Carta nº 99
A D. JOÃO III, REI DE PORTUGAL
Cochim, 31 de Janeiro 1552
Original ditado em português
Senhor!
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D. João, rei de Portugal |
Recomenda os habitantes de Malaca que com pessoas e bens se distinguiram
na defesa da cidade cercada
1. Havendo
respeito ao serviço de Deus e de Vossa Alteza, lhe farei lembrança de certas
pessoas que é necessário saber V. A. os serviços que lhe têm feito, para que dê
os agradecimentos e para que continuamente o sirvam. Porque os homens de cá,
que o seu gastam em serviço de Vossa Alteza, nenhuma coisa tanto desejam como
saberem que V. A. está ao cabo dos seus serviços, para que os honre
escrevendo-lhes e dando-lhes os seus agradecimentos.
2. Todos os
moradores de Malaca, neste cerco1 [à cidade], serviram muito a Vossa Alteza,
com suas pessoas e fazenda. Escreva-lhes Vossa Alteza, dando-lhes os
agradecimentos com algumas liberdades para que tornem a enobrecer a destruída
e perdida cidade de Malaca.
Apresenta várias pessoas que por seus méritos e serviços merecem
gratidão e recompensa do Rei
3. Francisco
Borges2 e Gaspar Mendes3 e Mateus de Brito4, homens solteiros, gastaram muito
neste cerco. São abastados e, o que lhes fica, guardam-no para servir Vossa
Alteza. Vossa Alteza deve--lhes escrever, dando os agradecimentos a cada um
deles, porque serviram muito. E, porque o Padre Francisco Pérez escreve (*na carta de 24/11/1551) longamente as coisas de Malaca5, as deixo de
escrever.
4.
D. Álvaro6 escreve a Vossa Alteza, pedindo-lhe certa mercê e, para mais o
obrigar a servir e restaurar aquela terra, deve-lha fazer.
1
De 5 de Junho a 16 de Set/1551, em que Malaca foi cercada pelos reis de Malaia
e Java aliados, sucumbiram no cerco cem portugueses. A parte dos indígenas foi
incendiada, as redondezas foram devastadas e a própria Malaca muito destruída
3 Gaspar Mendes, já em 1539 tinha combatido em
Malaca. No cerco de 1551, saiu ao ataque da marinha do inimigo e foi ferido por
uma seta. Foi na sua nau que em 1552 Xavier enviou de Sanchão as suas cartas
para Malaca (Xavier-doc. 135,1).
4
De Mateus de Brito, sabemos apenas que em 1541 navegou com o Governador ao
Suez (Lendas da Índia IV 163).
6
D. Álvaro Ataíde da Gama, filho de Vasco da Gama, em 1541 embarcou com Xavier
para a Índia e de novo em 1550, para suceder a seu irmão D. Pedro da Silva na
capitania de Malaca. Desde 1551 era ali capitão-mor do mar. Com essas
atribuições, sem ser ainda capitão da cidade, impediu Diogo Pereira de realizar
a embaixada à China, deixando apenas seguir a nau com Xavier, retendo o embaixador
em Malaca. Por isso foi deposto dos cargos em 1554 e enviado sob prisão para
Portugal.
5. Vossa
Alteza, quanto ao que cumpre muito a seu serviço acerca das coisas da Índia,
informar-se-á de Manuel de Sousa, que é homem que as entende e de quem Vossa
Alteza deve fazer muita conta, porque nestas partes muito bem o tem servido.
6. Grandes notícias
acho dos cristãos do Cabo de Comorim, que são para dar muitos louvores a Deus.
Do fruto que se faz, grande parte é [graças a] Manuel Rodrigues Coutinho8. Os
cristãos e o Padre Henrique Henriques escrevem a Vossa Alteza sobre ele e
sobre algumas coisas que convêm para o serviço de Deus e de Vossa Alteza. Por
amor de Deus, despache-as e, se quer cristandade naquelas partes, mande a
Manuel Rodrigues Coutinho que esteja aí em sua vida. Em tempo está agora a
Índia, em que Vossa Alteza tem necessidade de se assinalar nas coisas do
serviço de Deus mais que nunca.
