quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Os planos de Xavier para entrar na China

Carta nº 131

AO PADRE FRANCISCO PÉREZ (MALACA)
Sanchão - China, 22 de Outubro 1552
Cópia em português, feita em 1746


A graça e amor de Cristo Nosso Senhor seja sempre em nossa ajuda e favor. Amen.
Feliz chegada a Sanchão. Ninguém o quer levar a Cantão
1. Pela misericórdia e piedade de Deus Nosso Senhor, chegou a nau de Diogo Pereira, e todos os que vínhamos nela, a salvamento, a este porto de Sanchão, onde achámos outros navios, muitos, dos mercadores. Este porto de Sanchão está a trinta léguas de Cantão1. Acodem muitos mercadores da cidade de Cantão a este Sanchão, a fazer fazenda com os portugueses. [Trataram diligentemente com eles os portugueses] para ver se algum mercador de Cantão me queria levar. Todos se escusaram, dizendo que punham suas vidas e fazendas em grande risco, se o governador de Cantão soubesse que me levavam. Por esta causa, por nenhum preço me queriam levar em seus navios a Cantão.

Um mercador chinês compromete-se a levá-lo por 200 cruzados
2. Aprouve a Deus Nosso Senhor que se oferecesse um homem honrado, morador de Cantão, a me levar, por 200 cruzados, em uma embarcação pequena onde não houvesse outros marinheiros senão seus filhos e moços, para não vir a saber o governador de Cantão, pelos marinheiros, qual era o mercador que me levava. E [a] mais se ofereceu: de me meter em sua casa escondido três ou quatro dias e, daí, pôr-me um dia ante-manhã à porta da cidade, com meus livros e outro fatinho, para daí ir logo a casa do governador e dizer-lhe como vínhamos para irmos onde está o rei da China, mostrando a carta, que do Senhor Bispo levamos, para o rei da China, declarando-lhe como somos mandados de Sua Alteza para declarar a lei de Deus.
Perigos de morte a que se arrisca. Mas teme mais desconfiar de Deus
3. Os perigos que corremos são dois, segundo diz a gente da terra: o primeiro é que, o homem que nos leva, depois que for entregue dos 200 cruzados, nos deixe em alguma ilha deserta ou nos bote ao mar, para não ser sentido pelo governador de Cantão; o segundo é que, se nos levar a Cantão e formos diante do governador, [este] nos mandará dar tratos ou nos cativará. [Isto] por ser uma coisa tão nova como esta e haver tantas defesas na China para que não vá ninguém a ela sem chapa do rei, pois tanto proíbe2 o rei que os estrangeiros entrem em sua terra sem sua chapa. Afora estes dois perigos, há outros muito maiores que não alcança a gente da terra, os quais contar seria uma grande prolixidade, ainda que alguns não deixarei de dizer.
4. O primeiro, é deixar de esperar e confiar na misericórdia de Deus, pois por seu amor e serviço vamos a manifestar a sua Lei e a Jesus Cristo seu Filho nosso Redentor e Senhor, como ele bem o sabe. Pois por sua santa misericórdia nos comunicou estes desejos, agora desconfiar da sua misericórdia e poder, pelos perigos em que nos podemos ver por seu serviço, é muito maior perigo – se ele for mais servido, nos guardará dos perigos desta vida – do que são os males que nos podem fazer todos os inimigos de Deus: sem licença e permissão de Deus, os demónios e seus ministros em nenhuma coisa nos podem empecer.
Motivos de confiança em Deus e determinação de ir à China
5. E também, confirmando-nos com o dito do Senhor que diz: «Quem ama a sua vida neste mundo a perderá, e aquele que por Deus a perder, a achará» (*Jo 12,25). O que é conforme ao que também Cristo Nosso Senhor diz: «O que põe a mão ao arado e olha para trás, não é apto para o Reino de Deus» (*Lc 9,26).
6. Nós, considerando estes perigos da alma, que são muito maio­res que os do corpo, achamos que é mais seguro e mais certo passar pelos perigos corporais do que sermos compreendidos diante de Deus nos perigos espirituais. De maneira que, por qualquer via, es­tamos determinados a ir à China. O sucesso da nossa viagem espero em Deus Nosso Senhor que há-de ser para acrescentamento da nossa santa fé, por muito que os inimigos e seus ministros nos persigam. Porque «se Deus for por nós, quem terá vitória contra nós?»(*Rm 8,31).

Notícias dos companheiros, oferecimento de novo intérprete
7. Quando a nau daqui for, deste porto de Sanchão para Malaca, espero em Deus Nosso Senhor que levará notícias nossas de como fomos recebidos em Cantão, porque de Cantão a este porto sempre vêm navios, nos quais poderei escrever o que passámos daqui até Cantão e o que nos fez o governador de Cantão.
Álvaro Ferreira e António China vieram sempre doentes. Agora, pela misericórdia de Deus, acham-se melhor. Achei que António não presta para jurobaça6(*intérplete), porque lhe esqueceu falar china. Ofere­ceu-se para ir comigo, por jurobaça, um Pero Lopez7, que foi cativo de António de Lopez Bobadilha8, morto no cerco de Malaca. Sabe ler e escrever português e também lê e escreve algum tanto china. Ofereceu-se com muito ânimo e vontade de ir comigo. Deus lhe pagará nesta vida e na outra. Encomendai-o a Deus Nosso Senhor, para que lhe dê dom de perseverança.

