Carta nº 131
AO PADRE FRANCISCO PÉREZ (MALACA)
Sanchão - China, 22 de Outubro 1552
Cópia em português, feita em 1746
A graça e amor de Cristo Nosso
Senhor seja sempre em nossa ajuda e favor. Amen.
Feliz chegada a Sanchão. Ninguém o quer levar a Cantão
1. Pela
misericórdia e piedade de Deus Nosso Senhor, chegou a nau de Diogo Pereira, e
todos os que vínhamos nela, a salvamento, a este porto de Sanchão, onde achámos
outros navios, muitos, dos mercadores. Este porto de Sanchão está a trinta
léguas de Cantão1. Acodem muitos mercadores da cidade de Cantão a este Sanchão,
a fazer fazenda com os portugueses. [Trataram diligentemente com eles os
portugueses] para ver se algum mercador de Cantão me queria levar. Todos se
escusaram, dizendo que punham suas vidas e fazendas em grande risco, se o
governador de Cantão soubesse que me levavam. Por esta causa, por nenhum preço
me queriam levar em seus navios a Cantão.
Um mercador chinês compromete-se a levá-lo por 200 cruzados
2. Aprouve a
Deus Nosso Senhor que se oferecesse um homem honrado, morador de Cantão, a me
levar, por 200 cruzados, em uma embarcação pequena onde não houvesse outros
marinheiros senão seus filhos e moços, para não vir a saber o governador de
Cantão, pelos marinheiros, qual era o mercador que me levava. E [a] mais se
ofereceu: de me meter em sua casa escondido três ou quatro dias e, daí, pôr-me
um dia ante-manhã à porta da cidade, com meus livros e outro fatinho, para daí
ir logo a casa do governador e dizer-lhe como vínhamos para irmos onde está o
rei da China, mostrando a carta, que do Senhor Bispo levamos, para o rei da
China, declarando-lhe como somos mandados de Sua Alteza para declarar a lei de
Deus.
Perigos de morte a que se arrisca. Mas teme mais desconfiar de Deus
3. Os perigos
que corremos são dois, segundo diz a gente da terra: o primeiro é que, o homem
que nos leva, depois que for entregue dos 200 cruzados, nos deixe em alguma
ilha deserta ou nos bote ao mar, para não ser sentido pelo governador de
Cantão; o segundo é que, se nos levar a Cantão e formos diante do governador,
[este] nos mandará dar tratos ou nos cativará. [Isto] por ser uma coisa tão
nova como esta e haver tantas defesas na China para que não vá ninguém a ela
sem chapa do rei, pois tanto proíbe2 o rei que os estrangeiros entrem em sua
terra sem sua chapa. Afora estes dois perigos, há outros muito maiores que não
alcança a gente da terra, os quais contar seria uma grande prolixidade, ainda
que alguns não deixarei de dizer.
4. O primeiro,
é deixar de esperar e confiar na misericórdia de Deus, pois por seu amor e
serviço vamos a manifestar a sua Lei e a Jesus Cristo seu Filho nosso Redentor
e Senhor, como ele bem o sabe. Pois por sua santa misericórdia nos comunicou
estes desejos, agora desconfiar da sua misericórdia e poder, pelos perigos em
que nos podemos ver por seu serviço, é muito maior perigo – se ele for mais
servido, nos guardará dos perigos desta vida – do que são os males que nos
podem fazer todos os inimigos de Deus: sem licença e permissão de Deus, os
demónios e seus ministros em nenhuma coisa nos podem empecer.
Motivos de confiança em Deus e determinação de ir à China
5. E também,
confirmando-nos com o dito do Senhor que diz: «Quem ama a sua vida neste mundo
a perderá, e aquele que por Deus a perder, a achará» (*Jo 12,25). O que é
conforme ao que também Cristo Nosso Senhor diz: «O que põe a mão ao arado e
olha para trás, não é apto para o Reino de Deus»
(*Lc 9,26).
6. Nós,
considerando estes perigos da alma, que são muito maiores que os do corpo,
achamos que é mais seguro e mais certo passar pelos perigos corporais do que
sermos compreendidos diante de Deus nos perigos espirituais. De maneira que,
por qualquer via, estamos determinados a ir à China. O sucesso da nossa viagem
espero em Deus Nosso Senhor que há-de ser para acrescentamento da nossa santa
fé, por muito que os inimigos e seus ministros nos persigam. Porque «se Deus
for por nós, quem terá vitória contra nós?»(*Rm
8,31).
Notícias dos companheiros, oferecimento de novo intérprete
7. Quando a
nau daqui for, deste porto de Sanchão para Malaca, espero em Deus Nosso Senhor
que levará notícias nossas de como fomos recebidos em Cantão, porque de Cantão
a este porto sempre vêm navios, nos quais poderei escrever o que passámos daqui
até Cantão e o que nos fez o governador de Cantão.
Álvaro
Ferreira e António China vieram sempre doentes. Agora, pela misericórdia de
Deus, acham-se melhor. Achei que António não presta para jurobaça6(*intérplete), porque lhe esqueceu falar
china. Ofereceu-se para ir comigo, por jurobaça, um Pero Lopez7, que foi
cativo de António de Lopez Bobadilha8, morto no cerco de Malaca. Sabe ler e
escrever português e também lê e escreve algum tanto china. Ofereceu-se com
muito ânimo e vontade de ir comigo. Deus lhe pagará nesta vida e na outra.
