O corpo incorrupto do Padre Francisco Xavier
Francisco Xavier faleceu em 03 de dezembro de 1552, na ilha chinesa de Sancião.
A
noticia da morte do santo Padre tão amado, todos os portugueses da Santa-Cruz
romperam em soluços.
Os marinheiros desembarcaram com todo o
pessoal do navio; todos queriam ver e venerar o corpo do grande apóstolo, todos
queriam beijar-lhe os pés e as mãos, recomendarem-se às suas orações, e
testemunhar-lhe o amor e o reconhecimento que ele havia grangeado de todos os
corações!
O santo corpo foi conservado até ao terceiro
dia, domingo, estendido sobre a esteira que cobria o solo da cabana.
Jorge Álvares, Francisco de Aguiar,
Cristóvão e Antônio de Santa-Fé, tiraram-lhe a sua pobre batina da qual
repartiram entre si os preciosos pedaços, acharam sobre o seu peito uma pequena
boquete contendo a assinatura de santo Inácio, os nomes dos Padres com os quais
o nosso Santo tinha vivido em Roma, a fórmula dos seus votos, e uma parcela de
osso do apóstolo S. Tomé, sob cuja proteção ele pusera o seu apostolado das
Índias.
Revestido o corpo de seus hábitos
sacerdotais, foi posto num esquife que se encheu de cal viva, a fim de que a
carne fosse consumida logo e os ossos pudessem ser removidos na volta da nau
Santa-Cruz.
Os portugueses tinham erigido uma cruz num
prado, na base da colina que domina o porto; foi ao pé daquela cruz que Jorge
Álvares fez depositar o esquife. Levantou-se um montículo de pedras ao lado da
cabeça e um outro aos pés, e isto foi tudo!...
Francisco Xavier tinha previsto esses
tristes funerais... Para ele, o sacrifício devia ir mesmo além da morte! Deus
nada lhe poupara! Mas bem depressa também nada poupará para manifestar a glória
do imortal apóstolo.
Dispondo-se Luís de Almeida a fazer-se à
vela para as Índias, depois dos grandes frios, suplicou-lhe Jorge Álvares que
não deixasse o corpo de Xavier em Sancião, assegurando-lhe que ele podia
encarregar-se de o conduzir, por isso que pelas precauções tomadas só teriam de
transportar os ossos já despojados da carne pela cal.
O capitão enviou dois dos seus homens com
ordem de abrir o esquife e verificar o seu conteúdo. Esta abertura fez-se a 17
de Fevereiro de 1553, dois meses e meio depois da morte de Francisco Xavier.
Encontrou-se o seu rosto fresco, corado,
sereno... o Santo parecia dormir. Os ornamentos não estavam alterados.
Examinando o corpo, ele parece cheio de vida. Um dos homens corta um fragmento
de carne, acima do joelho... o sangue salta! Correm ao navio, e levam a
preciosa relíquia ao capitão; ele quer julgar por si próprio... cai de joelhos
diante daquela grande maravilha, correm-lhe as lágrimas, não pode crer no que
vê!
Em alguns instantes toda a equipagem da
Santa-Cruz havia corrido para o prado e rendia homenagem ao corpo venerando do
santo Padre. Todos se aproximaram, beijaram-lhe os pés e as mãos, e
certificaram-se de que se exalava deste santo corpo um perfume que não tinha
nada com que se comparasse sobre a terra.
Deitou-se de novo no esquife a cal que se
tinha retirado, levaram religiosamente aqueles restos maravilhosos para bordo
da Santa-Cruz, e pouco depois, fez-se à vela para Malaca, onde chegou a 22 de
Março, com a mais bonançosa viagem.
Estava sendo aquela cidade de novo infestada
de todos os horrores da fome e da peste, e os Padres da Companhia de Jesus não
se achavam ali para prodigalizarem às vítimas desses destruidores flagelos os
tesouros do seu santo ministério e da sua sublime dedicação. O capitão da
Santa-Cruz, tendo expedido a chalupa para anunciar à cidade a chegada do santo
corpo, a clerezia, a nobreza e o povo, vieram de tochas na mão, recebê-lo ao
porto, não obstante a disposição de ódio do governador, e conduziram-no
processionalmente à igreja de Santa Maria do Monte, que pertencia. à Companhia
de Jesus.