7. Lopo Vaz
Coutinho9, homem fidalgo, tem muito servido e gastado em serviço de Vossa
Alteza. É pobre e bom, como seu irmão Manuel Rodrigues Coutinho. D. João de
Castro, por saber dos seus muitos serviços e também [de] se achar em Diu,
mandou[-o] pedir a capitania de Maluco. Faça-lhe Vossa Alteza a mercê que lhe
parecer, porque muito bem a merece.
8. D. Jorge de
Castro10, Vasco da Cunha, Francisco Barreto12, são homens que servem muito
Vossa Alteza. Têm boa fama na Índia. Deve Vossa Alteza fazer muita conta
deles.
9. Fernão
Mendes13 tem servido a Vossa Alteza nestas partes e emprestou-me no Japão
trezentos cruzados para fazer uma casa em Amanguche. Ele é homem rico. Tem dois
irmãos, Álvaro Mendes14 e António Mendes15. Para os obrigar a gastar o que têm
e [a] morrer em serviço de Vossa Alteza, me fará mercê de os receber por moços
da câmara. Álvaro Mendes esteve no cerco de Malaca.
10. Guilherme
Pereira16 e Diogo Pereira são dois irmãos, homens muito ricos e abastados.
Servem muito a Vossa Alteza com suas fazendas e suas pessoas. Escreva-lhes
Vossa Alteza os agradecimentos e honre-os, para mais os obrigar a servi-lo.
Eles são muito meus amigos. Eu, porém, não os encomendo por via da amizade,
mas pelo que respeita ao serviço de Vossa Alteza. Diogo Pereira, no tempo de
Simão de Melo18, muito gastou e pelejou em destruir os achens.
11.
Pero Gonçalves, vigário de Cochim, serve muito a Vossa Alteza. Em tempos
passados fez-lhe mercê de o tomar por capelão. Pede agora a Vossa Alteza que,
tendo em consideração os serviços e gastos que faz pelos cristãos, lhe faça
mercê de lhe mandar pagar moradia de capelão ou acrescentar o ordenado. Ele tem
cá um sobrinho, por nome Pero Gonçalves, a quem Vossa alteza, há dias, por
minha intercessão, fez mercê de um alvará de lembrança de moço de câmara, para
quando voltasse a Portugal. Ele não vai de cá, pois é casado e serve cá a Vossa
Alteza nas armadas. Faça-me a mercê de lhe mandar alvará de moço de câmara. E
mais: atendendo aos seus serviços, faça-lhe mercê de escrivão da escrivaninha
da pescaria do aljôfar, ou da escrivaninha de Coulão.
8
Manuel Rodrigues Coutinho servira já na Índia em 1529-1539, tendo sido em 1537
capitão da Pescaria. Em 1541 embarcou novamente com Xavier para Índia e 1548
uma terceira vez. Em 1552-1561, ainda que com algum intervalo em 1554, foi
novamente capitão da Pescaria (SCHURHAMMER, Ceylon ). Obteve o título de
«fidalgo da casa real».
9
Lopo Vaz Coutinho, filho de Vasco Rodrigues Castellobranco, fidalgo, viajou
para a Índia em 1537 e 1541; em 1546 comandou uma nau na batalha de Diu e em
1548 acompanhou o Governador a Cambaia; em 1549, Fr. António do Casal
recomendou-o ao Rei.
10
D. Jorge de Castro, nascido por 1494, partiu em 1507 para a Índia, onde
participou em batalhas no Malabar, Molucas, Diu, Baçaim e Ormuz. Em 1539--1544
foi capitão de Ternate (Molucas); exilado para Malaca em 1546 por D. João de
Castro, à morte deste, abalou para Ceilão, donde foi obrigado a sair por se
meter em guerras locais. Regressado à Índia, foi capitão de Cochim e depois de
Chale, cuja fortaleza, assediada em 1571 pelo rei de Calicut, entregou ao
inimigo; traição que pagou em Goa com a pena capital em 1574 (SCHURHAMMER,
Ceylon).
12
Francisco Barreto, partiu para a Índia em 1548; em 1549-1552 foi capitão de
Baçaim, onde prestou ajuda eficaz aos missionários. Em 1545-1558, sendo
Governador da Índia, por mandato do Rei começou a tratar da causa de
canonização de Xavier. Morreu em 1573 na invasão do reino do Monomotapa
(SCHURHAMMER, Ceylon 586; COUTO, Da Ásia 6,6,7; ).