Encomendai-o a Deus Nosso Senhor, para que lhe dê dom de perseverança.
1
Cantão, capital da província de Kwangtung. / 2 Lit.: defende, no sentido antigo de
proibir.
Atividades sacerdotais na ilha de Sanchão
8. Logo que
chegámos a Sanchão, fizemos uma igreja, e disse Missa cada dia até que adoeci
de febres. Estive doente quinze dias. Agora, pela misericórdia de Deus, acho-me
de saúde. Cá não minguaram ocupações espirituais, como em confessar e visitar
doentes, fazer amizades. Daqui não sei que mais vos faça saber, senão que
estamos muito determinados a ir à China. Todos os chinas que nos vêem, digo
homens honrados mercadores, mostram folgar e desejar que vamos à China,
parecendo-lhes que levamos alguma lei, escrita nos livros, que será melhor do
que aquela que eles têm, ou por serem amigos de novidades. Todos mostram grande
prazer, ainda que ninguém nos quer levar, pelos perigos em que se podem ver.
Escrita em
Sanchão
Entrega da casa e colégio da Companhia de Jesus em Malaca e mudança
para Cochim
9. A igreja de
Nossa Senhora9 e o colégio, se for nosso10, ficará [com] tudo aquilo que é da
Companhia de Jesus, ao Padre Vicente Viegas11, entregue tudo por vossa mão,
ficando-lhe um treslado da doação, que fez o Senhor Bispo, da casa de Nossa
Senhora à Companhia do nome de Jesus. De maneira que, [nem] o vigário, nem outrem
ninguém, tenha que entender com a igreja de Nossa Senhora nem com o Padre
Vicente Viegas. E assim, rogareis muito ao Padre Vicente Viegas, de vossa parte
e minha, que queira aceitar este cargo pelo amor de Deus, até que da Índia o
reitor de São Paulo proveja de alguma pessoa que venha estar em Malaca12. E se
a vós vos parecer bem que fique com ela Bernardo, ficará para ensinar os
meninos.
O que pensa fazer se não puder entrar na China. Recomenda o amigo Diogo
Pereira
10. Eu estou
aguardando cada dia por um china(chinês), que há-de vir de Cantão, para me levar. Praza
a Deus que venha, assim como eu desejo. Porque, se acaso for que Deus não
queira, não sei o que farei eu: se irei para a Índia ou para Sião para, de
Sião, ir na embaixada que o rei de Sião manda ao rei da China13. Isto vos
escrevo, para que digais a Diogo Pereira que, se ele há-de ir à China e se por
alguma via me puder escrever para Sião, me escreva, para que nos juntemos [lá],
ou em algum outro porto da China. Com Diogo Pereira tereis muita amizade, assim
em Malaca como na Índia, encomendando-o a Deus primeiramente e, depois, em tudo
o demais que o puderdes favorecer, pois é tão amigo da nossa Companhia.
Cristo Nosso
Senhor nos dê sua ajuda e favor. Amen.
De Sanchão,
hoje, 22 de Outubro, ano de 1552.
Vosso todo em
Cristo, FRANCISCO
6
Jurobaça, ou intérprete. Escreve Valignano: «António não sabia quase nada da
língua mandarim e a língua usada do vulgo comum em Cantão falava-a piadosamente»
(VALIGNANO, História 211).
7
Não temos nenhuns dados sobre este Pero Lopez, diferente de outros com o mesmo
nome na Índia.
8
Bobadilha tinha ficado gravemente ferido na batalha naval contra os achens em
Parles (Java) em1547 e foi morto pelos javaneses no cerco de 1551 a Malaca
(SCHURHAMMER, Quellen 4703; SEB. GONÇALVES,).
9
Igreja de Nossa Senhora do Monte.
10
Cf. SCHURHAMMER, Xavier-doc. 89, anexo, nota 12. O Governador Cabral
(1549-1550) tinha doado à Companhia de Jesus o terreno e a casa (Goa 11,511r).
Xavier talvez não recordasse o texto exato do documento.
11
Vicente Viegas, sacerdote diocesano, beneficiário de Malaca. Em princípios de
1545, o capitão de Malaca tinha-o enviado a Macassar (Celebes), onde se tinham
convertido dois reis, e dali voltou provavelmente para Malaca em 1548.
12
Como Viegas estava muito ocupado, o P. Pérez antes de abandonar Malaca,
confiou a igreja e a casa a Juan Diaz, sacerdote secular espanhol, que tinha
vindo na frota espanhola aprisionada em Amboino (Molucas) pelos portugueses em
1546. Em 1557 entrou na Companhia de Jesus em Goa e no ano seguinte foi para
Thana onde morreu (VALIGNANO).
13
Belchior Nunes Barreto, em 1555, encontrou em Cantão o legado de Sião que
regressava de Pequim (AYRES 86). Sobre semelhante legação anamita que de dois
em dois anos ia a Pequim pagar tributo cf. G. DEVERIA). A legação de Sião a
Pequim, segundo Teixeira, realizava-se todos os anos (MX II 789) ou cada três
anos (BERNARD, Aux portes de la Chine).
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