Os pagãos e os maometanos incorporaram-se
espontaneamente na multidão para renderem homenagem àqueles restos venerandos;
Diogo Pereira parecia acompanhar os de seu pai; a sua dor era dilacerante!
- Qual é a causa deste lúgubre motim?
perguntou D. Álvaro, deixando uma mesa de logo e abrindo uma janela que deitava
para a praça do governo.
- É, provavelmente, respondeu-lhe um dos
jogadores, o funeral do Padre Xavier, pois que o seu corpo devia chegar hoje.
- Que fanáticos! Eles verão bem depressa as
honras que eu reservo ao seu santo Padre!
Depois das cerimônias religiosas, foi
retirado o Santo do esquife que o encerrava; levaram-no para o cemitério dos
pobres, lançaram-no numa cova muito pequena, forçando-o muito para ali entrar,
e calcaram aquela terra "com pesadas alavancas" - diz o catequista do
Santo, testemunha ocular-, e lhe abriram e achataram o nariz no estado em que
vós o vistes em Goa, e quebraram-lhe o costado direito!... Eram aquelas, sem
dúvida, as honras que o sacrílego governador havia prometido prestar a Xavier.
Naquele mesmo dia, cessava a peste em toda a
cidade, os doentes viam-se milagrosamente curados, e embarcações carregadas de
víveres, ancoravam no porto e vinham pôr termo à fome. O grande apóstolo
recompensava assim as provas de veneração que os habitantes de Malaca acabavam
de lhe prestar, a despeito da culpável governador, cuja malvadez tinha atraído
sobre eles os castigos do Céu.
O corpo de São Francisco Xavier, retirado do
seu esquife, ficou assim indignamente enterrado na terra, na imundície!... E
desgraçado daquele que tivesse ousado subtrai-lo àquela profanação...
Por aquele tempo o Padre João da Beira,
voltando às Molucas, por ordem de Xavier, com o Irmão Manuel de Távora, chegou
a Malaca no correr do mês de Agosto, e não pôde resolver-se a embarcar para o
seu destino, sem ter visto o que restava do seu amado superior. Por seu lado,
Diogo Pereira desejava desde muito tempo poder prestar ao seu Santo amigo as
honras merecidas pela sua incomparável vida; mas o terrível governador estava
ali. O Padre João da Beira insistia, contudo:
- Somente vê-lo! dizia ele a Diogo; em
seguida o tornaremos a enterrar e Deus saberá um dia mudar as circunstâncias de
maneira que nos dará a consolação de prestar ao seu santo apóstolo as honras
que merece.
- Pois bem! meu Padre, lá iremos pelo meio
da noite, a fim de não sermos surpreendidos, respondeu-lhe Diogo Pereira.
Na noite de 15 de Agosto de 1553,
dirigiram-se eles para o lugar em número de seis: o Padre Beira, o Irmão Manuel
de Távora, Diogo e Guilherme Pereira e dois outros portugueses. Descobriram o
precioso corpo e acharam-no tão fresco como se a vida, o não tivesse deixado; o
lenço branco que cobria o belo rosto de Xavier estava molhado com o seu
sangue!... Os amigos do nosso Santo prostraram-se diante daquele prodígio, e
derramaram lágrimas de sentimento pela profanação de que eram testemunhas.
- "Levêmo-lo! levêmo-lo! disseram eles
em voz baixa e todos ao mesmo tempo: a Providência nos protegerá."
E tomando nos braços o querido e venerando
corpo, removeram-no para uma pequena ermida que Diogo Pereira possuía fora da
cidade, convencionando conservá-lo ali até que Deus lhes permitisse fazê-lo
transferir convenientemente para Goa. Diogo Pereira fez-lhe construir uma de
madeira preciosa e forrada de damasco; colocou-se uma almofada de brocado por
baixo da cabeça do Santo, cobriu-se-lhe com um pano de tecido de ouro, e pôs-se
uma tocha acesa na câmara. Esta tocha devia ter uma duração de dezoito horas;
ardendo, porém, noite e dia durou dezoito dias!