13
Fernão Mendes Pinto, autor do célebre livro Peregrinação, nasceu por 1514 em
Montemor-o-Velho (Coimbra). Partiu para a Índia em 1537 e, em 1539, para Malaca
onde exerceu comércio com vários países do Extremo Oriente. Encontrou-se com
Xavier em Bungo (Japão) em 1551. Em 1554, sendo já um dos mercadores mais
ricos de Malaca, ao ver como o cadáver de Xavier era triunfalmente levado de
cidade em cidade para Goa, resolveu entrar na Companhia de Jesus. Como noviço
jesuíta foi enviado com o P. Melchior Nunes Barreto a Bungo como legado do
vice-rei da Índia. Lá mesmo, deixou a Companhia de Jesus, regressou a Portugal,
casou e veio a morrer em Almada em 1583 (SCHURHAMMER, Mendes Pinto).
14
Morreu mártir em Bintang, perto de Malaca, por 1553 (SCHURHAMMER, Quellen;
Zwei ungedruckte Briefe).
15
Em 1557 foi testemunha em Malaca no processo para a canonização de Xavier (MX
II 419-422).
16
Guilherme Pereira, estabeleceu-se primeiro em Malaca, depois mudou para Cochim
em 1547, mais tarde exerceu comércio no Japão (1559) e finalmente instalou-se
em Macau (1562) onde se mostrou amicíssimo da Companhia de Jesus.
18
Simão de Mello foi capitão de Malaca em 1545-1548.
12. João
Álvares, deão da Sé de Goa, homem com trinta anos de serviço, vai aí. Que Vossa
Alteza o envie [de novo] para cá, para o servir. Sirva-se aí dele, favoreça-o e
faça-lhe mercê, porque o merece.
13. Pero
Velho22, sobrinho de António Correa23, encontrei-o no Japão. É homem rico e
abastado e de muito serviço. Não é de Vossa Alteza. Peço-lhe muito, por mercê,
que o tome por seu moço de câmara, para mais o obrigar a servi-lo e a gastar o
que tem em seu serviço.
14. António
Correa24 e João Pereira25 servem muito a Vossa Alteza nestas partes, assim nas
guerras como em carga da pimenta.
Console-os
Vossa Alteza, escrevendo-lhes os agradecimentos de seus serviços.
15. Diogo
Borges26 trabalhou e gastou de tal maneira com o rei das ilhas Maldivas que o
fez cristão27. Tem servido a Vossa Alteza nas armadas e está pronto para o
servir. Escreva-lhe Vossa Alteza os agradecimentos do que gastou em fazer
cristão o rei das ilhas.
16. Gregório
Cunha28 morreu aqui, na guerra de Cochim29, com Francisco da Silva30. Ficou-lhe
uma mulher e uma filha pequena desamparadas. Faça-lhes mercê de algumas
viagens para o casamento da filha.
17. Pero de
Mesquita31 há muitos anos que serve Vossa Alteza na Índia: lembre-se dele.
18. Gonçalo
Fernandes, patrão-mor da Índia, há muitos anos que serve Vossa Alteza. Em
satisfação dos seus serviços pede-lhe, por mercê, que lhe confirme o seu ofício
de ser patrão-mor em [toda a] sua vida.
19. Luís
Álvares33, homem velho, grande piloto, de 27 anos de serviço, em sua velhice,
em satisfação dos seus serviços, pede a Vossa Alteza que lhe faça mercê de
piloto-mor em [toda a sua] vida; no que a mim me fará muita mercê, porque tenho
recebido dele muitas amizades e honras.
20. Álvaro
Fernandes34, que é pai dos cristãos35 de Coulão, pede a Vossa Alteza que lho
confirme. Os Padres da Companhia estão contentes com ele, porque é bom homem.
Faça-lhe Vossa Alteza mercê dalgum ordenado.
21. Álvaro
Fogaça pede a Vossa Alteza que, tendo em consideração os seus serviços, lhe
faça mercê de três anos de capitania das viagens às ilhas de Maldiva.
22. Mateus
Gonçalves37, morador em Cochim, pede a Vossa Alteza que lhe faça mercê da
confirmação de meirinho do monte em [toda a] sua vida, ofício que, por ser
aceite à cidade, o Vice-rei lhe confirmou. Há muito tempo que serve. Todos os
Padres da Companhia que estão em Cochim lhe devem muito. A ele e a nós fará
Vossa Alteza mercê em lhe confirmar o ofício.