1 Cantão, capital da província de Kwangtung.                   /         2 Lit.: defende, no sentido antigo de proibir.

Atividades sacerdotais na ilha de Sanchão
8. Logo que chegámos a Sanchão, fizemos uma igreja, e disse Missa cada dia até que adoeci de febres. Estive doente quinze dias. Agora, pela misericórdia de Deus, acho-me de saúde. Cá não min­guaram ocupações espirituais, como em confessar e visitar doentes, fazer amizades. Daqui não sei que mais vos faça saber, senão que estamos muito determinados a ir à China. Todos os chinas que nos vêem, digo homens honrados mercadores, mostram folgar e desejar que vamos à China, parecendo-lhes que levamos alguma lei, escrita nos livros, que será melhor do que aquela que eles têm, ou por serem amigos de novidades. Todos mostram grande prazer, ainda que nin­guém nos quer levar, pelos perigos em que se podem ver.
Escrita em Sanchão
Entrega da casa e colégio da Companhia de Jesus em Malaca e mudança para Cochim
9. A igreja de Nossa Senhora9 e o colégio, se for nosso10, ficará [com] tudo aquilo que é da Companhia de Jesus, ao Padre Vicente Viegas11, entregue tudo por vossa mão, ficando-lhe um treslado da doação, que fez o Senhor Bispo, da casa de Nossa Senhora à Com­panhia do nome de Jesus. De maneira que, [nem] o vigário, nem ou­trem ninguém, tenha que entender com a igreja de Nossa Senhora nem com o Padre Vicente Viegas. E assim, rogareis muito ao Padre Vicente Viegas, de vossa parte e minha, que queira aceitar este cargo pelo amor de Deus, até que da Índia o reitor de São Paulo proveja de alguma pessoa que venha estar em Malaca12. E se a vós vos parecer bem que fique com ela Bernardo, ficará para ensinar os meninos.

O que pensa fazer se não puder entrar na China. Recomenda o amigo Diogo Pereira
10. Eu estou aguardando cada dia por um china(chinês), que há-de vir de Cantão, para me levar. Praza a Deus que venha, assim como eu desejo. Porque, se acaso for que Deus não queira, não sei o que farei eu: se irei para a Índia ou para Sião para, de Sião, ir na embaixada que o rei de Sião manda ao rei da China13. Isto vos escrevo, para que digais a Diogo Pereira que, se ele há-de ir à China e se por alguma via me puder escrever para Sião, me escreva, para que nos juntemos [lá], ou em algum outro porto da China. Com Diogo Pereira tereis muita amizade, assim em Malaca como na Índia, encomendando-o a Deus primeiramente e, depois, em tudo o demais que o puderdes favorecer, pois é tão amigo da nossa Companhia.
Cristo Nosso Senhor nos dê sua ajuda e favor. Amen.
De Sanchão, hoje, 22 de Outubro, ano de 1552.
Vosso todo em Cristo, FRANCISCO

6 Jurobaça, ou intérprete. Escreve Valignano: «António não sabia quase nada da língua mandarim e a língua usada do vulgo comum em Cantão falava-a piado­samente» (VALIGNANO, História 211).
7 Não temos nenhuns dados sobre este Pero Lopez, diferente de outros com o mesmo nome na Índia.
8 Bobadilha tinha ficado gravemente ferido na batalha naval contra os achens em Parles (Java) em1547 e foi morto pelos javaneses no cerco de 1551 a Malaca (SCHURHAMMER, Quellen 4703; SEB. GONÇALVES,).
9 Igreja de Nossa Senhora do Monte.
10 Cf. SCHURHAMMER, Xavier-doc. 89, anexo, nota 12. O Governador Cabral (1549-1550) tinha doado à Companhia de Jesus o terreno e a casa (Goa 11,511r). Xavier talvez não recordasse o texto exato do documento.
11 Vicente Viegas, sacerdote diocesano, beneficiário de Malaca. Em princí­pios de 1545, o capitão de Malaca tinha-o enviado a Macassar (Celebes), onde se tinham convertido dois reis, e dali voltou provavelmente para Malaca em 1548.
12 Como Viegas estava muito ocupado, o P. Pérez antes de abandonar Ma­laca, confiou a igreja e a casa a Juan Diaz, sacerdote secular espanhol, que tinha vindo na frota espanhola aprisionada em Amboino (Molucas) pelos portugueses em 1546. Em 1557 entrou na Companhia de Jesus em Goa e no ano seguinte foi para Thana onde morreu (VALIGNANO).

13 Belchior Nunes Barreto, em 1555, encontrou em Cantão o legado de Sião que regressava de Pequim (AYRES 86). Sobre semelhante legação anamita que de dois em dois anos ia a Pequim pagar tributo cf. G. DEVERIA). A legação de Sião a Pequim, segundo Teixeira, realizava-se todos os anos (MX II 789) ou cada três anos (BERNARD, Aux portes de la Chine).

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