Nessa ocasião estando um barco prestes a
fazer-se à vela para as Molucas, julgou o Padre Beira dever deixar o Irmão
Távora junto do corpo de que se via forçado a separar; encarregou-o da vigia e
guarda daquele querido depósito e de o acompanhar a Goa logo que se oferecesse
ocasião, e partiu ardendo mais que nunca em zelo pela glória de Deus e pela
salvação das almas. Dizia-se que parecia que o espírito do grande Xavier
passara para ele.
Logo depois da sua partida, o Padre
Alcáçova, vindo do Japão, desembarcava em Malaca, onde devia esperar que algum
navio se fizesse à vela para Goa; reuniu-se a Manuel de Távora para honrar a
santa relíquia do seu Padre tão amado, na morada solitária de Diogo Pereira,
pedindo todos os dias a Deus ocasião de a transportar com segurança para a
metrópole das Índias portuguesas, onde a veneração pública o esperava
impacientemente
02 - CASTIGO DO
GOVERNADOR - TRASLADAÇÃO DO CORPO - CHEGA FINALMENTE A GOA
Num dos primeiros dias do mês de Fevereiro
de 1554, antes do nascer do sol, um navio de guerra lançava âncora no porto de
Malaca. Era numerosa a sua equipagem, formidável o seu armamento. O desembarque
efetuou-se sem delonga e no maior silêncio; havia mistério e solenidade naquele
aparato.
As portas da cidade abrem-se... O capitão,
os oficiais e um destacamento de tropa apresentam-se, parlamentara por alguns
instantes, entram na cidade e vão diretamente ao palácio do governador.
Os soldados cercam o palácio e tomam todas
as saídas; os oficiais, entre os quais se distingue um personagem cuja
autoridade superior se adivinha pelo respeito que se lhe testemunha, penetram
no interior.
Bem depressa se manifesta grande agitação
nas ruas de Malaca, á nova do misterioso desembarque e da entrada silenciosa de
um grande personagem cercado de oficiais e de homens de guerra. É geral a
ansiedade para que o acontecimento seja conhecido; uns vão, outros vêm e todos
procuram informações...
Finalmente sabe-se que a hora da justiça de
Deus soara para o grande culpado; que D. Antônio de Noronha acabava de chegar
para o substituir na qualidade de governador da cidade e de Intendente
Marítimo, e que trazia a missão de o prender e de o enviar a Goa com boa e
segura guarda.
Poucos dias depois, D. Álvaro de Ataíde,
declarado criminoso de estado, atravessava as ruas de Malaca, escoltado por
soldados e oficiais encarregados de guardar a sua pessoa, e é obrigado a
embarcar para Goa, donde o vice-rei o mandou para Portugal para ali ser julgado
pelo tribunal real.
Reconhecido criminoso de alta traição para
coro a Igreja e para com o Estado, foi condenado a cisco perpétua, sendo
confiscados todos os seus bens.
Passados alguns anos, o seu corpo cobriu-se
de úlceras, viu-o desfazer-se aos bocados e reconheceu que a justiça de Deus o
fulminava; acredita-se que este grande pecador apelou para a sua misericórdia e
que morreu arrependido.
Diogo Pereira, cumulado de honras pela
corte, foi generosamente indenizado pelo rei das perdas que lhe havia feito
sofrer a invejosa cobiça do seu inimigo; ficou assim, pois, cumprida a dupla
predição do nosso Santo.
Ia largar para Goa o capitão Lopes de
Noronha; o Padre Alcágova e o Irmão Távora, fizeram embarcar no seu navio o
mais precioso tesouro das Índias, e embarcaram-se também com ele a bordo do
navio Santa-Ana.