23. António
Pereira38, casado e morador em Coulão, pede a Vossa Alteza que lhe faça mercê
da escrivaninha de Coulão. Dom Leão informará Vossa Alteza dos seus serviços.
24. Grande
desconsolação recebi em achar Cosme Anes tão vexado40. Sempre o conheci grande
amigo do serviço de Vossa Alteza e esteio da nossa Companhia nestas partes da
Índia. O que me consola é que Vossa Alteza saberá a verdade e, por derradeiro,
lhe fará mercê [a ele] e, a nós todos, nos consolará em o prover com justiça e
dar-lhe satisfação conforme a seus serviços.
Pede desculpa de tantos pedidos e deixa-os à liberdade do Rei
25. Por
serviço de Deus, peço a Vossa Alteza que me perdoe por ser tão importuno com
encomendas de tantas pessoas. Em tudo fará o que for maior serviço seu, porque
eu não desejo senão servi-lo. Nosso Senhor guarde o estado da Índia e, a Vossa
Alteza, muitos anos para o acrescentar.
De Cochim, a
31 de Janeiro de 1552 anos
(Por mão de
Xavier): Servo inútil de Vossa Alteza, FRANCISCO
22 Pero Velho partiu para a Índia em 1524. Foi um dos que esteve com Xavier em Sanchão em 1552; veio a morrer em Macau mais tarde (MX II 474-475; 477--478).
23 Naquela época eram conhecidos seis com este nome na Índia.
24 António Correia, nasceu por 1498. Em 1528 partiu para a Índia onde combateu ao longo de dez anos na marinha portuguesa. Ferido em Diu, entrou noutras batalhas a expensas próprias em 1546. Em 1540-1542 foi feitor de Baçaim e desde 1547 feitor de Cochim onde lhe competia velar pelos carregamentos de pimenta para Portugal (SCHURHAMMER, .
25 João Pereira, filho de Diogo Pereira, foi nomeado capitão da fortaleza de Cranganor em 1545. Favoreceu notavelmente os missionários, os cristãos e o comércio de pimenta que exerciam os cristãos de S. Tomé. Morreu em 1564.
26 Diogo Borges partiu em 1548 para o Oriente com o cargo de alcaide-mor das Molucas (SCHURHAMMER, Quellen).
27 Hasan, rei das Maldivas, cercado por insurrectos, em fins de 1549-50 veio a Cochim pedir auxílio ao vice-rei da Índia. Instruído na fé por António de Herédia, recebeu o batismo com o nome de Manuel em Dez/1551 aos 25 anos de idade. No ano seguinte, casou ali mesmo com Eleonora de Ataíde e já não voltou ao reino, vindo a morrer pobre em Cochim em 1583.
28 Gregório da Cunha tinha partido em 1549 (Emmenta 431).
29 Guerra que o rei Tekkumkuren, chamado rei da pimenta, e seus aliados fizeram contra o rei de Cochim aliado dos portugueses (1550-1551) pela ilha de Bardela (Varutala) (CORREA, Lendas da Índia IV 723-724; SCHURHAMMER,).
30 Francisco da Silva de Menezes, capitão de Cochim desde 1547 (cf. CORREA, ib. 724;
31 Pero de Mesquita esteve em Goa em 1527 e em Chaul em 1528. Em 1547, embarcou de novo para a Índia como capitão duma nau e lá foram-lhe concedidas, como favor, três viagens de negócios às Molucas (CORREA, Lendas da Índia III 135).
33 Naquela época eram conhecidas na Índia várias pessoas com o mesmo nome.
34 Eram conhecidas várias pessoas com o mesmo nome (cf. SCHURHAMMER, ib. 54-55).
35 Sobre o cargo «pai dos cristãos» recentemente instituído, cf. DALGADO, Glossário II 139-140.
37 Nada mais se conhece dele. Meirinho do monte é o mesmo que meirinho do campo (cf. MX II 374).
38 António Pereira, pelos vistos, obteve o cargo pedido, pois em 1562 assinou a carta que os habitantes de Coulão escreveram ao Rei. Não confundir com outros do mesmo nome.
40
Sobre as vexações sofridas por Cosme Anes. O Gov. Cabral, irreconciliável
adversário dele, desterrou-o para Cochim.