado do colégio e a da igreja de Salvador. Entre 1717 e 1722, pelo menos, convivera e trabalhara com ele Francisco Coelho, que virou o irmão pintor em exercício no Colégio da Bahia (e, portanto, da Igreja dos Jesuítas) desde a morte de Bellevile até talvez meados da década de 1750, quando foi para o Rio de Janeiro e lá faleceu em 1759.74 Sob sua supervisão, senão mesmo pelo seu pincel, é que teriam sido pintadas as nove telas retratando a vida de Xavier, incluso a do sonho do índio. Portuense, Coelho nunca esteve no Oriente, mas poderia conhecer imagens e desenhos das missões asiáticas por intermédio de Bellevile. E mesmo que não fosse por essa relação entre os dois irmãos pintores, como Serafim Leite apontou, "a comunicação com o Oriente, pela passagem de naus da Índia [no porto de Salvador], era constante".
Se tiverem sido escolhas pictóricas, instigam-nos a pensar sobre as relações entre as missões nas Índias Orientais e Ocidentais, especialmente em um momento no qual o Atlântico português, nomeadamente o Estado do Brasil, ocupava o centro das preocupações do império lusitano. Ao misturar elementos, o autor da imagem talvez buscasse traduzir visualmente um esforço maior dos jesuítas em transformar Xavier em exemplo missionário também para as Índias Ocidentais e ao mesmo tempo mostrar que o trabalho jesuítico (e o Império Português) alcançava o orbe. Vieira realizara empresa semelhante ao dizer que, entre as finezas de Xavier, estava ter sido também, por meio de seus milagres, "peregrino com as mesmas maravilhas na América" que fora na Ásia, como afirmou no volume dedicado exclusivamente ao santo. Nos sermões que tratam dos sonhos,Xavier Dormindo, Vieira constantemente ligou as visões oníricas à missão, ao mesmo tempo, jesuítica e portuguesa, em particular, nas Américas. Seus três sonhos seriam, na proposta de Vieira, prefigurações dos trabalhos missionários da Companhia de Jesus na América. Estas partes eram as últimas do orbe a serem descobertas e, com isso, necessitavam desfrutar da fé cristã para que o Reino de Cristo na Terra, a quinta e última Monarquia fosse realizado.
Algo que aconteceria, assim, sob os esforços dos jesuítas e com o auxílio de Portugal.75 Se nesses sermões sobre os sonhos de Xavier não há a menção explícita a uma proposta de Quinto Império, talvez tornando-os sobretudo prédicas mais concernentes ao exemplo cristão e devoção fiel, como ressaltou Isabel Almeida,76 nos sermões de Ação de Graças e Gratulatório a Xavier, ambos pelos nascimentos de príncipes da casa real portuguesa, a ligação é direta. Especialmente no de Ação de Graças, publicado no volume Palavra de Deus Empenhada e Desempenhada, pois até onde identificamos é o único dos mais de 200 sermões de Vieira no qual a expressão "Quinto Império" é utilizada de modo ostensivo e claramente relacionado ao Império Português77 - e num sermão que o exemplo de Xavier é central, pois não só protetor do reino mas responsável pelo nascimento do infante.
Podemos assim olhar a imagem na antiga Igreja dos Jesuítas tendo em vista também suas ligações com o Império Português. Nesse sentido, os dois signos não usuais (o garoto e o chapéu) ganham outra dimensão. Eram signos numa imagem de um santo que fora alçado a padroeiro da cidade de Salvador, que era tido como santo de Portugal e de seus domínios, que era exemplo da ação jesuíta no espaço ultramarino lusitano. Era talvez a tentativa de fazer um transplante do Apóstolo do Oriente para o Ocidente americano, sem perder de vista a unidade da missão e do Império. Santo que pregou no Oriente, vestido em trajes asiáticos, carregando um africano, que sustentava com seu trabalho escravo o Império, numa igreja americana, situada na cabeça daquela parte do mundo, então alçado a Vice-Reino do Brasil.
* * *
Nesse percurso iconográfico, Xavier de inícios do século XVII não é o mesmo Xavier de finais do XVII e de meados do XVIII, momentos nos quais o programa visual da Igreja dos Jesuítas foi estabelecido, seja na sacristia seja nos altares laterais. O santo missionário jesuíta de 1622, aquele que livrou grande parte das almas do Oriente dos males da gentilidade, era no final do mesmo século também aquele que era ligado à América, como símbolo do papel da Companhia de Jesus para a saída dos povos destas partes de sua ignorância da "verdadeira fé". As pinturas com o tema de sua morte e suas visões dormindo, em circulação na Europa e na América, corroboravam essa ideia ao veiculá-lo em meio aos ameríndios convertidos, ao mesmo tempo em que a introdução de elementos orientalizantes nas representações americanas lembravam o alcance universal (católico) da missão e do império. Xavier, de apóstolo de uma parte do mundo, torna-se exemplo máximo do missionário de todo o globo, mas especialmente do Novo Mundo, parte a ser convertida para que o império universal de Cristo pudesse se consumar. Sua presença na Bahia por meio dos escritos de Vieira, da política iconográfica da igreja jesuíta e da consumada eleição como padroeiro de Salvador operavam no mesmo sentido. Mas, ao fazêlo, localizavam a cabeça desse império em Portugal, reforçando de modo inequívoco a ligação entre a Companhia e a coroa lusitana, como também a importância da conversão e conquista da América pelos jesuítas e portugueses.
fonte http://www.scielo.br/pdf/vh/v30n53/06.pdf
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