Este velho navio oferecia tão pouca
segurança, que ninguém se atrevia a tomar passagem nele; porém logo que se
espalhou a notícia de que ele levava o corpo do santo Padre, os passageiros
apresentavam-se á, porfia; disputava-se a felicidade de fazer aquela viagem tão
junto de quem era já honrado publicamente desde que se deixou de temer a cólera
do sacrílego governador.
Porém, uma tempestade das mais violentas
vera bem depressa experimentar a fé dos confiantes passageiros. O navio é
lanceado sobre um banco de areia e a quilha enterra-se tão profundamente, que
todos os esforços de manobra são infrutíferos para o desembaraçar.
- Santo Padre, gritam todos,
desembaraçai-nos! vós estais aqui, o navio não pode perder-se!
No mesmo instante, um golpe de vento eleva a
quilha, o navio sobe, e volta a flutuar por si mesmo... Estava salvo!
No estreito de Ceilão, um novo perigo mais
aterrador se apresenta ainda. A embarcação choca contra um rochedo, o leme foi
arrebatado, o navio fica encalhado, e não se compreende como ele se não reduziu
a pedaços pela violência do choquei Corta-se a mastreação, procura-se aligeirar
o peso, vão-se lançar as mercadorias ao mar.
- Não! não! o santo Padre há de nos salvar!
dizem os passageiros cheios de confiança no precioso tesouro que possuem.
O capitão faz conduzir para a ponte a uma do
apóstolo das Índias; todos caem de joelhos à roda daquele protetor tão querido;
falam-lhe como quando ele se achava cheio de vida e que com uma palavra ou
sinal aplacava as tempestades. Um ruído terrível se deixou imediatamente ouvir,
o Santa-Ana deslisa-se ligeiramente entre dois rochedos e sai ao largo. O
rochedo acabava de se abrir para o desencalhar!
Chegam, finalmente, ao ancoradouro de
Cochim. Todos os habitantes da cidade correm a prestar homenagem de veneração e
de saudades àquele a quem eles queriam como a um pai, e de quem se consideravam
os primeiros filhos. Tocam o porto de Baticala; ali o mesmo entusiasmo, os
mesmos sentimentos de dor e saudades, o mesmo amor.
A esposa de Antônio Rodrigues, oficial do
rei, doente desde muito tempo, assegura que ficará curada se a levarem para o
navio, para junto da uma venerada. Cedem às suas instâncias, e ela recupera a
saúde.
A vinte léguas de Goa o vento torna-se
contrário e o navio não pode prosseguir. O capitão Lopes de Noronha embarca na
chalupa, chega à cidade à força de remos, vai' anunciar ao Colégio a chegada
dos restos mortais do Santo Provincial, e narra os perigos por que passaram
durante a viagem e dos quais o Santo apóstolo os salvou duma maneira tão
milagrosa. Deixemos agora falar o Padre Blandoni então em Goa. Ele escrevia à
Companhia de Jesus, em data de 24 de Dezembro do mesmo ano de 1554:
"Melchior
Nunes correu a casa do vice-rei a pedir-lhe um bote de dois
remos para ir em demanda do navio retido por ventos contrários, e receber a
bordo o precioso depósito que conduzia. O vice-rei mandou imediatamente
aprestar uma fusta. O capitão Lopes viu fazerem-se aquelas disposições com vivo
pesar. Ele rogava e pedia, como uma graça especial, que não tiras sem do seu
navio aquele poderoso sustentáculo que o tinha milagrosamente salvado dos
maiores perigos; mas Belchior e todos os nossos Irmãos ardiam num vivo desejo
de Padre, o mais cedo possível, os restos venerandos do seu Padre, e não
cederam aos rogos do capitão. Embarcaram sem demora com três dos nossos Irmãos,
quatro jovens discípulos da casa, e Mendes Pinto, negociante português que
vivera em intimidade com Xavier durante a sua estada no Japão.
O vice-rei pediu a Melchior, quando partia,
que não entrasse na cidade sem o prevenir da sua chegada.
Depois de terem navegado durante quatro dias
e quatro noites encontraram finalmente os nossos Padres o navio de Lopes de
Noronha próximo de Baticala; subiram imediatamente para bordo e fizeram
transportar para a sua embarcação a uma de Xavier com todos os ornamentos. Durante
aquele tempo, as crianças, coroadas de flores e levando ramos de oliveira,
cantavam o Gloria in excelsis, seguido do cântico Benedictus. Os marinheiros
empavesavam o navio, disparavam a artilharia e faziam ouvir as suas aclamações.
A sobrepeliz que revestia o santo corpo,
conquanto tivesse estado enterrado perto de três meses em cal viva
conservava uma alvura admirável; estava tão perfeitamente conservada que
Melchior teve desde aquele momento a idéia de a reservar para dela se revestir
quando fosse apresentar-se ao imperador do Japão.
O rosto de Xavier estava coberto; as mãos
estavam cruzadas sobre o peito; a cor da fita que as trazia ligadas estava tão
viva como se naquele momento saísse das mãos do obreiro; seus pés estavam
calçados com sandálias.
Melchior veio desembarcar com o seu precioso
depósito em Ribandar, distante da cidade meia légua aproximadamente, e o depôs
numa ermida consagrada à Santíssima Virgem [Igreja
Paroquial], passando ali a noite com os seus companheiros.
Apesar de se estar na Quaresma os nossos
Irmãos fizeram decorar os altares e ornar a igreja. Muitas pessoas queriam que
se pusessem em movimento todos os sinos da cidade, mas os nossos Padres
opuseram-se a isso e julgaram mais conveniente que se tocasse duas vezes
somente como para um serviço fúnebre.
Na manhã seguinte [A 16
de Março de 1554, sexta-feira da semana da Paixão.], o vice-rei, o cabido, a
confraria da misericórdia, a nobreza, os altos funcionários, os magistrados,
nós todos, finalmente, e uma imensa multidão de povo, saímos processionalmente
ao encontro do corpo, que fomos esperar ao cais.
As ruas estavam empavezadas em todo o
percurso, e tão cheias de espectadores de todas as classes, que mal se podia
abrir uma passagem para o cortejo; todas as janelas e telhados estavam
atulhados de gente que fazia cair uma chuva de flores sobre o corpo do Santo, à
medida que ele passava.
Noventa meninos de sobrepeliz, e levando
cada um uma tocha, abriam o cortejo; queimavam-se perfumes em todas as ruas do
trânsito; dois incensadores de cada lado da uma envolviam-na numa ligeira nuvem
de fumo. Chegados à nossa igreja, o corpo conservou-se coberto; a afluência do
povo era tão grande que não se podia expor sem inconveniente. O vice-rei, não
obstante o seu ardente desejo de o contemplar, não pôde satisfazer a sua
devoção por este motivo.
Tendo, finalmente, a multidão perdido a
esperança de o ver, ia-se retirando a pouco e pouco, não ficando senão um
pequeno número de pessoas que suplicavam com lágrimas que lhes dessem a
consolação de verem o seu bom Padre, e protestavam que não se retirariam sem
ter tido aquela felicidade.
Melchior Nunes não pôde resistir às suas
instâncias. Fez colocar uma barreira à entrada da capela-mor, e cada um pôde
ver o corpo sem dele se aproximar. Todos estavam comovidos de surpresa e
admiração, reconhecendo as suas feições: "E contudo, diziam eles, já lá
vão seis meses que ele morreu! É isto crível?"
Apenas eles saíram da igreja, toda a cidade
foi sabedora do prodígio de que haviam sido testemunhas, e uma grande multidão
se dirigiu para a nossa casa com uma brevidade e um interesse inexprimíveis;
era uma massa prodigiosa de assaltantes à qual foi impossível resistir. Durante
quatro dias e quatro - noites a igreja esteve constantemente cheia. Aqueles que
o tinham já visto queriam tornar a vê-lo ainda, e depois ainda outra vez!
Melchior Nunes, julgando finalmente ter
feito muito para a satisfação do público, fez colocar a caixa junto do
altar-mor e mandou pôr uma barreira em frente para a defender contra a invasão
dos fiéis.
Quanto a nós, se experimentamos uma grande
alegria por possuirmos o corpo de Francisco Xavier, experimentamos outra, maior
ainda, só pela idéia de que ele nos protege e intercede por nós no Céu [o Padre Blandoni tendo sido testemunha dos fatos que conta
julgamos dever dar preferências à sua narração, que difere em alguns pormenores
dá do Padre Bouhours]".
Os quatro dias concedidos pelo Padre
provincial, às solicitações dos habitantes de Goa fizeram a glória do apóstolo
do Oriente, mesmo além do que se esperava. Desde logo os doentes que se haviam
feito conduzir para as ruas do trânsito no dia da sua entrada triunfal naquela
cidade, que lhe fora tão querida, tinham todos recobrado milagrosamente a
saúde.
Uma pobre mãe, cuja filha estava nas agonias
da morte, abre a janela no momento em que o cortejo passava por diante de sua
casa, chama. em altos gritos o santo Padre suplicando-lhe que não passe sem
curar sua filha, que vai morrer, e o santo Padre atende-a e restitui-lhe a
filha, que se levanta cheia de saúde.
Colocaram o corpo em ponto elevado e em
posição tal que o povo o pudesse contemplar de todos os lados da igreja, o que
impedia a desordem e satisfazia completamente a multidão. Concorriam de todos
os pontos da cidade e das circunvizinhanças os doentes e achacados, e todos
voltavam curados! Os paralíticos andavam, os cegos viam, e isto parecia mostrar
que o santo Padre nada podia recusar aos seus filhos de Goa! A exaltação do
amor e do reconhecimento, subiu a tal ponto entre os fiéis que haviam merecido
aquela abundância de graças e bênçãos, que até os leprosos puderam vir
misturar-se na multidão e pedir ao seu arnado Padre que se recordasse dos
ternos cuidados e das carícias paternais que ele lhes prodigalizava durante a
sua vida! Ninguém se lembrou de os afastar, nem de se afastar deles. Pelo
contrário, todos lhe davam ânimo, dizendo:
"Ide, o santo Padre vos curará! ele
curou tanta gente!"
E os leprosos viam desaparecer a sua lepra!
O Capitulo cantou a missa da Cruz, na
Sexta-feira, na igreja do colégio; os religiosos franciscanos aí cantaram a da
Santíssima Virgem, no sábado; ninguém pensou em celebrar um ofício fúnebre pelo
apóstolo que havia propagado por todos os países do Oriente a fama dos seus
milagres, e que operava tão brilhantes prodígios depois da sua morte.
A nau Santa-Ana abriu-se por si mesma, logo
que terminou o desembarque dos passageiros e das mercadorias, e submergiu-se
nas águas de Goa, sem que ficasse o menor fragmento!...
No mesmo ano de 1554, chegava a Goa, uma
carta dirigida ao Padre-mestre Francisco; esta carta era de Santo Inácio, e
chamava o nosso Santo para a Europa. O Padre Polanco, então secretário do
célebre fundador da Companhia de Jesus, assegura que Santo Inácio chamava São
Francisco Xavier com a intenção de abdicar nele o titulo e as funções de geral
da Companhia...
Esta carta chegava já muito tarde.
relíquia do Braço de São Francisco Xavier |
Basílica de Goa, onde se conserva o corpo incorruto de Xavier |
O ilustre gigante-havia terminado o seu
curso, tinha chegado ao fim. Em dez anos somente, tinha ele transposto espaços
tão consideráveis que, segundo os cálculos feitos, se reconheceu que as imensas
distâncias percorridas pelo grande apóstolo, bastavam, reunidas umas às outras,
para fazer muitas vezes o giro ao globo! [Calcula-se que no
decurso do seu apostolado, desde a sua partida de Paris para Veneza, até à
morte, o nosso Santo percorrera mais de trinta e cinco mil léguas! Isto é
equivalente a 210.000 km].
Em dez anos somente, levou ele a fé a povos
cuja extensão era de mais de três mil léguas, e plantara a cruz tão sòlidamente
naqueles países, que milhões de cristãos arriscaram a vida pela sua defesa.
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